[Passageiro #12] O ócio criativo
Vinicius de Moraes, Manoel de Barros e a vagabundagem profissional.
Para ler ouvindo: Samba per Vinicius, por Ornella Vanoni, Toquinho e Vinicius de Moraes.
1.
O poeta e boêmio Vinicius de Moraes entrou para a carreira diplomática após ser aprovado no disputadíssimo concurso de 1943. Em 1946, serviu como vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, seu primeiro posto fora do país, onde costumava confraternizar com Carmen Miranda e Orson Welles. Também ocupou postos diplomáticos em Montevidéu, Roma e Paris.
Em 1968, após 25 anos de serviços prestados ao Itamaraty, foi exonerado das suas funções, supostamente, por conta da sua boemia. “Demita esse vagabundo”, dizia um telegrama assinado pelo marechal-presidente-golpista Arthur da Costa e Silva e direcionado ao então ministro-golpista Magalhães Pinto durante os mandos e desmandos do AI-5. A versão oficial dos golpistas diz que Vinicius foi demitido por embriaguez.
Fala-se que o poetinha ficou bastante abatido com a aposentadoria compulsória. Ele detestava a burocracia do serviço público, mas gostava do emprego – que pagava as suas contas e bancava o seu ócio criativo.
2.
Não tem como falar em ócio criativo sem citar Domenico De Masi. Sua teoria sobre a arte de não fazer nada – que os italianos chamam de dolce far niente – e esvaziar a cabeça a fim de torná-la fértil de novo foi adotada como uma espécie de manual da criação.
Porém, aqui não falarei de Domenico De Masi – e o próprio fato de citar que não tem como falar em ócio criativo sem falar do sociólogo italiano prova o meu ponto da obrigatoriedade em citá-lo (ainda que isso seja uma espécie de não-citação).
Quero falar é de Manoel de Barros, o inútil, o vagabundo profissional, o poeta que mais vendeu livros no Brasil.
Ontem, com o objetivo de ser inútil ao meu país – e ao dos outros, escrevo de Barcelona –, abri a Netflix a fim de esvaziar a minha cabeça. Deparei-me com Só dez por cento é mentira, documentário de 2008 sobre a vida e as invenções de Manoel.
Após viver na Bolívia e no Peru, o poeta voltou ao seu pantanal mato-grossense nos anos 1960. Herdou uma fazenda da família e, por dez anos, dedicou-se à criação de gado. Segundo Manoel, o período serviu para que ele pudesse “comprar o ócio” e se dedicasse exclusivamente à poesia – tornando-se, em suas palavras, um “vagabundo profissional”.
O objetivo de Manoel era ser inútil. No seu “lugar de ser inútil”, um quartinho na casa onde vivia, o poeta saboreava longas horas sem fazer nada. Ou melhor, fazendo poesia em tempo integral. “Eu só presto pra poesia”, ele dizia.
3.
Desde que deixei a Marina di Cecina para um pequeno tour de sete dias em Lisboa, sete em Barcelona e seis em Valencia, não consegui ser um completo inútil, um vagabundo profissional como Manoel.
A rotina do livro perdeu-se em compromissos, encontros (o autor português José Luís Peixoto cruzou mais uma vez o meu caminho) e… trabalho – o trabalho que banca o meu ócio criativo, a minha inutilidade ao meu país e ao dos outros.
Não posso me dar ao luxo de não produzir conteúdos para as redes sociais porque uma parte da minha renda vem dos publis e as marcas geralmente pedem as métricas dos últimos 30 dias.
Não posso me dar ao luxo de não produzir conteúdos para as redes sociais porque uma parte da minha renda vem de palestras e treinamentos in company e preciso estar ativo para que as empresas lembrem de mim.
Não posso me dar ao luxo de não produzir conteúdos para as redes sociais porque uma parte da minha renda vem de cursos online e preciso estar ativo para que os possíveis alunos lembrem de mim.
Para que essa roda continue a girar, preciso planejar.
Para que essa roda continue a girar, preciso criar.
Para que essa roda continue a girar, preciso publicar.
Tudo isso leva tempo.
O tempo do meu ócio criativo que, na maioria das vezes, acaba por ser sacrificado.
4.
Nos sete dias em Lisboa, entre um rolê e outro, entre uma publicação no LinkedIn e outra no Instagram, consegui escrever um ou dois parágrafos.
Aqui em Barcelona, ao perceber que meu tempo para ser inútil está cada vez mais escasso (é minha primeira vez na cidade e tenho turistado bastante), me vi obrigado a seguir o conselho de outros escritores que não conseguem ser vagabundos profissionais: acordar antes de todo mundo e escrever.
Ontem saí da cama às 5h30 da manhã, algo raro nesses quase 34 anos de vida. O sol ainda não havia nascido, fazia frio, mas pude, finalmente, ser inútil em paz. A sessão de escrita rendeu.
Hoje perdi a hora.
✍️ Notas:
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Em 16 de junho de 2010, o presidente Lula, então no seu segundo mandato, promoveu post mortem o diplomata Vinicius de Moraes a Ministro de Primeira Classe da Carreira de Diplomata. A anistia veio quase 30 anos após a sua morte.
Você pode ajudar a bancar o meu ócio criativo inscrevendo-se em um dos meus cursos, indicando meus perfis nas redes sociais para possíveis anunciantes ou divulgando minhas palestras e treinamentos in company para a sua empresa.