[Passageiro #18] Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer
Turismo caseiro, David Foster Wallace e viver de escrita no Brasil.
Para ler ouvindo: ALIEN LOVE CALL, por Turnstile e Blood Orange.
1.
“Essa rotina caseira, sem visitar museus nem monumentos, sem obrigações turísticas, é o meu ideal de estadia no exterior”. Emmanuel Carrère em Ioga.
Estou há quase um mês em Sarandë, na Albânia. No Instagram, eventualmente recebo questionamentos se já fiz isso ou aquilo, se já visitei essa ou aquela praia, se já fiz hiking ou trekking nessa ou naquela montanha. Me pedem dicas turísticas, querem saber se vale a pena visitar essa ou aquela cidade na baixa temporada, se é fácil comunicar-se em inglês.
2023 é meu sexto ano como viajante em tempo integral, o sexto ano sem ter um lugar para voltar, o sexto ano em que vivo um dia de cada vez. Se ainda não fiz isso ou aquilo é porque não tenho pressa; ou porque estou cansado. Talvez faça nesse final de semana; o
chegou por aqui e estamos pensando em alugar um carro. Ou talvez não faça, vai saber. Hiking e trekking não são a minha praia; praia é a minha praia, então talvez eu visite essa ou aquela; com um carro fica mais fácil. Não sou guia turístico e não sei do que você gosta, então é sempre difícil dizer se esse ou aquele lugar vale a pena em qualquer temporada.Ainda não fiz isso ou aquilo, mas minha rotina de turismo caseiro, que está mais slow do que travel, tem tornado a estadia bastante agradável. Acordo quando o sol nasce, lá pelas 6h30, faço um café, leio por cerca de uma hora e escrevo à beira-mar até às 11h, mais ou menos, quando geralmente desço pela Rruga Butrinti até o Teuta, o mercadinho aqui da rua. Andrea, o filho dos donos que está sempre no caixa, fala inglês. Nunca tivemos problemas na comunicação, mas também nunca falamos nada além das convenções sociais básicas – bom dia; vou pagar no cartão; você quer uma sacola?; não, obrigado; tchau. Andrea não é muito simpático, eu também não. Nossa relação é ótima.
O pai de Andrea é mais simpático – ele quem fica no caixa aos finais de semana. Sempre me cumprimenta sorridente, pergunta uma ou outra coisa fora das convenções sociais básicas, parece ser um cara legal. Acho que nesse final de semana perguntarei o seu nome; o de Andrea descobri porque ouvi sua mãe o chamando; a mãe não sei como se chama.
As verduras no Teuta nem sempre estão boas, de modo que às vezes ando um pouquinho mais até o Planet para comprar o que precisamos; cebolas, pimentões, cenouras, batatas, alface, brócolis, beterraba, alho, tomate, bananas. Às vezes sardinha enlatada; eu adoro, mas I., que é vegetariana, não suporta nem o cheiro. O pessoal do Planet também se comunica bem em inglês; e também não são muito simpáticos, o que torna nossa relação ótima.
Durante a tarde faço as coisas que pagam minhas contas: tudo o que envolve produção de conteúdo, infoprodutos e treinamentos in company. O sol se põe lá pelas 17h30 e sempre rende bons vídeos para o Instagram. A audiência adora. É praticamente o único tipo de conteúdo que tenho produzido desde que cheguei aqui.
À noite, I. e eu geralmente assistimos alguma coisa leve – Aeroporto: Área Restrita, da Discovery, por exemplo. Às vezes um episódio aleatório de Modern Family. Ontem assistimos Eu, a Patroa e as Crianças (dublado, pela nostalgia das tardes no SBT). Anteontem joguei uma partida de Fifa com o Lucas; eu com o Napoli, ele com a Juventus. Venci por 3x1 (fora os apavoro). De vez em quando pedimos uma pizza vegetariana e outra de quatro queijos na Vesa. Eles não aceitam cartão, então sempre que fazemos o pedido pelo WhatsApp ando uns dois minutinhos até o caixa eletrônico do Hotel Oasis para sacar uns leks – lek é a moeda albanesa. O entregador fala inglês e não é muito simpático. Nossa relação é ótima.
2.
Terminei a leitura de Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo, obra que reúne alguns dos ensaios mais significativos de David Foster Wallace. A escolha dos textos foi de Daniel Galera.
“No conjunto, sua não ficção elabora com humor, sofisticação intelectual e uma atenção descomunal ao detalhe os mesmos temas centrais de sua ficção, entre os quais podemos citar o narcisismo como motor da alienação moderna, o poder destrutivo da ironia alçada à condição de visão de mundo totalizante, o niilismo travestido de liberdade e inconformidade, o preço espiritual dos vícios (em especial o vício em entretenimento) e a questão do que podemos fazer para tentar fugir da prisão de nossas próprias cabeças”. Daniel Galera, no prefácio de Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo.
O que mais gostei na obra foi a capacidade de DFW descrever o cotidiano de uma maneira tão literária. Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo começa com uma reportagem homônima ao livro que faz uma espécie de “incursão antropológica” em uma feira rural de Illinois. No ensaio Pense na Lagosta, o autor escreve sobre uma feira gastronômica e reflete sobre o ato de cozinhar um animal vivo. São reportagens ensaísticas que passam longe do senso-comum. Minha favorita é Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer (ele era ótimo com títulos), em que DFW é pago pela Harper’s para escrever sobre um cruzeiro de luxo.
Ao longo da crônica em que retrata o ambiente da classe média americana em uma viagem pelo Caribe, DFW descreve o dia a dia da tripulação e a trajetória dos turistas, chegando, no último dia, a fazer um registro como se fossem entradas em um diário, marcando as horas e suas ações. Através do seu olhar aguçado e da força da sua narrativa, conseguimos enxergar a beleza – e também as bizarrices – do cotidiano em um espaço estranho e estrangeiro.
3.
Queria ser pago para escrever umas coisas assim, umas reportagens literárias sobre viagens, sobre o meu turismo caseiro, algo meio DFW, meio Hunter S. Thompson sem as drogas, mas a verdade é que as revistas e os jornais morreram; e quem sobrevive no digital virou cadelinha dos mecanismos de busca e das redes sociais.
O que posso fazer por aqui é seguir contando minhas banalidades na newsletter e no livro que está por vir, tentando monetizar meu conteúdo de forma independente (no caso da newsletter).
Ontem foi dia de receber os direitos autorais dos últimos seis meses de Nômade Digital e vou falar para vocês que está cada vez mais difícil viver da escrita no Brasil. Em outra edição comentei sobre minha breve passagem na mídia tradicional, em que eu ganhava o valor simbólico R$ 100 por texto – que eram quinzenais; R$ 200/mês em uma conta rápida.
No início de fevereiro conversei com o novo editor de turismo do jornal e fiquei sabendo que eles não querem mais crônicas, muito menos o foco na experiência nômade; o negócio agora são reportagens generalistas sobre os destinos, sobre fazer isso ou aquilo, sobre visitar essa ou aquela praia, sobre fazer hiking ou trekking nessa ou naquela montanha; e sempre pensando no SEO. A pá de terra que faltava para enterrar de vez o jornalismo literário de viagens.
Acredito que voltar a ser pago (ainda que mal pago) para escrever minhas crônicas em um jornal é uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer.
🗣 Call to action para gerar engajamento:
Guilty pleasure, em uma tradução literal, é um prazer culposo.
Qual série é o seu guilty pleasure? Aquela que você assiste, mas com vergonha.
Eu começo: The OC. É ruim demais. Eu adoro.
✍️ Notas de rodapé:
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Em 2006, dois anos antes de nos deixar, David Foster Wallace esteve na Itália para um evento literário. Foi sua primeira e única viagem para o exterior. Tem um vídeo bem divertido dele em Capri falando sobre a experiência.
Esse Tiny Desk do Turnstile é incrível. Como o vocalista consegue cantar desse jeito sentado?
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Adoro teus textos Matheus. Me identifico em cada palavra.
Também não sou muito simpática e me sinto aliviada quando sou correspondida! Me identifiquei muito hahaha