[Passageiro #19] O bater de asas de uma borboleta
Airbnbs inflacionados em Istambul, road trip pelo sul da Albânia e como uma infestação de insetos mudou o meu destino.
Para ler ouvindo: BUTTERFLY EFFECT, por Travis Scott.
1.
Os pais de Süheyl morreram no terremoto de Hatay. Eu não sabia disso quando pedi desconto para passar um mês em seu Airbnb em Istambul. A ideia era alugar o apartamento por um mês e, caso I. e eu gostássemos da experiência, renovar por mais um ou dois meses. Cansamos da Albânia e a Turquia nos parecia a melhor opção dentro da Europa e fora de Schengen para passarmos os próximos meses com visto de turista.
Süheyl ofereceu 20% de desconto desde que já fechássemos os três meses, mas teríamos que decidir logo pois ele teria que ir para Hatay em breve. Me senti mal por negociar com alguém que acabou de perder os pais de maneira tão trágica. Não parecia certo. Deixei para responder no dia seguinte.
O apartamento de Dilara parecia melhor, mais aconchegante, mas o valor por noite era um pouco mais caro. Também localizado na rua Moda, distrito de Kadıköy, área hipster que reune os mais variados tipos com pretensões artísticas, era nosso favorito. O
conhece bem a vizinhança e nos disse que provavelmente essa seria a melhor opção. Pedimos os mesmos 20% de desconto, mas Dilara, que sempre demora para responder, estava irredutível com o valor.Correndo por fora estava o apartamento de Ally, mais barato que o dos concorrentes, localizado perto da praia e do parque Yoğurtçu e com “Wi-Fi rápido com velocidade de 53 Mbps e um espaço adequado para trabalhar em um quarto privativo”. Tentador, mas sem avaliações de outros hóspedes, o que é sempre arriscado.
2.
Cansamos da Albânia, mas que país bonito, viu?
Na última edição da newsletter comentei que estávamos pensando em alugar um carro para uma pequena road trip pelo sul do país. Pois bem, fizemos isso. Nos destaques do meu Instagram vocês podem ver alguns vídeos desse rolê.
Viajar de carro pela Albânia é dizer “olha lá” para os seus companheiros de viagem a cada dois minutos. Seja pelas montanhas gigantescas que aparecem no horizonte, pelos lagos que surgem do nada na beira da estrada ou pelos personagens que atravessam os nossos caminhos.
Não sei se é a baixa temporada ou se o turismo internacional realmente ainda não chegou pra valer por aqui (a Albânia só abriu para o turismo em 1991 e há apenas um aeroporto no país, na capital Tirana), mas a cada cidadezinha que entrávamos, de forma programada ou aleatória, a sensação era de que I., Lucas e eu estávamos compartilhando um segredo, como se nós fossemos os primeiros turistas estrangeiros a desbravarem aquelas terras.
A hospitalidade do povo albanês, como Defrim, o orgulhoso proprietário e faz tudo do Restorant Gjoça, em Gjirokastër, talvez seja um reflexo disso: em lugares mais turísticos é mais comum sermos mal atendidos por garçons e garçonetes que já estão de saco cheio dos turistas. Na Albânia, nós, os turistas, os nômades digitais, ainda somos novidade. Os albaneses talvez ainda não tenham enjoado da gente, ainda nos olham com curiosidade, ainda parecem não nos culpar pelos seus problemas de gentrificação e de aumento no custo de vida – como os portugueses têm feito, por exemplo.
3.
Em meados de 2019 passei quatro dias em Istambul. Geralmente não fico tão pouco tempo em um lugar, mas foi uma viagem que não estava nos planos. Na época eu estava na Rússia e tinha uma viagem marcada para a Geórgia, coincidentemente um destino indicado pelo Lucas, porém, os dois países romperam relações diplomáticas e o jeito mais barato de chegar em Tblisi era pela Turquia.
Embora tenha ficado pouco tempo em Istambul, gostei bastante da minha estadia e sempre tive vontade de regressar. Além de ser uma cidade vibrante, com muita coisa para se fazer, a lira turca, assim como o real, é uma moeda desvalorizada, de modo que pude me hospedar em um prédio histórico, no coração da praça Taksim, que foi sede do consulado francês no país no século XIX, por uma bagatela. Na época, era fácil encontrar ótimos Airbnbs entre R$ 2.000 e R$ 2.500/mês.
Corta para 2023. Os Airbnbs na maioria das cidades queridinhas dos nômades digitais, como Istambul, estão inflacionados. Ainda não encontrei um estudo que ligue esses pontos, mas suponho que tenha a ver, principalmente, com duas coisas: 1) Os donos dos imóveis precisam recuperar o prejuízo das fronteiras fechadas durante a pandemia; 2) O poder de compra de quem ganha em dólar ou euro fodeu os viajantes que ganham em real ou em outras moedas desvalorizadas. Não temos como competir com esses caras.
O apartamento de Dilara, o que mais gostamos em Istambul, estava anunciado por R$ 8 mil/mês – valor bem superior aos que encontrei em 2019. Está bem fora do nosso orçamento, porém, R$ 8 mil são pouco mais de 1.440 €, valor bem mais acessível para quem tem um bom salário em euro. Pela lógica do mercado, Dilara e os outros hosts do Airbnb não estão errados em aumentarem absurdamente os seus preços; estão amparados pela Lei da Oferta e Demanda. A gente que lute.
4.
I. e eu ficamos sem internet durante toda a nossa road trip. Nosso plano de dados venceu e não conseguimos renová-lo porque o site da operadora não estava funcionando e, como nossa conta na Apple é brasileira, não conseguimos baixar o app da Vodafone Albânia; mesmo com VPN – segundo uma atendente da empresa, essa é a única maneira de renovarmos nosso plano.
Foi bom passar um final de semana desconectado, porém, perdemos algumas mensagens importantes. Quando chegamos em casa e nos conectamos ao Wi-Fi, o apartamento de Süheyl não estava mais disponível. Dilara seguia irredutível. Sobrou Ally, que, como boa turca, mostrou-se uma ótima negociadora. Sabendo dos nossos planos de uma estadia longa, propôs que ficássemos três noites no apartamento (para garantir a primeira avaliação na plataforma) e, caso gostássemos, poderíamos fechar por quanto tempo quiséssemos por fora (uma jogada para não pagar as taxas abusivas do Airbnb) – e com desconto.
Pressionados pela falta de opções e com medo de perdermos também esse acordo, fechamos com Ally.
5.
Há duas semanas escrevi sobre como a Tailândia arruinou a minha vida.
Entre idas e vindas, estive três vezes no país – em três momentos diferentes da minha vida. O tempo somado em terras tailandesas chega a quase um ano. Na última delas, no começo de 2022, I. foi comigo e também teve a vida arruinada pelo país.
Na época ela estava em um período sabático e, como eu trabalho por conta própria e faço meus próprios horários, o fuso-horário não foi um problema para nós. Porém, assim que retornamos da Ásia, I. começou a trabalhar para um empresa brasileira – no horário comercial do Brasil –, o que, até então, tinha inviabilizado uma volta à Tailândia.
6.
Em 1952, Ray Bradbury, o escritor, publicou o conto O som do trovão. Na história, um personagem pisa em uma borboleta e esse pequeno detalhe traz graves consequências – incluindo a chegada de um líder fascista ao poder.
Quase dez anos depois, em 1961, o que era ficção tornou-se realidade científica quando o meteorologista Edward Lorenz, que trabalhava em um modelo matemático para a previsão do tempo, introduziu no seu computador dados como temperatura, umidade, pressão e direção do vento e observou os resultados. Em seguida, introduziu novamente os mesmos dados para conferir os resultados obtidos na primeira vez.
De forma inesperada, partindo dos mesmos dados nas duas oportunidades, a segunda previsão do tempo foi completamente diferente da primeira. No começo do experimento, as duas previsões eram parecidas, mas, à medida que o modelo avançava no tempo, as diferenças entre os dois resultados se tornavam cada vez maiores.
Essa diferença tão radical entre os dois resultados ocorreu simplesmente porque, na segunda vez, o computador de Lorenz havia arredondado os dados, ou seja, ele considerou algumas casas decimais a menos.
Assim se percebeu que algumas poucas casas decimais aparentemente insignificantes podem ocasionar, ao longo do tempo, alterações monumentais. Para Lorenz, isso equivalia a dizer que o vento que causa o bater de asas de uma borboleta na Tailândia pode ocasionar um tornado na Turquia. Nascia, assim, a Teoria do Caos e o Efeito Borboleta.
7.
Süheyl alugou o seu espaço para outra pessoa. Dilara não nos respondeu. Sem opções, fechamos o acordo com Ally na última segunda-feira.
Terça, I. pediu demissão do seu emprego no Brasil – os motivos não vêm ao caso.
Com I. sem precisar trabalhar no horário comercial do Brasil, viajar para a Tailândia voltou a ser uma opção, porém, já estávamos com tudo fechado para Istambul; passagem aérea e Airbnb pagos.
Quarta, no entanto, Ally nos enviou uma mensagem pedindo desculpas. Seu apartamento estava, ironicamente, com uma infestação de insetos. Asas por todos os lados. Ela precisaria dedetizar o local e não poderia nos receber. Pediu mil desculpas. Aceitei com um sorriso no rosto.
Abri o Skyscanner e encontrei uma promoção de passagem aérea de Roma para Bangkok. Com o cancelamento do Airbnb por parte de Ally, nosso único prejuízo, agora, seria o voo até Istambul – havíamos pago R$ 700 por pessoa. Abri o site da companhia aérea sem esperanças de um reembolso, mas, para a nossa sorte, o Matheus do passado comprou tickets reembolsáveis. Viagem para a Turquia cancelada; tickets comprados para a Tailândia.
8.
A Tailândia tem um papel fundamental em Passageiro, o livro.
Nas últimas semanas, antes mesmo de escrever a edição da newsletter dedicada ao país, tenho pensado em como uma nova viagem para a Tailândia seria o fechamento ideal da obra. Não quero dar spoilers, mas alguns pontos que escrevi no início e na metade de Passageiro haviam ficado em aberto e eu ainda não sabia bem o que fazer com isso – vocês entenderão assim que lerem o livro.
Em 2020, eu tinha recém-chegado em Chiang Mai, no norte da Tailândia, quando a pandemia começou. Fiquei “preso” na cidade durante o lockdown e alguns planos que eu tinha – como fazer uma sak yant, tatuagem sagrada tailandesa feita por monges, por exemplo – não se concretizaram. Em 2022, voltei para a Tailândia, mas não para Chiang Mai. Dessa vez, iremos para a cidade e poderei, enfim, fechar esses pontos em aberto – e escrever sobre isso.
Eu até diria que sentirei falta de escrever à beira-mar enquanto olho para ilha de Corfu, na Grécia, mas porra, a próxima edição dessa newsletter será enviada diretamente da Tailândia. Dia 10 de março, data do envio da 20ª edição da newsletter Passageiro, I. e eu estaremos em um hotel no coração da Khao San Road, em Bangkok, tal qual Richard, o personagem de A praia – essa escolha não foi por acaso, mas falaremos disso no próximo e-mail.
Em uma edição anterior falei sobre como a vida não está nem aí para o nosso planejamento, mas porra, dessa vez eu não poderia estar mais feliz.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento:
Eu não poderia falar em Efeito Borboleta sem citar aquele filme com o Ashton Kutcher, um dos meus atores ruins favoritos.
Meu ator ruim favorito, no entanto, é o Adam Sandler.
Qual o seu ator ruim favorito? Ou a sua atriz ruim favorita?
✍️ Notas de rodapé:
Durante o mês de março, quem se inscrever no meu curso de Marketing Pessoal e Produção de Conteúdo ganha, de brinde, o curso de Escrita Criativa – uma economia de R$ 597. Garanta o seu combo neste link (bora dar um up na sua carreira e, de quebra, ajudar o seu escritor favorito a pagar o seu rolê pela Tailândia).
Thread maravilhosa sobre o processo de escrita de Manoel Carlos, autor de várias novelas da Globo. Ele conta como Laços de Família foi baseada em uma notícia que ele leu no jornal. Me identifiquei porque ler os jornais locais dos países que visito (muitas vezes com a ajuda do Google Tradutor) tem feito parte do processo de escrita do livro – uma maneira de encontrar curiosidades, personagens e histórias que você dificilmente ficaria sabendo de outra maneira.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Charlie Sheen é meu ator ruim favorito. Mesmo controverso. Sou uma amante de filmes e séries ruins, como Two and a Half Men, e as sequências imbecis como Top Gang 🤣. Que legal que você vai voltar para a Tailândia 🥰. Abraço!
Já te acompanhava na antiga news e me cadastrei nessa há 3 edições. O storytelling está fabuloso!! Se vc estava tentando criar ansiedade para o livro, conseguiu. Reli as antigas edições e me sinto nessas viagens com vocês. Ansiosa para o reencontro com a Tailândia. Boa sorte.