[Passageiro #2] O bloqueio criativo
Não há nada mais angustiante para um criador do que não conseguir criar.
Para ler ouvindo: “Ghost Song”, do álbum solo do Jim Morrison.
1.
Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) está entediado em um engarrafamento. Sua mente vagueia e ele vai parar no céu. Em meio à sua fantasia por entre as nuvens, dois homens o puxam para baixo. É a realidade. Assim começa “8 ½”, clássico do cineasta italiano Federico Fellini.
Os dois homens que puxam Guido para a realidade são os produtores do seu filme. O personagem interpretado por Mastroianni é um diretor de cinema sofrendo com bloqueio criativo. Ele precisa rodar seu filme, mas está sem ideias. Os produtores querem que ele siga uma linha mais comercial, mas a mente de Guido está presa em um loop de divagação.
Em meados de 1962, Fellini já havia recebido financiamento para rodar “8 ½”, o elenco principal já estava contratado, mas o roteiro do filme não existia. Ele estava travado. E é nesse momento, mais como uma saída para a vergonha de ter que dizer aos profissionais que não haveria filme, que Fellini imagina uma situação inusitada: “e se fizermos um filme sobre um diretor com bloqueio criativo?“.
2.
Vasculhando anotações e fotografias das minhas viagens, encontro um desenho feito por Fellini no final dos anos 1950.
Fiz esse registro em fevereiro de 2019, numa exposição em Roma sobre a vida e a carreira de Mastroianni, alter ego do cineasta em “8 ½”.
Fellini, que trabalhou como cartunista na juventude, tinha o hábito de registrar os seus sonhos em desenhos. Ele acreditava que seus sonhos, desejos e/ou projeções de realidades fantasiosas precisavam ser personificadas. O cineasta dizia que pintava para acessar memórias, verdadeiras ou não, até porque “quem conta um conto, aumenta um ponto”.
O desenho acima é o registro de um sonho que ajudou o cineasta no processo criativo de “La Dolce Vita”, um dos seus filmes mais famosos.
3.
Alguns autores que escrevem sobre criatividade, como Austin Kleon, de “Roube como um artista”, sugerem o “uso das mãos” na hora de criar.
Kleon diz ter uma “mesa analógica” e uma “mesa digital” para trabalhar nos dois modos separados.
“Os computadores nos roubaram a sensação de que estamos realmente fazendo coisas”. (Austin Kleon)
Eu não sei desenhar. Sou péssimo. Mas muitas das minhas memórias, das memórias que entrarão no livro, estão registradas em fotografias como aquela do desenho do Fellini. Tiro foto de quase tudo. É um modo de reviver momentos, de relembrar detalhes. Mantenho o cuidado de ter tudo arquivado na nuvem.
Ao escrever o parágrafo sobre a “mesa analógica” de Kleon, lembrei que em 2021 presenteei minha esposa com uma dessas impressorinhas portáteis de revelação de fotos. Para quem não sabe desenhar, como eu, talvez seja uma alternativa interessante para fugir das telas.
“Imprimir fotos e colocá-las em uma mesa analógica”. Anotei aqui no meu caderninho, a única coisa analógica na minha mesa.
Espero que minha esposa empreste a impressorinha.
4.
5.
Não há nada mais angustiante para um criador do que não conseguir criar. No entanto, engana-se quem pensa que o tal do bloqueio criativo resume-se à falta de ideias; o excesso delas também pode atrapalhar o andamento de uma obra.
Chegar ao conceito de “Passageiro”, como contei na edição anterior da newsletter, foi um processo que durou cerca de três anos. Eu sabia que queria escrever um livro com crônicas de viagens, mas entrei em um loop eterno de buscar referências – livros, filmes, documentários, séries, tudo que se passasse nos lugares por onde passei.
O agora ex-editor de um dos maiores conglomerados editoriais do Brasil disse-me há uns meses não crer muito no potencial comercial de projetos relacionados a viagens – eles vivem um momento de baixa, segundo ele. Lembrei de Guido sendo puxado de volta para a realidade.
Não entendo bulhufas (adoro essa palavra!) do mercado editorial, dos números, tendências de vendas, etc, mas sei do que gosto e do que não gosto em um livro. Kleon, o da mesa analógica, também sugere escrevermos o livro que gostaríamos de ler. E é isso que decidi fazer com “Passageiro”. Bons livros justificam-se; independentemente dos seus gêneros.
6.
Não fechei o contrato com a tal editora.
Essa negativa, no entanto, encerrou meu loop eterno de referências, de excesso de ideias que não levavam a lugar algum, que não justificavam a existência do livro além de um raso “este é um livro com crônicas de viagens”.
Como criadores, às vezes tudo o que precisamos é de alguém que nos puxe de volta para a realidade. Alguém que interrompa nossas divagações. Alguém que nos provoque.
Adoro seus textos e torcendo muito aqui pelo "Passageiro"
Conheci seus textos pelo LinkedIn, mas prefiro esse tipo de escrita, mais pessoal, narrativa e cotidiana do que com foco em carreira profissional.