[Passageiro #25] 2566: Uma odisseia na Tailândia
Entre 13 e 15 de abril celebra-se o Ano Novo Tailandês com... uma guerra de arminhas de água. Confira o depoimento de um sobrevivente.
Para ler ouvindo: Do-Ther-Tum (Doo Doo Doo), por Job 2 do.
1.
São três anos de espera. Desde 2563, quando a pandemia de Covid-19 teve início, tailandeses, expatriados e turistas não puderam comemorar o Songkran, o Festival das Águas que marca o Ano Novo Tailandês e que acontece todos os anos de 13 a 15 de abril, seguindo o calendário budista, de modo que a expectativa para a virada de 2565 para 2566 é alta – curiosamente, este é meu terceiro Songkran; o primeiro sem restrições sanitárias.
A preparação começa no dia 12, quando lojas de conveniência, como a onipresente 7-Eleven, colocam um estoque de arminhas de plástico de diversos modelos e tamanhos à venda. Pago 179 baht (cerca de 25 reais) em uma de porte médio que me parece mais fácil de carregar em um confronto, mas que mostra-se uma má escolha logo na primeira vez em que preciso encher o seu pequeno reservatório de água. Sem poder atacar de volta, sou alvo fácil de crianças armadas até os dentes com baldes e mangueiras.
2.
O ponto de encontro das festividades em Koh Phangan é o Pantip, um mercado de rua com diversas barraquinhas de comida e restaurantes. Minha única preocupação é o caminho; nossa casa fica a cerca de 12 minutos de distância e o pessoal não poupa os motoqueiros durante a guerra molhada – o que pode ser um pouco perigoso, uma verdadeira odisseia.
Logo na saída do nosso pequeno condomínio, uma dupla de tailandeses, cada um segurando uma mangueira, faz sinal com as mãos para que eu diminua a velocidade. Cumpro a ordem e sinto a água gelada em meus braços, a camisa ensopada, pingos escorrendo pela viseira do capacete. I. e eu somos, enfim, batizados.
No Ano Novo, os tailandeses costumam visitar os templos de suas comunidades para jogar água nas estátuas de Buda, um ritual de purificação. Como abril é o mês mais quente do ano na Tailândia, a prática estendeu-se às pessoas, uma forma divertida de refrescar-se em meio às altas temperaturas.
3.
Ao longo de todo o caminho até o Pantip, somos parados diversas vezes por famílias na beira da rodovia. As crianças são as mais animadas. Algumas são tão pequenas que mal conseguem segurar os seus baldinhos. Fazem força com os seus bracinhos para tentar molhar os farangs (como os estrangeiros são chamados por aqui) e comemoram a cada vez que acertam o alvo.
Estaciono a moto em uma rua atrás do ponto de encontro das festividades e sou imediatamente atacado por um tailandesinho que deve ter, no máximo, 4 anos. I. tenta me proteger dos ataques, mas meu arquirrival chama reforços e, antes mesmo de chegarmos ao Pantip, estamos cercados por uma gangue de tailandesinhos com armamento pesado. Duas mulheres auxiliam no recarregamento de água dos pequenos. Uma delas nos deseja Feliz Ano Novo e passa uma líquido arenoso em nossos rostos.
4.
No Pantip está rolando uma águaficina. Os restaurantes estão quase todos fechados e os tailandeses que costumam nos atender estão se divertindo, bebendo, jogando água nos outros, curtindo o Ano Novo. Na última edição desta newsletter falei brevemente sobre como no estilo de viagem que faço, geralmente, tenho a oportunidade de ter uma convivência além da relação turista-serviçal com os locais, mas o que presencio no Songkran me emociona como há tempos eu não me emocionava. Isso vai além de qualquer coisa que eu já tenha vivenciado.
Depois de já ter viajado tanto, de estar há seis anos na estrada, tenho lidado com uma sensação esquisita de que nada mais me impressiona como costumava impressionar, como se eu não conseguisse mais enxergar a beleza no banal, ou como se o exotismo de uma cultura diferente da minha tenha se perdido, mas ver essa alegria nos tailandeses, principalmente nas crianças, uma alegria que ficou três anos reprimida, mexe comigo.
5.
Sempre tem um filho da puta.
Conheço 30 países. Dos lugares em que já estive, não lembro de conhecer um povo tão educado, tão solícito, tão gentil, quanto o povo tailandês. Até em uma águaficina como o Songkran há respeito, há uma ética de guerra. O problema aqui são os farangs. Os únicos incômodos que tive durante a batalha molhada foram com estrangeiros. Quase todos miram nos olhos. Eles não tem dó nem piedade.
Um farang filho da puta acha de bom tom mirar dentro do meu ouvido. Outro, um bombado hétero top com tatuagens tribais, joga um balde de água com força no meu rosto enquanto dirijo. Consigo ver a raiva reprimida em seus olhos. Esse é o único momento em que quase perco o controle – não só da moto.
6.
Assim como no Carnaval, uma hora cansa.
Depois de pouco mais de uma hora de batalhas memoráveis, decidimos ir embora. Perto da nossa moto, como se tramando uma emboscada, avisto o meu arquirrival – o tailandesinho que não deve ter mais do que 4 anos.
Minha arma está descarregada, de modo que tento passar por ele sem chamar a sua atenção. Em vão. Ao me ver, o tailandesinho corre para encher um balde e me espera sorrindo ao lado do nosso veículo de duas rodas. Não há o que fazer. Ele me molha dos pés à cabeça e, imediatamente, sai correndo para pegar mais água.
Meu arquirrival me molha novamente. Uma das mulheres responsáveis pelo recarregamento me chama, como se estivesse incentivando o duelo. Enquanto recarrego minha arma, o tailandesinho me molha mais uma vez. Antes que ele encha outro balde, vejo e pego uma vasilha próxima à mulher, encho d’água e jogo sem dó nem piedade em sua cabecinha.
Sempre tem um filho da puta. E geralmente ele é um farang.
7.
Acho que encontrei um final para o livro.
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A Tailândia não utiliza o calendário gregoriano, por isso estamos em 2566. Os anos por aqui são contados a partir da data da morte de Sidarta Gautama; não de Jesus Cristo.
A música do “Para ler ouvindo” é de uma banda de reggae tailandesa que é trilha sonora de absolutamente qualquer festa em Koh Phangan.
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Quando você diz que a pandemia teve início em 2.563, eu até peguei o celular pra olhar quanto tempo eu tinha dormido desde a última vez.
Essa "guerra" deve ser muito boa, até porque felicidade é mais contagiante do que Covid.
Filhos da puta à parte, os outros momentos são compensatórios.
Fala Matheus,
Me divirto muito lendo seus artigos. É como viajar junto com você e sua parceira nas histórias. Estou ainda me organizando para me tornar um "Matheus". Criei um projeto que desejo alavancar as viagens que se chama: Nômades Digitais Prateados em referência a pessoas 40+, 50+. Abraços!