[Passageiro #30] De nômade a imigrante
É estranho. Seis anos e trinta países depois, terei um comprovante de residência em meu nome.
Para ler ouvindo: In My Life, The Beatles.
1.
É estranho.
Na virada de 2016 para 2017 eu me demiti de um emprego que me fazia mal – não “larguei tudo” – e caí na estrada com duas mochilas e muitos sonhos.
Um pouco de contexto para quem chegou agora: não sou herdeiro, não ganhei na Mega Sena e meu salário mais alto como CLT foi de exatos R$ 1.632,00 por mês (sem os descontos). Nasci em Imbituba, uma cidadezinha no litoral de Santa Catarina, onde morei até os meus 23 antes de me mudar para a vizinha Tubarão por conta de uma oportunidade profissional (ganhar R$ 1.632,00 por mês).
A demissão – planejada – foi para viver de freelas e projetos próprios feitos de forma remota enquanto eu viajava pelo mundo. Desde então, foram 30 países, 54 cidades, 356.309 quilômetros rodados e muito trampo.
2.
É estranho.
Entre o cair na estrada e o agora, sentado em um café climatizado na paradisíaca e hedonista Koh Phangan, na Tailândia, casado com a mulher que amo e estabelecido profissionalmente, seis anos se passaram. Fui dos 28 aos 34 como um Uno de firma com escada no teto vai de 0 a 100 km/h.
Na minha primeira vez no país, em 2017, em uma vida anterior, eu era outro; não apenas fisicamente, com alguns quilos e rugas a menos, mas tudo aquilo que eu sabia, ou achava que sabia, era limitado ao contexto de alguém nascido em uma cidadezinha no litoral de Santa Catarina. Eu era ignorante e preconceituoso. Eu ainda não havia conhecido o frio para desfrutar o calor. E o oposto.
“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.” (Amyr Klink)
3.
É estranho.
Nem sempre foi bonito, nem sempre foi confortável, vez ou outra doeu, mas me mudou; deixou marcas.
“Viajar nem sempre é bonito. Nem sempre é confortável. Às vezes dói, até parte seu coração. Mas tudo bem. A jornada muda você; isso deve mudar você. Ela deixa marcas em sua memória, em sua consciência, em seu coração e em seu corpo. Você leva algo com você. Felizmente, você deixou algo bom para trás”. (Anthony Bourdain)
4.
É estranho.
E eu fico emotivo a cada linha, me apego a citações porque talvez eu ainda não consiga processar ou colocar em palavras o que esse momento representa para mim. Quem sabe na próxima edição desta newsletter.
É estranho escrever este texto sabendo que será o último dos dias nômades, que na próxima semana não serei mais nômade; mas um imigrante, um a mais entre tantos em Paris.
Sim, Paris. Vou morar em Paris.
E não existiria Paris se não existisse I.
4.
É estranho.
Eu nunca liguei muito para o meu aniversário, mas desde o retorno de Saturno parece que ficar velho a cada ano ganhou um novo significado.
Fiz 30 em Belgrado, 31 em Krabi, 32 em Cape Town e 33 em um voo de Bangkok para Addis Ababa. 34 farei em Paris; na minha casa.
5.
É estranho.
Eu estava na Tailândia quando a OMS decretou o início da pandemia em 2020; e também quando decretou o seu fim em 2023.
Nesse meio tempo eu fiz muita coisa. E conheci I.
6.
É estranho.
Na virada de 2019 para 2020 eu já estava meio de saco cheio desse negócio de nomadismo digital, pensava em sossegar em algum lugar, São Paulo ou Lisboa, mas um amigo, na época um amigo de internet, o Bruno Clozel, o meu Dean Moriarty, havia acabado de se divorciar e falou algo sobre viajar. Por algum motivo aleatório eu tinha comprado uma passagem só de ida para a Tailândia e perguntei “quer ir comigo?”, meio por educação, meio torcendo muito para que ele topasse o convite inusitado, “bora”, ele respondeu.
7.
É estranho.
No meu aniversário de 31, em Krabi, Bruno improvisou uma festa, convidou a sua ficante da vez e suas amigas, todas polonesas, além do holandês que trocava a nossa roupa de cama uma vez por semana, o cara com o sovaco mais fedido do Sudeste Asiático – talvez não apenas do Sudeste, mas de todo o continente –, e ainda teve o cuidado de fazer espetinhos vegetarianos (eu era vegetariano nessa época), mas minha cabeça não estava mais ali naquele grupo eclético em línguas e odores; mais ou menos nessa época eu comecei a falar com frequência (via Face Time) com uma loirinha de Porto Alegre (nascida em Canoas), piercing no septo, tatuagens nos braços; o jeito que ela espreme os olhos quando sorri, nossa, acho que foi aqui que me apaixonei.
8.
É estranho.
A loirinha de Porto Alegre (nascida em Canoas) curtiu um post meu no LinkedIn, gostei do que vi, fiz a minha pesquisa no Instagram, segui a loirinha, a loirinha me seguiu de volta, respondi um story sobre um show do Tame Impala, ela foi simpática, webnamoramos, namoramos, casamos.
9.
É estranho.
E foi estranho.
Pandemia, telas, aquela coisa toda, e de repente você foi de um lado do mundo para o outro e está no aeroporto de Guarulhos (porque ela perdeu o voo para Congonhas) esperando a loirinha de Porto Alegre (nascida em Canoas), vocês vão se conhecer, passar a noite juntos e desde então dormir na mesma cama; em quase 20 países.
E talvez seja estranho porque nunca pareceu estranho. Não pra gente, pelo menos.
10.
É estranho.
Na Koh Phangan de 2020, Bruno (Dean) e eu conhecemos o Leandro (@euleandromariani).
Na Koh Phangan de 2023, Leandro e seu companheiro, o querido e francês Guillaume, organizam uma open house para inaugurar o seu novo lar. Nossa história, minha e de I., deixa os outros convidados perplexos. “LinkedIn? Como assim?”. “Vocês moram juntos desde que se conheceram pessoalmente? Como assim?”.
“Como assim?”.
Eu também não sei, imagino que I. também não saiba, mas no momento temos uma certeza: nada, no momento, nos faria mais felizes do que inaugurar um novo lar; assim como Leandro e Guillaume.
11.
É estranho.
E Paris talvez seja uma escolha estranha para quem tem uma opinião sobre Paris ser isso ou aquilo, ou sobre porque tal lugar é mais barato, ou sobre porque o clima daquela cidade é melhor, mas a real é que nós realmente não estamos interessados em saber a sua impressão sobre a cidade; estamos dispostos a descobrir a nossa Paris.
12.
É estranho.
Ter que comprovar renda, comprovar que você é um bom pagador, que tem meios suficientes para bancar o aluguel. Reservar um Airbnb era muito mais fácil.
13.
É estranho.
Vão me perguntar “por que Paris?”, “como faço para morar em Paris?”, “qual o melhor visto imigrar para a França?”, e responderei que “não sei”, “minha esposa tem cidadania italiana e conseguiu um emprego em Paris”, “não tenho nenhuma dica”, um alívio não ter nenhuma dica, nenhum conselho; dei muitas dicas nos últimos seis anos.
14.
É estranho.
Cada vez fica mais estranho.
É tão estranho que eu não sei como acabar este texto; estou adiando o seu fim.
Ansiedade.
A mesma ansiedade que senti ao me demitir na virada de 2016 para 2017. A mesma ansiedade que senti em 2020 no Aeroporto de Guarulhos esperando I. desembarcar.
Ansiedade.
A ansiedade de inaugurar um novo lar.
Ansiedade.
Seis anos depois, tudo o que eu quero é acordar na nossa cama; e ver os olhos espremidos de I. ao sorrir.
Em Paris.
🤔 Pergunta do assinante do Clube Passageiro
“Tô aqui refletindo que você vai finalmente se aposentar do nomadismo (…) Quero saber se você tá com medo de não se adaptar a ‘ficar parado´ depois de tanto tempo nômade. Aquele receio de passar uns 6 meses em Paris e cansar, sabe? Ser ainda mais dia da marmota do que o dia da marmota como viajante que você comentou na última edição.” (
)
Thiago, querido amigo, estarei em Paris, a Meca dos escritores, compartilhando os meus dias com a mulher que me escolheu (e não o contrário) para fazer isso para sempre. Medo eu tinha de morar em Imbituba para sempre (e eu amo Imbituba, mas vocês entenderam).
💳 Clube Passageiro e outros benefícios
O Clube Passageiro é uma comunidade de leitores(as) interessados(as) em narrativas de viagens.
Uma vez por mês são discutidos, via Zoom, livros e lugares – não necessariamente nessa ordem – que marcaram a nossa vida (tipo um Clube de Leitura, mas sem regras) em encontros com duas horas de duração. Eventualmente, autores e autoras serão convidados(as) para um bate-papo.
Em nossa comunidade fechada no Telegram você poderá trocar ideias sobre escrita, processo criativo e mercado literário com outros participantes – e comigo; perguntas sempre serão bem-vindas.
O Clube Passageiro está disponível nas três opções de assinaturas pagas. Confira os benefícios de cada um deles neste link (estou oferecendo 30% de desconto nos planos mensal e anual durante o mês de maio).
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento:
Você tem algum projeto literário engavetado? Talvez eu possa te ajudar.
✍️ Notas de rodapé:
Eu deixarei de ser nômade, mas continuarei a ser um viajante; a diferença, agora, é que terei um lugar para voltar.
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Acho que o principal da decisão é essa sensação de necessidade com alívio sabendo que a vida viajante nunca acaba, ela só vai acontecendo com pausas, entre avião e um novo cantinho pra chamar de casa!
Vou adorar acompanhar essa nova etapa de vocês em Paris e com certeza outras cidades francesas que vocês vão acabar explorando!!
Vi o post no IG e vim correndo. E seu texto me fez chorar. É muito louco fazer essa “anamnese” das nossas emoções quando sigamos fazendo uma retrospectiva do que foi, sentindo um o que será sem saber o que será. Mesmo agora sabendo ser Paris. Que Paris seja incrível pra vocês!