[Passageiro #39] A Síndrome de Paris
Imersão nem tão cultural entre a Reunificação do Vietnã e o Dia da Bastilha.
Para ler ouvindo: Riders on the Storm, do The Doors.
1.
Eu gosto de ser surpreendido em minhas viagens, de modo que, tento evitar, ao máximo, ler opiniões de outros viajantes sobre determinado destino ou atração turística. E isso, às vezes, tem um preço.
Quando você pesquisa no Google por “da nang vietnã” as primeiras imagens que aparecem são de uma ponte sustentada por duas esculturas no formato de mãos que devem, você imagina, estar ali há anos, talvez séculos, dado a sua aparência; os musgos, as rachaduras. Foram essas imagens em blogs e perfis no Instagram que levaram I. e eu, em uma manhã de uma segunda-feira qualquer, até Ba Na Hills.
2.
Contratamos o passeio através de uma agência. 1,7 milhão de dongs vietnamitas para duas pessoas – o equivalente a 342 reais. Pagamento em dinheiro. Eles não aceitam cartão.
A minivan chega cedo à Casa Rosa, o hotelzinho em que estamos hospedados. De lá, na beira-mar de Da Nang, até Ba Na Hills, são cerca de 30 minutos.
Ba Na Hills, descobriríamos mais tarde, não é um parque nacional ou algo do tipo; é um resort; a porra de um resort inaugurado em 2018 no topo de uma montanha no Vietnã.
A Golden Bridge, a ponte das esculturas em formato de mãos que é mais jovem do que nós, fica a pouco mais de 1.400 metros acima do nível do mar. Para impulsionar o turismo na região, o governo vietnamita construiu um teleférico gigantesco; o maior do mundo, com pouco mais de 5.8 km de extensão. Ele faz o duro – e demorado – trabalho de nos levar até o topo.
3.
A subida é tranquila e a paisagem é como um sonho lúcido em Mianmar. O desembarque, no entanto, é um alerta para a enrascada em que nos metemos.
Turistas, muitos turistas. É praticamente impossível locomover-se pela Golden Bridge, a principal atração da porra do resort, sem esbarrar em alguém. Turistas, muitos turistas, procuram os melhores ângulos para fotografias que serão compartilhadas em suas redes sociais e atrairão outros turistas, muitos turistas, para a porra do resort.
A travessia do maior teleférico do mundo é tão demorada que I. e eu chegamos ao topo da porra do resort com fome, muita fome. Ela compra pipoca, eu um cachorro-quente. A guia da excursão insiste em tirar uma fotografia do casal, a gente tenta recusar educadamente, “não, obrigado, estamos comendo”, “no problem, photo, photo, beautiful”, somos vencidos pelo cansaço.
4.
As mãos. De longe, elas realmente nos convencem de que estão ali há décadas, séculos, talvez. Mas, quando chegamos mais perto vemos que, na verdade, estamos sendo tirados para otários. Tudo não passa de efeito visual.
Elas, as mãos, são feitas de concreto e pintadas detalhadamente para criar os efeitos que as deixam com esse aspecto de mais velhas; os musgos, as rachaduras. Apenas chegando perto que nos damos conta de que tudo não passa de um faz de conta; um belo e filho da puta faz de conta.
5.
A porra do resort não é só a Golden Bridge. Subindo mais um pouco, dessa vez sem a ajuda do teleférico, você chega em um… vilarejo francês. Uma réplica, como em um parque temático do Beto Carrero (minha referência, já que nunca fui na Disney). É aí que as coisas vão ficando ainda mais deprimentes e você percebe que, talvez, talvez você tenha sido enganado.
Eu vim pro Vietnã pra perder o dia na porra de um resort? Sério?
Sinto palpitações. Meu coração bate forte. Minhas mãos suam. Estou enjoado. Seria uma crise de ansiedade? Ataque de pânico?
I. e eu acabamos por entrar em um restaurante qualquer do vilarejo francês artificial e logo percebemos que, pelo preço da cerveja, aparentemente estamos, de fato, na França.
40 reais por uma cerveja? Imersão cultural.
6.
“Em 1986, o psiquiatra japonês Hiroaki Ota identificou um estranho fenômeno entre turistas japoneses na França. A cada ano, pouco mais de uma dezena deles apresentava sintomas como ansiedade, enjoos, sudorese, palpitação, alucinações e uma tristeza extrema ao chegar à capital francesa. Segundo ele, a ‘Síndrome de Paris’ era uma reação ao estresse causado pelo enorme desapontamento que eles encontravam do lado de fora do aeroporto, aliado ao choque cultural extremo, ao jet lag e ao cansaço da viagem. Os sintomas podem ser tão intensos que alguns deles acabam hospitalizados ou, em casos ainda mais graves, precisam ser repatriados ao Japão com auxílio da Embaixada Japonesa. Só em 2011, foram registrados 20 casos de japoneses que sofriam com a Síndrome de Paris”.
A citação acima é de um texto da
no 360meridianos.7.
Na edição #32 desta newsletter contei sobre a minha primeira vez na Shakespeare and Company, a livraria favorita da Geração Perdida.
Não nego que minha curiosidade inicial com a livraria deu-se, principalmente, por conta de Ernest Hemingway ter sido um frequentador assíduo nos anos em que Paris era uma festa.
Saí de lá com um livrinho em inglês com poemas de Leonard Cohen. A Shakespeare and Company é, até hoje, uma das melhores livrarias para expatriados em Paris; o catálogo de obras em língua inglesa é bastante diversificado.
Eis que I. e eu estamos novamente pelas redondezas da livraria, comento que quero comprar a versão física de um livro do Nick Cave que eu havia visto em nossa visita anterior, porém, ao chegar na Shakespeare and Company nos deparamos com uma fila de turistas; muitos turistas que estão lá apenas pelas fotos e sairão sem ter comprado um livro sequer.
Desisto.
8.
No Porto, a Livraria Lello que, supostamente, teria servido de inspiração para J.K. Rowling em Harry Potter (ela nega), passou a cobrar um ingresso de 5 euros. O motivo? Turistas, muitos turistas, visitavam a livraria apenas para garantir boas fotos para seus perfis no Instagram; porém, não compravam um livrinho sequer.
Em 2017, quando começou a cobrar a entrada, a Lello, que estava à beira da falência, recebeu 1,2 milhão de visitantes e faturou mais de 7 milhões de euros.
Que tal fazer o mesmo, Shakespeare and Company?
9.
Em minha despedida na Folha de S.Paulo (naquela época eu ainda não sabia que aquele texto seria o último) conto como I. e eu tivemos a sorte de participar das comemorações do aniversário de 47 anos da reunificação do Vietnã.
“É 30 de abril, aniversário de 47 da Reunificação do Vietnã, e, enquanto fogos de artifício explodem no horizonte, observo sorrisos e olhos marejados de vietnamitas de todas as idades”.
No último dia 14 participamos em Paris do nosso primeiro Dia da Bastilha; o feriado mais importante do país em comemoração ao evento que foi estopim para a Revolução Francesa.
Enquanto fogos de artifício explodem no horizonte, a maioria deles tendo a Torre Eiffel como base, observo sorrisos de um grupo específico: vietnamitas (reconheço a bandeira no que parece ser a camisa da seleção local) sorrindo enquanto compram cervejas de um ambulante por 7 euros (40 reais).
Imersão cultural. A porra de uma imersão cultural.
🧠 Para ler, assistir e ouvir:
Novidade: após uma rápida passagem pela Folha de S.Paulo, tô de volta na grande mídia; agora vocês também poderão me ler quinzenalmente no portal Terra. O primeiro texto, uma reedição de um artigo de 2022 do blog sobre como eu não larguei tudo para viajar o mundo, pode ser lido aqui. A partir da próxima coluna teremos conteúdos inéditos por lá.
Escreve poesias, crônicas e/ou contos? O Grupo Editorial Caravana está recebendo originais até 31 de julho. Não se trata de antologia ou coletânea, mas da publicação de um livro completo, de autoria própria e individual. Os autores selecionados assinarão contrato de cessão de direitos autorais com a Caravana, com duração de dois anos. Ou seja, terão as publicações custeadas. No contrato haverá possibilidade de publicação da obra em e-book e sua tradução para o espanhol, com vistas a lançamento e distribuição na Argentina.
Falando sobre publicação de livros, André Conti, editor da Todavia, explicou de forma didática na Folha de S.Paulo como funciona o mercado literário e todo o caminho por trás dos preços de capa (uma resposta ao tuíte do Felipe Neto sobre a suposta “mistura de ganância com burrice” das editoras no Brasil).
Na próxima segunda vamos assistir o show do Mac DeMarco aqui em Paris. Na edição #27 desta newsletter contei como me tornei adepto do “DeMarquismo”.
Estou relendo Um brasileiro em Berlim, do saudoso João Ubaldo Ribeiro. Crônicas divertidíssimas do tempo em que o escritor baiano viveu na Alemanha.
In the Mood for Love, do diretor Wong Kar Wai, é uma boa pedida para o fim de semana. Tem no MUBI. Cansado de perder tempo e de gastar energia mental tentando decidir o quê assistir nos serviços de streaming, tenho optado por reassistir filmes e séries que gostei no passado.
Gosto de trabalhar ouvindo Tommy Guerrero, músico e skatista que desde o final dos anos 1990 tem lançado álbuns instrumentais com elementos de rock, jazz, soul, trip-hop e música latina. Meu álbum favorito é Road to Knowhere.
📩 Para se inscrever:
é jornalista, escritora e biblioterapeuta. Em sua newsletter você encontrará crônicas afetuosas, dossiês de literatura e dicas culturais que vão além da lista de best-sellers.👨🎓 Cursos com inscrições abertas:
- Escrita Criativa
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🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento:
Você já levou algum golpe ou foi roubado durante uma viagem?
Em 2019, na minha primeira vez em Paris, fui parado por uma jovem com uma prancheta. Ela dizia fazer parte de uma ONG e estava coletando assinaturas para alguma causa social que tinha a ver com crianças em um orfanato. Assinei. Ela pediu uma contribuição de 30 euros, falei que não tinha esse dinheiro, ela insistiu e, imediatamente, uma senhora em um ponto de ônibus começou a gritar com a jovem em uma energia muita parecida com o vídeo que bombou na última semana do “attenzione pickpocket”. Ao perceber que, aparentemente, estava sendo vítima de um golpe – ainda que não soubesse exatamente qual –, virei as costas e fui embora.
O “golpe da prancheta”, como é conhecido em Paris, vai além da doação para uma ONG que não existe: uma versão mais elaborada envolve comparsas que roubam a sua carteira enquanto você assina o suposto abaixo-assinado.
Há umas semanas tentaram esse golpe comigo e com I. em uma área turística de Paris. Dessa vez, nós fomos a senhora do attenzione pickpocket e montamos guarda a espera de alguma tentativa de roubo. Os golpistas, no entanto, devem ter percebido nossos olhares, uma vez que, logo após abordarem um casal de turistas desavisados, decidiram ir para outro lugar.
✍️ Notas de rodapé:
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em encontros via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Para participar dos próximos encontros e ainda ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram, basta assinar um dos planos pagos da newsletter. No próximo dia 27 (última quinta-feira do mês), às 18h do Brasil, falaremos sobre Marca Pessoal para Profissionais Independentes. Assine com 30% de desconto.
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
esse texto me levantou muitas lembranças - e que saudades de paris. quando desembarquei pela primeira vez, no aeroporto de beauvais (que tinha papel higienico cor de rosa!!!!!!), peguei um transfer até a gare du nord. lá, um funcionário do metrô veio me ajudar a comprar o ticket. selecionou ali, 7 dias, até paris 5, cento e muitos euros. eu já mandei "amigo vc está louco ninguém vai até paris 5 por 7 dias, versailles é tipo paris 3 e é única vez que vou sair de paris 1, me dá o ticket pra paris 1 apenas e por 3 dias". ele ficou irritado. daí disse que meu cartão não passou e me pediu 50 euros na mão (eram 2 passagens no caso). eu tava virada, tinha pegado voo da ryan air às 4am em barcelona, podre de cansada, meu francês era intermediário, primeira viagem internacional, enfim. dei o dinheiro. surpresa (pra mim porque qualquer pessoa teria se ligado): era golpe!!!!!!! não bastasse isso, fiquei no airbnb que tinha uma idosa que me perseguia e queria roubar minha alma, eu juro. dito isso, paris segue minha cidade favorita do mundo e espero em breve realizar o sonho de morar aí!!!! ps - amo os textos de viagem!!!!
Que máximo encontrar a indicação para a minha News aqui! Obrigada pela generosidade 🙏🏻