[Passageiro #41] Um interminável mês na capital mais bizarra da Europa
Em junho de 2021, quando boa parte das fronteiras internacionais estavam fechadas, fui parar na Escópia, capital da Macedônia do Norte.
Para ler ouvindo: Клетка, por Molchat Doma.
1.
Um pouco de contexto antes que eu me torne, talvez com razão, persona non grata na Macedônia do Norte.
O terremoto
26 de julho de 1963. Eram 5h17 da manhã quando a terra começou a tremer. Em apenas vinte segundos, a cidade da Escópia, atual capital da Macedônia do Norte, antiga república da Iugoslávia, foi quase completamente destruída.
O terremoto, de força 6,9 na escala Richter, arrasou 80% dos edifícios e matou mais de mil pessoas, deixando ainda milhares de feridos e cerca de 200 mil desabrigados.
A reconstrução
Em 1965, o arquiteto japonês Kenzo Tange venceu um concurso internacional para redesenhar e reconstruir o centro da cidade.
Tange, com a ajuda de outros arquitetos, optou por um design brutalista, estilo que originou-se na Inglaterra pós-Segunda Guerra Mundial e é conhecido por formas frias e funcionais; presente hoje em boa parte dos países com histórico comunista – encontrei esse tipo de arquitetura na Sérvia, Montenegro e Croácia, ex-repúblicas da antiga Iugoslávia, e também na Rússia e Geórgia.
Neste link você encontra fotos maravilhosas da Escópia desse período pós-reconstrução; “maravilhosas” se você, assim como eu, curte esse tipo de arquitetura que exala nostalgia.
Skopje 2014
Aqui as coisas começam a ficar estranhas.
Se você já esteve nos países da antiga Iugoslávia, sabe que eles se parecem entre si – o que é normal, tendo em vista que faziam parte da mesma nação.
Pois bem, Nikola Gruevski, ex-primeiro ministro que governou a simpática Macedônia do Norte entre 2006 e 2016 (ele fugiu para a Hungria em 2018 para evitar uma sentença de dois anos de prisão pela compra ilícita de uma limusine de luxo; Gruevski também é acusado de outros crimes de corrupção e recebeu asilo político de Viktor Orbán, o primeiro ministro húngaro de extrema-direita, amigo do Bolsonaro, gente boa), quis mudar isso apenas porque sim.
Gruevski, um projetinho de imperador populista, achou de bom tom gastar 260 milhões de euros em um novo rebranding arquitetônico na capital. Cerca de 20 edifícios com estilo neoclássico foram construídos, arruinando o plano original pensado por Tange e outros arquitetos da época; não bastasse isso, Gruevski ordenou a construção de pouco mais de 40 monumentos e estátuas que não fazem o menor sentido.
As estátuas
O que me choca é que na lista de crimes (crimes mesmo, sem o “supostamente” que a imprensa adora) cometidos pelo ex-primeiro ministro não conste o de inimigo do bom gosto.
Procure no Google por “skopje macedonia statues”.
Tem até a porra de um búfalo igual ao de Wall Street em Nova York.
Tipo, do nada.
Sério isso, Gruevski?
260 milhões de euros.
Tem também uma réplica do Arco do Triunfo de Paris que vive pichada por manifestantes contrários ao Skopje 2014.
260 milhões de euros.
2.
Após três meses de pores do sol inesquecíveis na Cidade do Cabo, talvez a cidade que mais mexeu com a gente durante os dias nômades, I. e eu desembarcamos na Escópia.
E aqui vale um novo contexto: era junho de 2021. Graças ao amigo de Orbán, apenas sete países estavam abertos sem restrições para brasileiros: Albânia, Bielorrússia, Bósnia e Herzegovina, Eslovênia, Macedônia do Norte, Sérvia e Ucrânia. Como estávamos fora do Brasil há mais de 6 meses, essas regras, supostamente, não se aplicavam a nós; porém, além de brasileiros, estávamos vindo da África do Sul, onde uma nova variante havia sido descoberta; estes mesmos sete países eram os únicos abertos para viajantes vindos do país africano.
“Ué, mas vocês estavam viajando durante a pandemia?”
Sim, vivíamos uma vida nômade na época, o que significa que não tínhamos uma casa, um comprovante de residência em nosso nome, um lugar para voltar. Eu, por exemplo, vivi mais de 6 meses na Tailândia em 2020 por conta das fronteiras fechadas. Fiquei “preso” lá.
Era verão na Europa.
A temperatura no dia em que aterrizamos no aeroporto da Escópia beirava os 40 graus.
Já viajei o suficiente para saber que o caminho do aeroporto até o centro de uma capital geralmente é igual; uma grande rodovia cercada de vários nadas; talvez um pouco de vegetação.
Conforme nos aproximávamos do centro da Escópia, a paisagem foi mudando. A vegetação queimada pelo verão deu lugar aos prédios brutalistas pichados.
O que descreverei a seguir parece cena de filme de terror, infelizmente não tenho registro disso, mas aconteceu.
Em uma dessas janelas, uma cabeça careca de boneca estava cuidadosamente colocada em uma sacada.
Uma porra de uma cabeça careca de boneca. Como quem olha o movimento.
3.
O Airbnb era ótimo. Pagamos exatos R$ 4.150,64 por um mês em lugar espaçoso e com pequenos luxos que nos fariam deixar nossa Base da Tranquilidade apenas para fazer as compras necessárias no supermercado do térreo do edifício.
“R$ 4.150,64 por um apartamento na Macedônia do Norte?
Dá para viajar por lá com bem menos!”
Sim, dá.
Assim que chegamos, Igor, nosso host, um careca bombado na casa dos 40 que juro, lembra em muito o personagem Niko Bellic de GTA IV, nos levou até a delegacia de polícia para fazermos o check in na cidade (!!!) – aparentemente turistas precisam fazer isso; do contrário são obrigados a pagar uma multa na saída do país.
– São 15 euros por pessoa. Não aceitam cartão – não só não sabíamos disso e não tínhamos euros em espécie, como essa não é a moeda oficial da Macedônia do Norte.
Niko, digo, Igor, havia nos contado sobre suas viagens para cidadezinhas no estado de Goiás.
– E o que você foi fazer lá? – pergunto.
Silêncio.
– Eu posso pagar os 30 euros e vocês me pagam depois – guardem essa informação.
4.
Os bairros fora do centro têm cores neutras; como se um vermelho, um amarelo ou um azul fosse crime inafiançável. Nos restaurantes, cinzeiros. Clima de anos 1990. Mas isso eu já esperava por conta de incursões anteriores pelo Leste Europeu.
Faz calor, muito calor.
Seguindo a avenida do nosso prédio há um shopping; que não tenho nada para falar a respeito; é apenas um shopping. O problema é o caminho. Como parte do rebranding, Gruevski mandou derrubar a grande maioria das árvores e as trocou por concreto. Escópia no verão é uma grande caixa quente e cinza de concreto; com cheiro de cigarro. Lembra um pouco São Paulo, mas sem as pessoas em situação de rua e os assaltos da gangue da bicicleta.
Encontramos, ao acaso, o que parece ter sobrado de um parque. Umas árvores. Um pouco de verde. Uns cachorros brincando.
Sentada em um banco a poucos passos uma mulher nos observa com interesse. Ao chegarmos mais perto, ela arrota alto olhando fixamente em nossos olhos. I. e eu nos entreolhamos, como quem diz “isso realmente aconteceu?”, e, ao chegarmos mais perto, a mulher arrota novamente. Dessa vez ainda mais alto.
5.
I. marca um horário em um salão de beleza.
Eu não faço a menor ideia de como é ser uma mulher viajando por um país estrangeiro (ou ser uma mulher, no caso), de modo que sempre que I. precisa locomover-se em terras estranhas, seja a pé ou no transporte público, costumo acompanhá-la para entender se é seguro.
Deixamos a nossa Base da Tranquilidade e seguimos pela avenida principal até chegarmos no endereço: um prédio residencial antigo de arquitetura brutalista.
Na Macedônia do Norte usa-se o alfabeto cirílico e, assim como na maioria dos países europeus, nos botões dos interfones estão os sobrenomes dos moradores/ocupantes, não o número do apartamento ou sala comercial. I. tenta, em vão, ligar para a dona do salão. Quando uma velhinha abre a porta para sair, aproveitamos para entrar no edifício.
O elevador é de madeira – e me lembra da vez em que fiquei cerca de 4 horas preso em um elevador idêntico em Belgrado (vocês lerão essa história em Passageiro, o livro) – e o cheiro, bom, o cheiro é de cigarro; umas três ou quatro gerações de cigarro. As luzes estão queimadas.
O corredor é escuro. Algo está pingando. Cenário de filme de terror; falta apenas alguém arrastando correntes. Brinco, meio que sério, que se alguém nos sequestrasse para roubar nossos órgãos e, por consequência, nos matar, nossos pais nunca saberiam. A manchete seria: “Casal de brasileiros está desaparecido na Macedônia do Norte”. Nossos corpos jamais seriam encontrados.
Na porta do salão, que encontramos meio ao acaso, há uma outra mulher esperando; ela segura um patinete elétrico (estamos no 11º andar). Por sorte, a mulher do patinete fala inglês.
– Estou tentando falar com ela [a mulher do salão]. Meu horário era 09h00.
– Puxa, o meu era 09h30 – diz I.; são 09h25.
Resolvemos esperar até 09h45. A mulher do salão não aparece; nem dá satisfação.
6.
Conforme as semanas avançam, a temperatura aumenta.
Nosso apartamento não dispõe de ar condicionado, de modo que resolvo pedir para Niko, digo, Igor, um ventilador.
– Sem problemas, Matheus. Levo para você no fim da noite.
Estou assistindo um jogo qualquer da Eurocopa (foi assim que muita gente descobriu a existência da Macedônia do Norte; Pandev ídolo) quando Niko, digo, Igor, me envia uma mensagem.
– Estou aqui. Desça.
Niko, digo, Igor, abre o porta-malas do seu carro, uma BMW 3 Berline preta digna de alguém que está pronto para sumir com um corpo em um filme de ação.
O porta-malas da BMW é bem espaçoso. O ventilador é grande, desses de pé, mas mesmo assim, caberia um corpo, talvez dois, no porta-malas.
– Você me deve 30 euros – Niko, digo, Igor, me diz olhando fixamente para o porta-malas.
– Eu… eu não tenho 30 euros em espécie, posso lhe transferir o dinheiro?
– Pode. Agora.
Faço a transferência enquanto fito o porta-malas da BMW.
– Pronto. Aqui está o comprovante.
– Pronto. Aqui está o ventilador.
7.
Em nosso interminável mês na Escópia pegamos dois táxis. Os dois motoristas sugeriram a mesma coisa: “vocês deveriam ir para Ohrid”.
Fomos.
Ohrid é famosa por seu lago com mais de dois milhões de anos de idade; o mais antigo da Europa. O lago, em si, é bonito. A orla também. Os restaurantes de frutos do mar promissores; são baratos, pelo menos.
O centrinho é uma mistura da Escópia com qualquer outra cidade medieval da Europa; o que, confesso, não é um elogio.
Nosso final de semana em Ohrid é agradável. Caminhadas ao redor do lago, comida boa; um escape da caixa de concreto cinza e fumegante da capital.
Em nossa última diária, um domingo agradável, voltamos para o hotel no por do sol. Um rapaz, gentilmente, segura a porta do elevador. Ele está carregando duas cadeiras e desce no mesmo andar que nós, o 4º.
Para a minha supresa (após quase um mês na Macedônia do Norte será que ainda consigo me surpreender com algo?), o rapaz abre a porta do nosso quarto. Espero ele se acomodar e entro em seguida.
– Hello! – sou simpático.
Nosso quarto é um duplex. No andar inferior há uma portinha tipo o quarto do Harry Potter nas escadas da casa dos seus tios. O rapaz está guardando as cadeiras embaixo da escada e pegando uma mesa (?).
Sem reação, em um ponto em que já desisti de entender este simpático país, apenas aceno com a cabeça enquanto subo os degraus em direção ao nosso quarto.
– Pode deixar que eu fecho a porta – ele diz.
– Fique à vontade – eu respondo.
8.
Da Escópia fomos para Londres; a Inglaterra não só abriu as suas fronteiras, como liberou a vacina da Covid-19 para qualquer pessoa que estivesse em seu território (foi lá que tomamos as nossas duas doses).
Passamos pela imigração do aeroporto da Escópia sem problemas. Na hora de embarcarmos para Londres (aquela hora em que você já despachou as suas bagagens, passou pelo raio-x e pela imigração e só falta entrar no avião), uma funcionária olha estranho para o nosso passaporte.
– Brasileiros? Vocês não podem entrar na Inglaterra.
– Passamos o último mês aqui. Vocês podem entrar, logo, nós também.
– Mas vocês têm provas disso?
– É só olhar os carimbos dos nossos passaportes.
– Ok, vou checar com a tripulação.
Eu sempre fico tranquilo nestes casos porque, na grande maioria das vezes, você, que viaja muito, sabe mais das regras do que as pessoas das companhias aéreas.
– E por que você ficou um mês na Macedônia?
Isso eu não soube responder.
🧠 Para ler, assistir e ouvir:
Na época em que eu estava na Macedônia do Norte, fiz um texto com 10 curiosidades sobre o país. Você sabia, por exemplo, que a Madre Tereza de Calcutá nasceu lá?
Saiu um texto novo meu no Terra: minhas 10 cidades favoritas para viver como nômade digital.
“Macedônia do Norte? Mas existe outra Macedônia?”. Sim, e faz parte da Grécia. Rolou mó treta até a Macedônia acrescentar o “do Norte” em seu nome oficial. Leia aqui os detalhes.
Na última edição desta newsletter mencionei que saiu uma versão em português do livro sobre criatividade do Rick Rubin, aí comprei, li quase tudo, e puta que pariu, que coisa ruim. É um compilado de frases clichês misturado com interpretações simplistas de zen budismo e estoicismo. Sério. Peço desculpas pela menção.
Essa semana escrevi algumas histórias que se passam na Rússia – e que estarão no livro novo – e lembrei de quando eu andava sem rumo por São Petersburgo ouvindo The Age of Understatement, o álbum de estreia do The Last Shadow Puppets. O clipe da faixa-título, que se passa em Moscou, é lindíssimo.
Acho que por hoje é isso. O que tenho assistido de novo? You, na Netflix. Demorei para assistir a terceira temporada e agora estou completamente viciado.
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O livro sobre criatividade do Rick Rubin é ruim, mas a newsletter do Tiago sobre o tema é maravilhosa.
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Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Esse seu texto sobre a Macedônia do Norte foi magnânimo. Eu passaria mais duas horas lendo sobre as suas vivências misturadas às história do local. Ou seja, aguardando o livro. Estive em Roma no início de julho; decepção completa: calor insuportável, turistas por todos os lados e transporte público quase inexistente.
Cara, que lugar bizarro, pelo seu relato parece que tudo lá lembra aqueles filmes de psicopatas dos anos 70.