[Passageiro #43] Roda punk em um beach club na Indonésia
O tipo de crônica que eu escreveria para a VICE se eles não tivessem falido.
Para ler ouvindo: Venturead, por White Swan.
1.
Um nômade digital brasileiro que conheci em Koh Phangan, na Tailândia, foi quem me passou o contato de Wayan, simpático motorista que nos espera no Aeroporto de Denpasar em Bali, na Indonésia, e explica a estrutura tradicional de batismo balinesa. Por aqui os bebês geralmente são batizados pela ordem de nascimento: Wayan (Primeiro), Made (Segundo), Nyoman (Terceiro) e Ketut (Quarto); independentemente do sexo. Se você tiver um quinto filho, o ciclo recomeça. É totalmente possível (e comum) que dois Wayans formem um casal; e seu primeiro filho também irá se chamar Wayan.
Diferentemente do restante do país, onde a maioria é islâmica – a Indonésia é o maior país muçulmano do mundo –, em Bali a religião predominante é o hinduísmo, tendo sido importado da Índia via Java. Após o Êxodo de Majapahit, violenta rebelião islâmica que varreu a região, a realeza hinduísta simpatizante de Shiva picou a mula de Java, refugiando-se em Bali. Além da religião, os javaneses também trouxeram para cá o sistema hinduísta de castas. Quem me conta tudo isso enquanto faço cara de paisagem é Wayan, não o motorista, mas o simpático gerente da pousada em que me hospedo em Ubud, cidade balinesa localizada entre plantações de arroz e vilas agrícolas.
Mesmo que por aqui o sistema de castas não seja tão discriminatório quanto o indiano, os balineses respeitam uma complexa hierarquia social. Confesso que eu teria mais chances de encontrar uma civilização secreta no coração da Amazônia do que tentar entender o emaranhado sistema de clãs que ainda vigora, mas basta dizer que, para nossos padrões ocidentais, todo mundo em Bali faz parte de um clã; todo mundo sabe a que clã faz parte; todo mundo sabe a que clã fazem parte os outros. Wayan, não o motorista, nem o gerente da pousada, mas o simpático (todo mundo aqui é simpático) atendente da loja onde compro um chip com internet para o meu celular, identifica que faço parte do clã dos nômades digitais e me indica um café moderninho com um bom Wi-Fi.
2.
Kopi Luwak é um café típico feito a partir de grãos extraídos das fezes de civeta, um mamífero típico da Ásia que lembra o nosso quati; “Kopi” significa “café” e “Luwak” significa “civeta”. Wayan, não o motorista, nem o gerente da pousada, tampouco o atendente da loja de celulares, mas o simpático barista do café moderninho que Wayan me indicou (o Wayan da loja de celulares), me serve uma xícara. O café, com o perdão do óbvio trocadilho, estava uma merda. Ao meu redor, nômades digitais com a mesma vibe tilelê de Koh Phangan trabalham em seus laptops.
Ubud é considerada o centro cultural e espiritual de Bali e, como não fica perto de nenhuma praia, os forasteiros por aqui formam um seleto clã paz & amor que prefere tomar café feito de merda do que beber umas cervejas à beira-mar. Nada contra, que fique claro; mas pouquíssimo a favor. Pago a conta e sigo para um warung pé sujo; “warung” é uma mistura de bar com restaurante onde você comerá o melhor nasi goreng da sua vida por menos de 10 reais. Faz um calor descomunal e tudo que quero depois de provar o Kopi Luwak é tomar uma cerveja bem gelada para tirar o gosto de merda da boca. Peço uma Bintang, a marca local, e quem me serve é Wayan, não o motorista, nem o…
3.
Foram oito dias em Ubud, mas confesso ao leitor viajante que três seriam o suficiente; ao menos que o leitor viajante faça parte do seleto clã paz & amor; este escritor viajante não faz.
Tem algo que talvez você não saiba sobre Bali: as praias são feias. A maioria delas, pelo menos; Uluwatu e Padang-Padang, as praias dos surfistas, se salvam.
Canggu é uma graça. Parece uma Praia do Rosa hipster – e com o mínimo de infraestrutura; exceto pelo seu trânsito caótico. Suas praias, no entanto, são feias. Areia preta, mar chocolatão estilo o litoral gaúcho e lixo; muito lixo.
O The Lawn é um desses beach clubs estilo Jurerê Internacional ou Cancún; piscina de borda infinita de frente para a praia, música eletrônica genérica nos alto-falantes e o clã de Jessicas, Amandas e Ashleys dançando com seus drinks coloridos em uma mão e seus celulares na outra.
Um amigo comenta que aos domingos costuma rolar uns showzinhos ao vivo. Deixo a moto no estacionamento do hotel e I. e eu caminhamos cerca de 5 minutos até o The Lawn. São pouco mais de 17h e o happy hour, que vai até às 19h, está apenas começando; dois drinks pelo preço de um; pedimos moscow mule.
Jessicas, Amandas e Ashleys dançam ao som dos hits mais recentes de reggaeton. O DJ Pen Drive também parece estar curtindo, uma vez que passa mais tempo olhando o movimento no beach club do que mexendo em sua aparelhagem.
– E aquela galera ali? – aponto para o curioso clã dos Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça que parece não pertencer ao ambiente.
– Eles parecem meio deslocados – I. observa.
A maioria deles está trajando camisetas do White Swan, a banda que se apresentará logo após o set do DJ Pen Drive.
4.
Sugeng Wisnusutha é um desses caras que não passa despercebido. Paletó vintage, camisa colorida por baixo, calça social também vintage e sapatos estilo Dr. Martens; não é fácil manter esse look de rockeiro dos anos 1960 no calor de Canggu. São pouco mais de 17h30 quando o vocalista do White Swan acomoda-se em um sofá com uma garrafa de vinho, o resto da banda – Reza Mahaputra (guitarra), Satriya Dana (baixo) e Maha Wahyu (bateria) – e suas groupies.
A vestimenta dos integrantes do White Swan é uma mistura de Cream, Jefferson Airplane e The Doors. Assim como os Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça, que agora pedem para tirar fotos com os ídolos, o clã do White Swan parece estar deslocado.
Assim que DJ Pen Drive encerra o seu set, Jessicas, Amandas e Ashleys vão embora do The Lawn. Os Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça espremem-se em frente ao palco, que fica de costas para a praia, em um visual que parece um protetor de tela do MacBook.
Sugeng é o último a subir no palco. Uma ópera toca nos alto-falantes enquanto os membros da banda ajeitam os instrumentos. Sugeng dá um último gole no vinho, acende o cigarro virado para a praia, puxa o fôlego e, quando canta o primeiro verso de Venturead, I. eu nos olhamos atônitos.
– Como esses caras não são famosos lá fora? – penso em voz alta.
– Né? Eles são mil vezes melhores que o Måneskin.
– É tipo o Greta Van Fleet, mas melhor.
Peço mais um moscow mule antes do fim do happy hour. O sol cai e o céu fica colorido. Luzes vermelhas são acesas no palco e constrastam com a fumaça do cigarro de Sugeng, que oferece vinho para a plateia.
Neste ponto da noite não sei mais a que clã pertenço, meu olhar não encontra nômades digitais trabalhando em seus laptops, Jessicas, Amandas e Ashleys já foram embora, me falta talento – e estilo – para estar no palco com o White Swan –, de modo que o que me resta é entrar na roda punk com os Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça.
Após quase levar um golpe de capoeira no rosto, vou para o lado do palco. Um simpático Jovem Adolescente Indonésio Vestido de Preto dos Pés à Cabeça abre um sorriso, aperta a minha mão e pergunta o meu nome.
– Matheus. E o seu?
– Wayan.
5.
Em 2014, após os Arctic Monkeys levarem o prêmio de Melhor Álbum do Ano no BRIT Awards, Alex Turner fez o seguinte discurso:
“Esse rock and roll, hein? Esse rock and roll, ele simplesmente não vai embora. Ele pode hibernar de tempos em tempos e mergulhar novamente no pântano. Eu acho que a natureza cíclica do universo em que ele existe demanda que ele siga algumas de suas regras.
Mas ele sempre está esperando ali pertinho, virando a esquina. Pronto para fazer seu caminho de volta através da sujeira e detonar o teto de vidro, aparentando estar melhor do que nunca. É, esse rock and roll, às vezes parece que ele perdeu a graça, mas ele nunca irá morrer. E não há nada que você possa fazer a respeito”.
Eu não sei onde o rock and roll esteve de 2014 para cá, mas sentado em um sofá no beach club balinês, ainda em êxtase após o show do White Swan, tenho a impressão de que ele está melhor do que nunca.
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Com ênfase em não ficção e uma metodologia voltada para desenvolver o processo criativo e romper bloqueios mentais, o curso de Escrita Criativa do escritor Matheus de Souza, autor de Nômade Digital, livro finalista do Prêmio Jabuti 2020 na categoria Economia Criativa, utiliza técnicas de storytelling, publicidade, jornalismo, retórica e criação literária para que todos que se interessam pela escrita, profissionalmente ou por passatempo, possam criar textos criativos e autênticos em qualquer plataforma.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir:
Na última edição da newsletter compartilhei um texto do Julián Fuks sobre o suposto fim da crônica. Pois bem, a
, da, trouxe um excelente contraponto sobre como a crônica está viva – e mora no Substack.A VICE, que chegou a valer US$ 5,7 bilhões, acaba de ser vendida por “apenas” US$ 350 milhões. Em maio desse ano o grupo de mídia havia entrado com um pedido de falência no Estados Unidos.
O podcast Newsletter Economy é uma série que mapeia a crescente economia das newsletter no Brasil, através de uma série de entrevistas com criadores e criadoras que não só produzem, mas pensam sobre o assunto. A primeira temporada tem participação, entre outros, de
e . O projeto é uma iniciativa de e .Estou lendo (e adorando) Morder um pêssego, livro de memórias do chef David Chang.
O BADBADNOTGOOD regravou três músicas do Turnstile e o resultado ficou sensacional.
Essa sessão acústica do White Swan.
Para quem gosta de séries com a temática viagens: Ásia Alternativa, na Netflix.
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Filosofia, poesia e um pouquinho de sacanagem. Essa é a
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Você já foi em um show de alguma banda que não conhecia e saiu de lá assim 🤯?
✍️ Notas de rodapé:
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em encontros via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Para participar dos próximos encontros e ainda ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram, basta assinar um dos planos pagos da newsletter. Em nosso próximo encontro, que acontecerá no próximo dia 31, 18h do Brasil, falaremos sobre processo criativo. Assine com 30% de desconto.
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
"O tipo de crônica que eu escreveria para a VICE se eles não tivessem falido." li isso e já deixei o like ahahhaha
Que coisa legal encontrar a minha News indicada aqui! Obrigada, Matheus!