Para ler ouvindo: “Everything You’ve Come to Expect”, do The Last Shadow Puppets.
1.
“Viajar é muito útil e estimula a imaginação. Tudo o mais é desilusão e dor. Nossa própria viagem é inteiramente imaginária. Essa é sua força. Ela vai da vida à morte. Pessoas, animais, cidades, coisas, tudo é imaginação. É um romance, simplesmente uma ficção narrativa”. (Louis-Ferdinand Céline em “Viagem ao fim da noite”.
“A Grande Beleza”, filme de Paolo Sorrentino vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2013, começa com uma citação de Louis-Ferdinand Céline sobre o ato de viajar. Logo em seguida um turista asiático morre de forma fulminante diante da grande beleza de Roma.
2.
Chove na capital italiana quando nosso trem chega na estação Termini. Compro uma sombrinha de um imigrante, percebo que ela está com defeito assim que tento abri-la, peço outra, ele faz cara feia, mas faz a troca.
É a primeira vez da minha esposa diante da grande beleza de Roma. Espero que ela sobreviva. São pouco mais de 10h da manhã de sábado e nosso check in no hotel em Trastevere é apenas às 14h.
Decidimos matar o tempo flanando pela cidade. Faço o papel de guia turístico. Trinta minutos de caminhada até a Piazza Venezia, fotos do Monumento a Vittorio Emanuele II, quatorze minutos até a Fontana di Trevi, estamos sem moedas para jogar na fonte, turistas com sombrinhas registram a grande beleza de Roma, espero que sobrevivam, mais oito minutos caminhando até o Pantheon, que só aceita visitas com agendamento prévio, não temos, mas agendamos para o dia seguinte, um croissant e um café, Piazza Navona, mais turistas com sombrinhas registrando a grande beleza de Roma, espero que sobrevivam, um táxi até o hotel em Trastevere.
3.
Jep Gambardella (Toni Servillo) é um jornalista napolitano que, quando jovem foi à Roma em busca da sua grande beleza, mas que, depois de escrever seu premiado único livro, “O aparelho humano”, perdeu-se no labirinto de uma cidade que engole, tão bela que te faz perder a consciência – como o turista asiático que morre de forma fulminante –, que deslumbra e confunde, que te convida para flanar.
Tendo chegado ao limiar dos seus sessenta e cinco anos, Jep olha-se no espelho e (um lugar-comum na literatura agora seria dizer que “Jep olha-se no espelho e não reconhece o que vê”) compreende que chegou o momento de tentar sair do círculo vicioso que ele próprio alimenta e produz, em uma Roma maravilhosa, mas submersa e imóvel, povoada por personagens que, em seus famosos terraços, se dopam e encenam todas as noites farsas e rituais vazios da alta burguesia, máscaras gastas entre lembranças, ironias, riquezas, ilusões, um Instagram antes de existir o Instagram, cheios de botox, harmonizações faciais, preenchimentos labiais e, claro, muitas selfies.
4.
Ontem um post do Daniel Bovolento no LinkedIn me chamou a atenção.
“Eu já escrevi 5 livros. Um deles foi indicado ao Jabuti. Não ganhei, mas concorri com grandes nomes como Fernanda Young. E depois parei de escrever.
Quando a gente fala sobre vulnerabilidade, a gente fala sobre se abrir na intenção de compartilhar algo que possa criar conexões nos outros. A escrita sempre foi essa ferramenta pra mim: me despir e me entregar por outros, me descobrir no meio do texto e contar histórias. Então por que eu parei de escrever livros?”.
Assim como Jep Gambardella, também só escrevi um livro. Assim como Daniel Bovolento, também fui indicado ao Jabuti – e também não ganhei; ele em 2019, eu em 2020. Desde então, assim como o Daniel, também deixei de escrever (e aqui poderíamos abrir uma discussão entre produzir conteúdo x escrever, mas meu ponto é outro).
Ontem (24/11), rolou mais uma edição do Jabuti – a segunda desde que fui finalista. Dez dias antes, Rafael Gallo levou o Prêmio Saramago, um dos mais importantes em língua portuguesa; dez anos antes ele havia sido premiado com o Prêmio SESC. Desde ontem ele é notícia nos países lusófonos.
Percebo no meio literário um certo desprezo (talvez calculado) por prêmios literários. Escritores e escritoras parecem (ou fingem) não se importar com indicações. “Ah, sou finalista do Prêmio Jabuti, mas ok, tanto faz, não escrevo com esse propósito”. Murakami, que citei na última edição dessa newsletter, é um desses que diz não se importar com prêmios literários.
Eu não sei quanto ao Daniel, mas eu confesso pra vocês que fiquei super triste de não ter ganho o Jabuti em 2020. Ser finalista já é uma puta honra, mas ganhar é diferente. Não é nem questão de ego (talvez um pouco), mas o fato de ser premiado abre muitas portas. Você vira notícia, como o Rafael, pessoas compram o seu livro, editoras te oferecem contratos para novas obras, etc e etc.
Depois de ter sido finalista do Jabuti com o meu primeiro livro, obviamente espero que “Passageiro” supere o seu antecessor em todos os termos. Talvez por isso esta nova obra esteja demorando tanto para ser escrita. E é nisso que me identifico com Daniel: imagino que ele, assim como eu, não quer entregar algo que decepcione os seus leitores – e os críticos dos prêmios literários. O problema aqui é tornar-se um Jep; o escritor de um livro só.
5.
Desde que “Nômade Digital” foi finalista do Jabuti encontrei-me preso, assim como Jep, em um círculo vicioso que eu mesmo alimento e produzo; produzir conteúdo sobre o tema, dar entrevistas sobre o tema, participar de lives e podcasts sobre o tema.
A diferença aqui é que, aparentemente, “O aparelho humano” paga as contas do flâneur e bon vivant Jep – já eu tenho que produzir conteúdos nas redes sociais para vender os meus cursos.
6.
A grande beleza de Roma é sufocante. Trastevere, que quer dizer “através do Tibre” (Tibre é o rio que corta a cidade), ou “para lá do Tibre”, se quisermos ser puristas do latim, é a antítese dos turistas com sombrinhas na Fontana di Trevi.
Trastevere também é lotada deles, os turistas, mas a vibe é outra. É um respiro entre as construções megalomaníacas em mármore do outro lado do rio Tibre.
Passo pelo San Calisto, o cinquentenário bar de Trastevere que costumava receber artistas e intelectuais italianos nos anos 1960 e 1970, e que aparece em “A Grande Beleza”, penso em pedir uma Peroni, mas ele está lotado de… turistas. Turistas, como eu, é claro, a quem estou tentando enganar?
7.
8.
Jep Gambardella vai à Isola del Giglio fazer uma reportagem sobre o naufrágio do Costa Concordia. O seu olhar desencantado repousa sobre os destroços do enorme navio tombado, tendo como pano de fundo a maravilhosa massa de água que domina a ilha do arquipélago Toscano, pertinho aqui de Cecina, que parece simbolizar precisamente a decadência da sociedade de que ele próprio é o emblema.
Eu tenho certeza de que há alguma metáfora aqui, mas deixarei para o livro. Quem sabe eu ganhe um prêmio literário por isso.
9.
Minha esposa sobreviveu à grande beleza de Roma e passa bem. Jogamos uma moeda na Fontana di Trevi no dia seguinte com a promessa de que voltaremos. Faltou tomar uma Peroni no San Calisto.
Há alguns anos, vindo de Amsterdam (tão bela mas menos... "escancaradamente afetuosa" do que Roma), caí de paraquedas, com minha mulher, numa sexta-feira à noite em Trastevere...
Cara, que intensidade, que vitalidade, que atmosfera sedutora tem esses becos estreitos labirínticos com essas paredes velhas cor de ocre! E, exatamente como vc diz, cheias de turistas, porém numa outra vibe. Gente de bona energia! Reconheci a praça da sua foto e já me deu saudade! Que sua estada aí te renda mais muitas histórias maravilhosos. Aproveite!