[Passageiro #7] Querido Tony
Você tinha razão sobre o Vietnã. E sobre várias outras coisas.
Para ler ouvindo: “The End”, do The Doors.
1.
Hanói, abril de 2022.
Querido Tony,
Você tinha razão sobre o Vietnã. A comida, a cultura, as paisagens idílicas, os sons, o cheiro. Ah, o cheiro. Graham Greene também tinha razão quando escreveu que “quando chegamos ao Vietnã entendemos tudo em questão de minutos, mas o resto tem que ser vivido”. Escrevo estas linhas diretamente de um apartamento no coração do Old Quarter em Hanói. Da janela consigo ver um vietnamita, baixinho como a maioria dos vietnamitas, vendendo partes de um porco em uma banca improvisada entre as várias motonetas estacionadas na calçada. Faz quase 40 graus lá fora e o sujeitinho está vendendo as mesmas partes do bicho desde que cheguei aqui – cinco dias atrás. Talvez esteja há mais tempo. Patas, tornozelos, cabeça e todo o tipo de entranha. O mesmo porco. As. Mesmas. Partes. Quase 40 graus lá fora. O tipo de cena que você gostaria, imagino.
Está tocando The End, do The Doors. Sei que é uma das suas músicas favoritas. Estou com ela na cabeça desde que assisti Apocalypse Now semana passada, antes de vir para Hanói. Aliás, eu deveria ter vindo para o Vietnã em 2020, você sabia? Estava em Chiang Mai, me deliciando com a comida do norte da Tailândia, com passagens compradas para Da Nang, quando a pandemia do novo coronavírus começou e as fronteiras internacionais foram fechadas. Dois meses na Tailândia viraram um exílio de quase um ano. Nunca comi tão bem na minha vida. Khao pad, khao soi, tom yam e pad thai, muito pad thai.
Você partiu antes que um vírus filho da puta nos tirasse, entre outras coisas, a liberdade de ir e vir. Nos vimos trancados em cubículos lidando com os nossos próprios demônios, tendo crises existenciais, abusando do álcool. Perdemos conhecidos, perdemos gente querida, vimos governos negacionistas deixando o seu povo à própria sorte. Penso em como seria a sua vida com as fronteiras fechadas. Você utilizaria o seu novo tempo livre para escrever um romance policial? Aproveitaria para passar mais tempo com a sua filha? Tiraria algo de bom desse período? Lembro daquele episódio de No Reservations gravado em 2009, em uma das várias vezes em que esteve por estes lados, em que você fala sobre largar a vida de celebridade da TV e se mudar para uma propriedade rural no Vietnã. Viver uma vida simples com a sua família longe dos holofotes de que você, antes de partir, parecia não mais suportar. Como se demitir do melhor emprego do mundo, não é mesmo?
2.
Não vou entregar todo o ouro aqui porque quero que vocês comprem o livro – e que o material seja inédito –, mas os três parágrafos acima estão na introdução de Passageiro.
Semana passada o processo de escrita do livro não rendeu. Quando isso acontece, costumo reler o que escrevi até então para buscar pontos de conexão. Relendo meus rascunhos percebi que eu não estava satisfeito com a forma como a obra começava – e isso, por algum motivo, estava me travando.
Eu devo ter levado uns cinco meses para concluir o primeiro capítulo de Nômade Digital – e apenas um mês para os outros dez.
Acredito que a introdução/primeiro capítulo é o que faz alguém continuar lendo ou não um livro. Tem que ser instigante. Tem que trazer curiosidades. O escritor deve brilhar. Por isso o esforço extra – e quase maníaco – até chegar em algo satisfatório.
3.
Carrego todos os meus pertences em duas mochilas – uma de 50 litros e uma menor onde levo o computador e outros gadgets. Em 2017, quando caí na estrada, tive que abandonar meus livros físicos e migrar para o Kindle.
Doei boa parte da minha pequena biblioteca, mas guardei alguns exemplares com valor sentimental em duas ou três caixas de papelão que ficam na casa dos meus pais.
Estive no Brasil antes de vir para a Itália e, já pensando no processo de escrita do livro, trouxe comigo alguns exemplares físicos para utilizar como inspiração e referência – minhas costas doem até hoje pelo peso extra nas mochilas.
Gosto de ter livros físicos por perto quando estou escrevendo porque eles são mais fáceis de consultar do que as obras digitais do Kindle.
Na última segunda-feira, desanimado com o andamento das coisas, folheei Em busca do prato perfeito, compilado com histórias de viagens de Anthony Bourdain.
O livro começa com uma carta do chef viajante para Nancy, sua esposa na época, em que o autor narra – com seu exagero habitual – suas andanças por Pailin, no norte do Cambodia, enquanto gravava um episódio de A Cook's Tour (que pode ser visto na íntegra aqui).
Tony, e aqui deixo as convenções sociais de lado, foi – e segue sendo – um companheiro de viagem em minhas andanças pelo mundo.
Os vários episódios dos seus programas de TV que me fizeram companhia em noites solitárias em destinos alternativos; os livros que li e reli; as entrevistas que assisti mais de uma vez; os restaurantes e mercados de rua que visitei pelo simples fato de ele ter ido, comido e bebido no local.
Mais do que o entretenimento gerado, Tony foi – e segue sendo – uma inspiração. Como viajante, como contador de histórias, como ser humano.
“Parece que quanto mais lugares eu vejo e experimento, mais eu percebo como o mundo é grande. Quanto mais eu conheço, mais eu percebo o quão pouco eu sei das coisas, quantos lugares eu ainda tenho para visitar, quanto ainda há para aprender. Talvez isso seja esclarecimento o suficiente; saber que não há um lugar de descanso final da mente, nenhuma clareza presunçosa. Talvez a sabedoria seja perceber o quão pequeno e sem sabedoria eu sou e o quão longe eu ainda tenho que ir”. (Anthony Bourdain)
A carta para Nancy foi o estalo que eu precisava para me tocar de algo que destravou a escrita do livro: Tony é um personagem de Passageiro.
Ele estava comigo nos mercados de rua de Bangkok, nos banquinhos de plástico de Hanói, na dolce vita de Roma. Ele foi – e segue sendo – parte importante da minha jornada como viajante; a jornada que me mudou para sempre.
“Viagens não são sempre bonitas. Não são sempre confortáveis. Algumas vezes dói, pode até doer o coração. Mas está tudo bem. A jornada te muda; ela deveria te mudar. Ela deixa marcas na sua memória, na sua consciência, no seu coração e no seu corpo. Você leva algo com você. Com sorte, você deixa algo para trás.” (Anthony Bourdain)
Nada mais justo do que dedicar Passageiro à Tony.
✍️ Notas:
Se você não está familiarizado com o trabalho e a figura de Anthony Bourdain, recomendo esse perfil publicado originalmente no The New Yorker e traduzido pela revista piauí.
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Meu curso Escrita de Viagem é teórico-prático e destina-se a quem quer explorar esse tipo de narrativa de um modo pessoal, focando o que se vive na estrada através dos sentidos (externos) e das emoções (internos).
A cada edição que recebo, fico mais apaixonada por essa newsletter e ansiosa pelo livro, é claro :)
Estou adorando sua newsletter! Estou ficando inspirada a escrever uma tbm🙆🏽♀️❤️ obrigada e super curiosa pelo seu livro.