[Passageiro #8] À deriva
Leonard Cohen na Grécia, Teoria da Deriva, trem errado e festa marroquina em Florença.
Para ler ouvindo: “Bird on the Wire”, do Leonard Cohen.
1.
Comecei a ler I’m Your Man, biografia do saudoso poeta, cantor e compositor canadense Leonard Cohen, e estou completamente obcecado com a história de como em 1960 ele aleatoriamente foi parar em Hidra, uma ilha na Grécia onde a eletricidade era intermitente, os automóveis proibidos e mulas transportavam água até as casas.
Cohen, na época com 25 anos, estava tentando a vida de escritor em Londres. Em um dos vários dias frios e chuvosos da capital inglesa, procurou abrigo na marquise de uma agência bancária. Conversando com um funcionário bronzeado, perguntou-lhe como conseguira aquela cor. “Acabei de voltar de uma viagem à Grécia”.
O jovem poeta então comprou uma passagem de avião para Atenas, foi até o Porto do Pireu, pegou uma balsa e desceu na ilha de Hidra. Lá, alugou uma casa por 14 dólares/mês e juntou-se a uma comunidade de artistas, escritores e outros boêmios expatriados. Mais tarde compraria uma casinha branca por 1.500 dólares, graças a uma herança que recebeu da avó. Viveria seis anos em Hidra, onde compôs suas primeiras canções.
Quando escrevi sobre a minha rotina aqui em Cecina na 4ª edição desta newsletter, mencionei que o outono está cada vez mais gelado e minha cama cada vez mais aconchegante. Bom, as coisas pioraram de lá para cá. O inverno começa na próxima semana. Além do frio, tem chovido bastante – chove uma barbaridade enquanto escrevo estas linhas. O processo de cidadania da minha esposa deu uma andada – o vigile esteve aqui –, então talvez seja a hora de fazer como Leonard Cohen e comprar uma passagem de avião para onde tenha sol (agora vocês ficarão com aquela música do Jota Quest na cabeça, sinto muito).
2.
A Teoria da Deriva, procedimento psicogeográfico com o objetivo de estudar os efeitos do ambiente urbano no estado psíquico e emocional das pessoas que a praticam, foi desenvolvida em 1958 pelo pensador situacionista Guy Debord, autor d’A Sociedade do Espetáculo.
“Partindo de um lugar qualquer e comum à pessoa ou grupo que se lança à deriva deve rumar deixando que o meio urbano crie seus próprios caminhos. É sempre interessante construir um mapa do percurso traçado, esse mapa deve acompanhar anotações que irão indicar quais as motivações que construiu determinado traçado.
É pensar por que motivo dobramos à direita e não seguimos retos, por que paramos em tal praça e não em outra, quais as condições que nos levaram a descansar na margem esquerda e não na direita”.
I. e eu tínhamos decidido ficar em casa no último final de semana. Descansar, comer algumas porcarias e assistir Netflix. Ao acordar, no entanto, ela me convida para uma aventura. “Ir para a estação e decidir na hora qual trem pegar”. Um experimento de Deriva.
Estamos há pouco mais de um mês em Cecina e, por falta de interesse (que pode ser lida como “preguiça”), ainda não descobrimos como funciona o transporte público por aqui, tampouco temos o número de algum taxista (Uber não funciona em Cecina). Fazemos tudo a pé, de modo que caminhamos por meia hora até a estação. No caminho, olhando no celular as opções de trens disponíveis, decidimos ir para Florença.
Compramos os tickets na máquina automática da estação e nos dirigimos para a plataforma. Não sei se o(a) leitor(a) já teve a oportunidade de viajar de trem pelo interior da Itália, mas informação é artigo de luxo por aqui. É raro encontrar algum funcionário nas estações e mais raro ainda que algum dos visores nas plataformas, que supostamente deveriam conter as informações dos trens, esteja funcionando. Dito isso, nossa ansiedade provavelmente foi a motivação para entrarmos no primeiro trem que parou na estação de Cecina.
Já no vagão, tentamos, em vão, entender o que era dito no sistema de som. Uma imigrante africana, ao perceber nosso desespero, tenta ajudar. “Para onde estão indo?”. “Florença”. “Florença é para o outro lado, este trem está indo para Roma”. As portas fecham.
3.
Estávamos à deriva.
Não fosse o medo de sermos expulsos – e multados – por estarmos no trem errado, teríamos seguido viagem até Roma, mas decidimos descer na próxima estação e tentar, mais uma vez, chegar em Florença.
Descemos em San Vincenzo, uma cidadezinha de praia com pouco mais de 6 mil habitantes. Compramos um novo ticket e matamos tempo andando à deriva até o horário do nosso trem partir.
4.
Em uma das ruazinhas vejo um cartaz sobre a leitura de um livro em homenagem ao centenário de Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta de quem até então eu nunca ouvira falar.
No trem para Florença (acertamos dessa vez), enquanto I. procura no Booking um hotel para passarmos a noite, pesquiso sobre o homenageado de San Vincenzo. Descubro que Pasolini foi morto de maneira brutal e fico obcecado com a história – tenho muitas obsessões.
“Pasolini foi assassinado na madrugada de 1 para 2 de novembro de 1975 em uma praia de Ostia, perto de Roma. A Itália vivia os "anos de chumbo". Terroristas executavam assassinatos e atentados.
Um garoto de programa de 17 anos, Pino Pelosi, foi o único condenado no ano seguinte pelo crime. Ele disse que brigou com Pasolini porque rejeitou suas insinuações sexuais.
Na sua versão, o jovem teria sido ameaçado com um pau que depois teria conseguido tomar de Pasolini, tendo-lhe golpeado diversas vezes até fazê-lo cair gravemente ferido, mas ainda com vida. Então Pelosi teria entrado no veículo e atropelado o escritor diversas vezes, destruindo-lhe a caixa torácica e causando-lhe a morte.
Anos depois, ele mudou a versão, que nunca teve muito crédito na Itália. Crime de membros de gangues aterrorizados ou assassinato político-mafioso? Talvez os dois ao mesmo tempo. O enigma permanece intacto”.
5.
Para quem não programou a viagem com antecedência e escolheu o hotel mais barato, demos muita sorte. Localizado na Piazza del Duomo, nosso quarto, bastante honesto, tinha até vista para a Catedral Santa Maria del Fiore.
Chegamos pouco depois de o sol se por (agora vocês ficarão com aquela música do Detonautas na cabeça, sinto muito) e, após enchermos nossos buchos em uma osteria tradicional de Florença, nos juntamos ao mar de curiosos com seus celulares apontados para os cerca de dez marroquinos que entoavam cânticos e soltavam foguetes comemorando a classificação histórica de Marrocos para as semi-finais da Copa do Mundo.
Guardas italianos, que em um primeiro momento pensei estarem ali para acabar com a baderna, olhavam tudo com um sorriso no canto da boca. Anoto no celular que devo escrever sobre isso no livro.
✍️ Notas:
Fiz uma playlist com todas as músicas indicadas na newsletter. Ela será atualizada semanalmente.
Procurando um presente para o amigo secreto por menos de R$ 50? A versão física de Nômade Digital está com 41% de desconto na Amazon (não faço ideia de por quanto tempo).
Com ênfase em não ficção e uma metodologia voltada para desenvolver o processo criativo e romper bloqueios mentais, meu curso de Escrita Criativa utiliza técnicas de storytelling, publicidade, jornalismo, retórica e criação literária para que todos que se interessam pela escrita, profissionalmente ou por passatempo, possam criar textos criativos e autênticos em qualquer plataforma.
me senti tão à deriva quanto vocês!
As narrativas do Sr. Souza nos arrebatam até os lugares por onde passa, fazendo-nos sentir juntos, no mesmo trem, barzinho ou olhando para uma multidão com seus celulares apontados para um bando de marroquinhos.
Obrigado por suas narrativas meu caro!