Para ler ouvindo: “Red Right Hand”, do Nick Cave & The Bad Seeds.
1.
Este ano, diferente dos outros, não farei uma pausa durante o Natal e o Ano Novo. Acredito que pausas são super importantes para a nossa saúde mental, tirei algumas ao longo de 2022, meu ponto não é esse, mas o livro está fluindo muito bem e penso que pausar o processo nessa altura do campeonato poderia prejudicar o meu trabalho. Como a newsletter faz parte deste processo, os envios seguirão normalmente durante as festas de fim de ano.
Dito isso, eu finalmente entendi o que alguns autores querem dizer quando falam que, a partir de certo ponto do processo, “o livro apenas veio”. Como um raio. De repente tudo se encaixou. O Momento Eureka.
Esse Momento Eureka, evidentemente, é o nosso conjunto de referências e experiências que, muitas vezes, precisa apenas de um estímulo – um livro, um filme, uma entrevista – para ser acessado.
Contei na primeira edição desta newsletter que “roubei” o formato do livro de O caminho imperfeito, obra de José Luís Peixoto. O autor português, no entanto, assume ter “roubado” o formato d’O caminho imperfeito de Outras vidas que não a minha, de Emmanuel Carrère. Peixoto cita especificamente uma entrevista que o autor francês deu ao Paris Review sobre o seu processo criativo.
Li a entrevista no último final de semana e… Eureka!
2.
“A 26 de dezembro de 2004, Emmanuel Carrère não estava na Tailândia. Estava no Sri Lanka, passava férias com a companheira, o filho e a filha da companheira. Na véspera, propôs que se mudassem do bungalow no topo de uma elevação para uma residencial junto à praia, mas perdeu a votação. Tinha planeado fazer mergulho nessa manhã com o filho, mas este decidiu não ir. Essas duas circunstâncias salvaram-lhe a vida. O tsunami que chegou às costas do Sri Lanka teve origem no mesmo terramoto que formou o tsunami que atingiu a Tailândia.
Este é o início do livro Outras vidas que não a minha, no qual Emmanuel Carrère escreve na primeira pessoa. Depois de relatar parte da destruição e das tragédias a que assistiu no Sri Lanka, conta o seu regresso a Paris, onde assiste à agonia e à morte da sua cunhada Juliette.
A cada página que lia de Outras vidas que não a minha, ganhava forma e sentido o livro que pretendia escrever – este livro.
Numa entrevista à Paris Review, em 2013, Carrière fala de um outro livro – O adversário –, em que escreveu sobre Jean-Claude Romand, um francês que fingiu ser estudante de Medicina e médico e que assassinou toda a sua família – pais, mulher, dois filhos e cão. Na entrevista, diz que o seu modelo era o clássico A sangue frio, de Truman Capote. Disse também que a escrita estava bloqueada até considerar o que ele próprio estava a fazer enquanto Romand assassinava a família. Então, deixou de pensar o livro a partir de um narrador na terceira pessoa, como acontece em A sangue frio, e começou a pensá-lo na primeira pessoa.
O adversário foi publicado em 2000, o mesmo ano em que publiquei o meu primeiro livro.
Outras vidas que não a minha, O adversário – até os títulos destas obras de Emmanuel Carrère estavam em sintonia cósmica com a reflexão que precisava de fazer para chegar a este livro”.
A “confissão” de José Luís Peixoto em O caminho imperfeito.
3.
Em meados de 2018, o músico australiano Nick Cave lançou a The Red Hand Files, uma newsletter esporádica em que responde perguntas enviadas pelos fãs que, no momento em que escrevo estas linhas, está em sua 216ª edição.
O Substack lançou uma funcionalidade de chat e, despretensiosamente, pedi aos leitores desta newsletter que me enviassem suas questões relacionadas ao ato de escrever um livro.
Não responderei todas para que esta edição não fique muito longa, mas separei algumas que, de alguma maneira, estão interligadas.
4.
Regina, o primeiro passo aqui foi encontrar o formato. A maioria dos livros de crônicas – de viagens ou não – são compilados de textos publicados pelos autores em jornais e outros veículos.
Passageiro é diferente nesse sentido porque, exceto um ou outro trecho que divulguei nas redes sociais, estou tendo a oportunidade de contar essas histórias do zero, então encontrei um formato – meio roubado do Peixoto, meio roubado do Carrère – onde essas histórias estão, de alguma forma, interligadas (o que faz com que o livro possa ser lido também como romance de não ficção).
Como falei na primeira edição desta newsletter, escolhi contar histórias que aconteceram entre 2018 e 2022. Meu editor de texto atualmente está organizado assim:
Eu rascunhei muita coisa nos últimos anos. Ideias, parágrafos, citações. A primeira etapa do processo foi organizar tudo isso por ano. Estou seguindo uma ordem cronológica, mas às vezes as histórias – e seus personagens – vão e voltam.
O que me ajudou a ter essa organização foi escrever uma introdução, uma espécie de manifesto, do que eu queria que fosse esse livro. E aí entramos na próxima pergunta.
5.
T(h)iagos, como ainda não finalizei o rascunho final e o livro ainda não passou por um processo de edição, fica difícil saber o que ficará de fora.
Porém, eu havia escrito uma introdução que simplesmente não fez mais sentido estar ali. Alguns parágrafos foram encaixados ao longo do livro, mas outros sobraram. Algumas frases talvez não façam sentido para vocês por falta de contexto, mas segue mesmo assim:
Entre 2018 e 2022 viajei por mais de 20 países, a Itália ficou fora de duas Copas do Mundo, os Arctic Monkeys lançaram dois álbuns, o Father John Misty também, tivemos duas eleições presidenciais no Brasil, a OMS decretou uma pandemia mundial, o Flamengo jogou três finais de Libertadores. Passageiro é substantivo e adjetivo. Enquanto era transportado de um lugar para outro por um veículo (público ou particular), o tempo passava rapidamente. Momentos breves, passageiros, coincidências, eventos que se repetiram ou não.
Acho que este livro é sobre isso. Não é um guia de viagens onde você vai encontrar listas com monumentos históricos, melhores hotéis e restaurantes da moda – é mais fácil você achar dicas turísticas no Google –, tampouco é um livro de autoajuda onde o autor encontra iluminação divina – continuo ateu – e encerra com uma grande lição. Tudo nesta obra realmente aconteceu, para bem ou para o mal – “viagens não são sempre bonitas” –, talvez não da maneira exata como narrei – especialmente os episódios que envolvem karaokês –, ou talvez tenha acontecido apenas na minha cabeça após beber rum tailandês de qualidade duvidosa, mas de certa forma tudo que não aconteceu também aconteceu. E, por último, mas não menos importante, se você sonha em se tornar um nômade digital, leia meu livro anterior e não me encha mais o saco.
Eu decidi cortar a introdução (3 mil palavras) e começar o livro com uma carta escrita para Anthony Bourdain em Hanói. Compartilhei um trecho na sétima edição desta newsletter.
6.
Tammiris, desde que me mudei para a Toscana, na metade de novembro, meu foco total está no livro. Tenho tentado acordar o mais cedo que consigo – o inverno começou por aqui e está cada vez mais difícil sair da cama – e começo o dia revisando o que escrevi no anterior.
Num dia bom, geralmente escrevo durante a manhã e um pouco após o almoço. A partir das 16h, por aí, largo a escrita e busco por referências que possam me ajudar na manhã seguinte – livros, filmes, entrevistas. Muitas das minhas ideias surgem ao consumir as ideias de outras pessoas – é através delas, geralmente, que consigo fazer as conexões com as minhas próprias experiências. Chegar na sintonia cósmica, como diz Peixoto.
Tenho usado a dica de Ernest Hemingway – que está na quarta edição desta newsletter – de parar de escrever sabendo o que acontecerá a seguir – no meio de uma cena, por exemplo. É uma boa maneira de deixar a história dormir e evitar o bloqueio criativo na manhã seguinte.
Outra coisa importante no meu processo criativo é meu “espaço sagrado”. Como vivo uma vida nômade, não tenho um escritório fixo há um bom tempo, mas carrego comigo alguns objetos – livros físicos, principalmente – que tenham a ver com o que estou trabalhando no momento.
No documentário 20.000 dias na Terra, Nick Cave mostra o seu escritório, um espaço sagrado que criou para escrever – a sua Caverna (o
vai adorar essa).Em uma edição recente da The Red Hand Files, Cave conta que sempre tratou esse espaço sagrado como uma fortaleza, um lugar onde poderia fechar a porta e bloquear o mundo, mas que com o tempo este escritório, o seu retiro, começou a se tornar um lugar de exclusão, um lugar onde ele acabava se afastando do mundo sob o pretexto de ser criativo.
Em 2019, Cave cedeu o seu escritório – a mesa e todo o conteúdo – à Biblioteca Real Dinamarquesa em Copenhague para a belíssima exposição Stranger Than Kindness – The Nick Cave. Segundo o músico, entregá-lo foi uma das coisas que o permitiu encontrar seu caminho de volta ao mundo. Desistir do escritório o ajudou a se libertar.
“Passei a entender que o espaço sagrado é a própria imaginação, ou melhor, o tempo gasto dentro da ideia real – a música que você está compondo, a história que está escrevendo ou o quadro que está pintando. O espaço sagrado, para o artista, está no fluxo criativo, no ponto crucial e ardente da intenção artística, onde o tempo subitamente se contrai e a obra encontra sua força e seu ritmo. Meu espaço sagrado tornou-se o fogo rolante da imaginação”.
Ontem, após minha sessão de escrita, assisti a um outro documentário sobre Nick Cave, This Much I Know To Be True, e lembrei do tempo em que ele morou em São Paulo nos anos 1990 e costumava frequentar a Mercearia São Pedro.
Essa lembrança gerou uma conexão instantânea: eu também morei em São Paulo por um tempo e conheci a Mercearia São Pedro justamente porque li essa história dos rolês paulistanos de Cave. Era lá que, até recentemente, a nata da escrita contemporânea brasileira costumava se encontrar. Obviamente nunca fui convidado. Hoje cedo escrevi sobre isso.
✍️ Notas:
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Meu álbum favorito do Nick Cave & The Bad Seeds é “Skeleton Tree”. Ouvi muito quando estava na Rússia em 2019 e agora sempre que ouço sou transportado para as ruas de São Petersburgo – mas isso é assunto para outra edição da newsletter.
Nick Cave recentemente relembrou o tempo em que morou em São Paulo e contou sobre a sua história com a Mercearia São Pedro.
Ele também lançou um livro sobre criatividade que ainda não li, mas parece bom. Por enquanto, disponível apenas em inglês.
Foram publicados em português dois volumes da Paris Review (aqui e aqui) com diversas entrevistas em que grandes escritores e escritoras compartilham os seus processos criativos. Acho que vocês irão gostar.
Muito bom o "desenrolar" da news, Matheus. Que maravilha você conseguir focar totalmente no desenvolvimento do livro. Aliás, A Sangue Frio, do Capote, foi um dos meus livros preferidos durante a faculdade de jornalismo -- e confesso que segue na lista até hoje. Desejo ainda mais boa sorte no seu processo!
Maratonando suas news para acompanhar "de perto" o processo do seu livro. Muito obrigado por compartilhar o seu trabalho e as influências. Vou ler tudo que está em "Notas".