#115 – Os fantasmas do Tânger
Burroughs, Kerouac, Ginsberg, Bowles, Bourdain; segui os passos dos beatniks (e de outros degenerados) no Marrocos; escrevi um diário(?).
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🎧 Para ler ouvindo1: Dead Souls, por William S. Burroughs feat. Dub Spencer & Trance Hill.

📍 Tânger, Marrocos
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
23/05/2025
“Viajar: primeiro te deixa sem palavras, depois te torna um contador de histórias.” (Ibn Battuta)
Ibn Battuta, um marroquino nascido no Tânger em 1304, decide cumprir o haji, um dos cinco pilares da fé muçulmana, junta algumas economias e, aos 21 anos de idade, parte para a cidade sagrada de Meca. Ibn Battuta gosta tanto da experiência de viajar que passa as próximas três décadas na estrada, percorrendo 120 mil quilômetros – o equivalente a três voltas ao mundo.
Na configuração geopolítica atual, Ibn Battuta teria conhecido aproximadamente 40 países, tendo grandes chances de ser uma figura popular no Instagram – será que Ibn Battuta colocaria em sua bio as bandeiras dos países que visitou?
São quase 10h da noite quando o voo FR7744 da Ryanair toca o chão do Aeroporto Ibn Battuta, localizado na metade do caminho entre o Tânger e a cidade de Asilah. Marcel, o host catalão do Airbnb, organiza o traslado até a Kasbah2, de modo que procuro por um motorista segurando uma plaquinha com o meu nome.
“Brasileiro?” – pergunta Mohammed, o motorista. “Ah, amo os jogadores brasileiros. Ronaldo, o Ronaldo verdadeiro, é o melhor de todos.”
Assim como a Salá, as cinco orações públicas que cada muçulmano deve realizar diariamente e que são declamadas nos alto-falantes das medinas, vejo-me obrigado a conversar sobre futebol brasileiro pelo menos cinco vezes ao dia durante minha estadia no Marrocos.
“Esse é o estádio Ibn Battuta.” – aponta Mohammed no trajeto. “Tem capacidade para 65 mil pessoas. O Flamengo, do Brasil, jogou aí no Mundial de Clubes da Fifa em 2022.”
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Mal desço do táxi de Mohammed e um marroquino surge de uma ruela perguntando se quero me divertir.
“Haxixe? Marijuana?”
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“O Tânger é um lugar bastante seguro para quem é estrangeiro.” – diz Marcel. “A chance de alguém roubar a sua carteira é maior em Paris do que no Tânger. Aqui, a pena para pickpockets é cinco anos de prisão. Isso se o ladrão roubar um marroquino. Caso ele roube um estrangeiro, a pena é de quinze anos. O máximo que vai acontecer é te oferecerem haxixe na rua. E tem também um pessoal que puxa assunto, pergunta se você tá perdido, vai te acompanhando no caminho e quando você chega no seu destino, te pede dinheiro. É meio chato, mas ninguém vai te roubar.”
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24/05/2025
“Quando eu era jovem e raivoso e desiludido com o mundo, desencantado com minha geração, desapontado com a ‘contracultura’ e em busca de modelos a seguir, a paranoia e o profundo desgosto de William S. Burroughs, seus apetites antissociais, sua sagacidade cáustica e violentamente surreal, e seu gosto por substâncias de uso controlado pareciam espelhar perfeitamente minhas próprias aspirações.” (Anthony Bourdain)
De 1923 até a independência do Marrocos, em 1956, o Tânger foi considerado uma Zona Internacional – a cidade era governada por várias potências europeias (França, Espanha, Reino Unido, Itália, entre outras), mas sem pertencer de fato a nenhuma delas.
Esse status curioso fez do Tânger um paraíso de liberdade, espionagem, contrabando, exílio e experimentação artística.
É exatamente nessa época que os beatniks desembarcam no porto do Tânger para ficar fora do radar da moral americana e da vigilância europeia.
Paul Bowles é o primeiro, nos anos 1940, e torna-se uma espécie de anfitrião da boemia internacional. No início dos anos 1950, chega William S. Burroughs – “Almoço nu”, seu livro mais conhecido, é escrito no quarto 9 do hotel El Muniria. Jack Kerouac, Allen Ginsberg e Gregory Corso também passam pela cidade.
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O Tânger sempre esteve no meu imaginário. Os beatniks estiveram aqui. Anthony Bourdain esteve aqui – porque os beatniks estiveram aqui.
“Eu queria escrever. Queria estar longe de tudo com que cresci. Em suma, queria estar em outro lugar. E Tânger – a ‘Interzona’ descrita por Burroughs – onde ele se viu exilado, esgotado, escrevendo as páginas do que viria a ser ‘Almoço nu’, parecia, para minha jovem mente ingênua, um paraíso exótico.” (Anthony Bourdain)
O problema em idealizar (ou romantizar, para me adequar ao termo que tem sido utilizado nas redes sociais) o que uma cidade foi há décadas atrás é que, bem, não podemos voltar no tempo. Nem pará-lo. Ao menos que você passe a tarde no Café Baba.
Fundado em 1943, esse lugar foi — e de certo modo ainda é — um santuário. Não para turistas com pressa. Mas para quem veio se perder. Para quem procura algo que não sabe nomear: paz, fuga, inspiração, esquecimento.
O Café Baba não é instagramável. Paredes descascadas, bancos de madeira dura, mesas tortas. Nada de latte com leite de aveia. Aqui, o tempo parou — exceto pela TV de plasma ligada num jogo do Real Madrid. Você entra e sente aquele cheiro — chá de menta, haxixe, tabaco queimado e uma certa tristeza marroquina que ninguém tenta disfarçar.
Burroughs sentou nessas cadeiras. Ginsberg, Bowles, Kerouac. Keith Richards. Brian Jones. Anthony Bourdain. Kofi Annan. Dizem que Jimmy Page. Dylan também. Mas os marroquinos não estão nem aí para isso. Talvez alguém te ofereça um cachimbo de kif. Talvez não. Ninguém está vendendo experiências instagramáveis por aqui. Você não vem até o Café Baba para ver alguma coisa; você vem pra desaparecer um pouco.
“Venho aqui quase todas as tardes para espairecer. Fumo uns três baseados e vou pra casa.” – conta Ismael, meu novo amigo marroquino, enquanto contemplamos a vista da Kasbah. Recuso um baseado e peço um café.
“Você nasceu aqui?”
“Nascido e criado. 36 anos no Tânger.”
“Faço 36 amanhã.”
“Fiz aniversário dia 12. Poderíamos ter estudado juntos se você tivesse nascido aqui.”
Ismael passaria as próximas duas horas me contando não apenas a história do Marrocos, mas dos países da região. Também falaríamos sobre futebol – assim como Mohammed, o jogador favorito de Ismael é Ronaldo; o verdadeiro Ronaldo.
“Você não tem vontade de sair do Tânger? Viajar por aí?”
“Viajo todos os aqui.” – ele traga o baseado e aponta para a testa.
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Ismael, que não segue o islamismo, nos convida para uma cerveja.
Se por um lado é possível encontrar haxixe em qualquer esquina, beber álcool no Marrocos não é das tarefas mais simples. O consumo é restrito e apenas alguns poucos estabelecimentos têm permissão para venda.
Ainda que Ismael seja, digamos, cabeça aberta, à medida que o álcool atinge sua corrente sanguínea, algumas diferenças culturais – principalmente em relação ao papel das mulheres na sociedade – começam a aparecer. Isso afeta meu humor durante o resto da viagem. A ideia romântica do Tânger agora me deprime.
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À noite, I. me leva para um jantar surpresa pré-aniversário no El Morocco Club, um restaurante que remete à Era de Ouro do Tânger.
Na parede acima de mim, um retrato de Paul Bowles. Peço um negroni. Brindo silenciosamente com o seu fantasma.
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25/05/2025
Meu aniversário. 36 anos hoje. Desde os 29 passo meus aniversários em terras estrangeiras.
Londres (29), Belgrado (30), Ao Nang (31), Cape Town (32), Bangkok (33), Paris (34), Étretat (35), Tânger (36).
Acordo por volta das 6h30, ouço a primeira Salá do dia vindo do alto-falante da medina próxima ao Airbnb e subo até o terraço do prédio onde há uma área comum com vista privilegiada da cidade.
Levo comigo o livro “Days: A Tangier Diary”3, de Paul Bowles, um caderninho que ganhei de I. no meu aniversário de 35 em Étretat e minha nova parafernalha de YouTuber (microfone, câmera, tripé) para gravar um vlog que será publicado em breve na PassageiroTV; minha camisa rubro-negra do Flamengo contrasta com as casinhas brancas e o céu azul.

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À tarde, vou ao Café Hafa, fundado em 1921, mais um local onde beatniks e outros degenerados costumavam confratenizar, mas decido não escrever sobre isso.
Apenas escrevo que não escrevi sobre isso.
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Já perto do pôr do sol, uma visita rápida ao hotel El Muniria. Penso em tomar algo no TangerInn, o bar do hotel, mas após uma espiada no lugar acho a cena deprimente e desisto da ideia.
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26/05/2025
Trem para Marrakech às 11h30. Segunda classe. A cabine é para seis pessoas, mas estamos em oito – seis adultos e duas crianças. Uma velha muito velha sentada ao meu lado peida o que parece ser os restos mortais de Burroughs, um cheiro de carniça. Uma das crianças chora sem parar. Cinco horas de viagem.
🎞️ PassageiroTV
Em uma outra viagem, dessa vez pela Tailândia, mirei no Anthony Bourdain e acertei na Nana Gouvêa fazendo ensaio fotográfico em meio aos escombros do furacão Sandy.
Ajudaria MUITO o meu trabalho se você, generosamente, deixasse uma curtida no vídeo e se inscrevesse no canal. Não custa nada.
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Nome dado às cidadelas cercadas por muros ou muralhas existentes em diversas cidades do Norte da África.
Não disponível no Brasil. Achei bem chato.
Ir a algum lugar para desaparecer, uau
Cara, muito massa! Eu tenho uma história curiosa com Tânger: tinha planos de fazer a travessia de barco entre o sul da Espanha e Tânger, lendo Naked Lunch e tudo mais. Cheguei a ter o carimbo do barco no meu passaporte, mas minha namorada na época teve um problema com o visto europeu e foi barrada no embarque. Aí eu também não fui. Fiquei com o carimbo pra contar a história.