[đ´ââ ď¸ Medo e DelĂrio #8] Duelo de colonizados no Parc des Princes
A peleja entre Paraguai e Mali foi morna dentro das quatro linhas, mas fora de campo deu para se divertir e fazer amigos.
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đ§ Para ler ouvindo1: Ai Du, por Ali Farka TourĂŠ (feat. Ry Cooder).
âď¸ Por Matheus de Souza
12 de agosto de 2024
PARIS, FRANĂA
1.
Ser um imigrante na Europa tendo nascido no Brasil, um paĂs colonizado e saqueado por europeus, me faz ter uma certa camaradagem com os africanos e seus descendentes que aqui vivem, de modo que, apesar dos paraguaios serem nossos vizinhos e compartilharem de um passado colonial com consequĂŞncias tambĂŠm devastadoras para seus nativos, me vejo em uma noite quente de verĂŁo no Parc des Princes, o estĂĄdio do Paris Saint-Germain, gritando âMali! Mali! Mali!â e xingando os jogadores do Paraguai â e vez ou outra o juĂz e seus auxiliares â ao lado de uma famĂlia malinesa; a peleja ĂŠ vĂĄlida pela segunda rodada do grupo D do futebol masculino nos Jogos OlĂmpicos de Paris.
2.
O gramado do Parc des Princes parece um tapete. Em nada lembra o pasto do antigo estĂĄdio DrÂş JoĂŁo Rimsa (atualmente Osny JoĂŁo de Souza; nome do meu avĂ´ paterno, fundador do UniĂŁo Futebol Clube) no bairro Nova BrasĂlia, em Imbituba (SC), onde eu desfilava meu talento com a camisa 9 da Pita Soccer School; duvido muito que Kylian MbappĂŠ e Neymar jĂĄ tenham fugido de um quero-quero que protegia seu ninho ao lado da bandeira de escanteio.
O Paraguai, que vem de uma vitĂłria de 4x2 contra Israel â jogo que este escritor teve a chance de assistir in loco, mas decidiu boicotar â, começa pressionando Mali, que perdeu de 1x0 para o JapĂŁo em sua estreia e precisa de uma vitĂłria para seguir com chances de classificação.
3.
Em janeiro de 2013, o conflito no Mali que dura atĂŠ hoje2 ganhou repercussĂŁo mundial quando um sequestro em uma refinaria de gĂĄs na ArgĂŠlia resultou na morte de mais de vinte refĂŠns. O responsĂĄvel pelo crime, o militante islâmico Mokhtar Belmokhtar, afirmou que âo objetivo era exigir o fim da intervenção francesa no Maliâ.
O rancor com a França no paĂs Ê tamanho que Mali rebaixou a lĂngua francesa de seu status de idioma oficial3. Para o acadĂŞmico Boubacar Bocoum, "a lĂngua francesa nĂŁo foi uma lĂngua escolhida, foi uma lĂngua colonial que se impĂ´sâ.
A famĂlia de malineses ao meu lado fala francĂŞs, mas explico que ainda estou aprendendo o idioma, ânĂŁo tem problema, falamos inglĂŞs, minha esposa e eu nos mudamos para Londres hĂĄ 15 anos, nossos filhos sĂŁo inglesesâ, de modo que durante as prĂłximas duas horas conversarĂamos em inglĂŞs entre um lance e outro. Os filhos, dois garotinhos de 5 e 7 anos, estĂŁo trajados com o uniforme da seleção malinesa e ficam tristes quando, aos 5 minutos de jogo, Marcelo FernĂĄndez, camisa 7 do Paraguai, acerta um chutaço de fora da ĂĄrea â e comemora na nossa frente para delĂrio de uns poucos torcedores paraguaios infiltrados em nossa torcida malinesa.
4.
Ă a primeira vez dos garotinhos malineses em um estĂĄdio de futebol. Meu tio ZĂŠ, flamenguista fanĂĄtico, foi quem me levou a um estĂĄdio pela primeira vez. Em 20 de julho de 2003, quando eu tinha 14 anos, assisti CriciĂşma 4x3 Flamengo4 no Heriberto HĂźlse em um jogo movimentado em que o time catarinense abriu 4x0 no primeiro tempo e tomou um sufoco dos rubro-negros na segunda etapa. Antes da bola rolar, enquanto os atletas aqueciam, tio ZĂŠ chamou minha atenção para a falta de habilidade do nosso zagueiro Henrique. Em um exercĂcio simples em que um outro atleta lhe dĂĄ um passe para que ele domine a pelota, Henrique se atrapalha todo, dĂĄ uma canelada e joga a bola para longe. Henrique seria o culpado por quase todos os gols do CriciĂşma naquela tarde.
No aquecimento dos atletas malineses vi Mamadou Tounkara, o camisa 4 da seleção africana, dar uma canelada na bola e furar um domĂnio fĂĄcil. Aos 39 minutos do primeiro tempo, Tounkara erraria um corte dentro da ĂĄrea que resultaria em um gol do capitĂŁo paraguaio Diego GĂłmez, o camisa 8 que ĂŠ companheiro de Lionel Messi no Inter Miami. Para a sorte de Tounkara e alĂvio dos garotinhos malineses, GĂłmez estava impedido e o gol foi anulado.
Um rapaz vestindo a camisa da seleção de Mali, sentado um pouco mais a frente que nós, grita algo em francês para Tounkara e Ê vaiado pelos próprios malineses.
â O que ele disse? â pergunto para meu novo amigo.
â Que Toukara nĂŁo ĂŠ malinĂŞs. Que ele nasceu na França. Ele disse que Tounkara deveria jogar na França, nĂŁo KonatĂŠ e Fofana5.
5.
Um das fake news6 mais famosas do mundo futebolĂstico diz que a França âroubaâ talentos de paĂses africanos. O que acontece, na verdade, ĂŠ um movimento inverso. A França tornou-se uma grande fornecedora de jogadores para as seleçþes africanas, isso porque filhos de imigrantes escolhem defender a nacionalidade de seus pais e antepassados.
Dois sĂŁo os motivos principais: 1) a identificação com o paĂs de origem da famĂlia e 2) a concorrĂŞncia menor por uma vaga na seleção; pelas caneladas de Tounkara durante o aquecimento, suponho que seu caso seja este.
6.
Nos Jogos OlĂmpicos, cada seleção de futebol pode convocar 18 atletas e apenas 3 deles podem ter mais que 23 anos. O mais experiente em campo ĂŠ Roberto âGatitoâ FernĂĄndez (36), goleiro que atua no Brasil e defende o Botafogo. O juĂz, bastante xingado pelos malineses durante a partida â ele pode ou nĂŁo ter invertido algumas faltas e deixado de marcar um pĂŞnalti a favor de Mali â assinala 12 minutos de acrĂŠscimo. Aos 100 minutos da etapa complementar, faltando apenas 2 para acabar, o experiente Gatito, como bom catimbeiro, leva um cartĂŁo amarelo por atrasar uma cobrança de tiro de meta. Conhecendo o futebol sulamericano, essa ĂŠ minha deixa para ir embora; a partir de agora nĂŁo hĂĄ mais jogo, apenas catimba para segurar o resultado.
â Foi um prazer. Vou indo para nĂŁo pegar tanta fila no metrĂ´. â aperto as mĂŁos do homem que durante 2 horas foi meu amigo; e que nunca mais verei.
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Embora o francĂŞs ainda seja utilizado, as lĂnguas oficiais de Mali sĂŁo: ĂĄrabe hassani, bambara, bobo, bozo, cassonquĂŞ, dogon, fula, maninca, minianca, senufo, songai, soninquĂŞ e tamaxeque.
Curiosamente, o CriciĂşma nĂŁo vence o Flamengo desde entĂŁo.
Ibrahima KonatÊ e Wesley Fofana são zagueiros da seleção francesa que, assim como Mamadou Tounkara, nasceram na França, mas são filhos de malineses.
Em 1998, quando a França conquistou sua primeira Copa do Mundo, o polĂtico de extrema-direita Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, afirmou que o time era "artificial" porque tinha "muitos jogadores de cor". Em 2006, durante a Copa na Alemanha, Le Pen repetiu o discurso, acrescentando que "muita gente na França nĂŁo se identifica com essa seleção". Os Le Pen, pai e filha, sĂŁo conhecidos por opiniĂľes preconceituosas e contrĂĄrias aos imigrantes. Ainda que seja difĂcil precisar quando e onde surgiu essa fake news, foi Le Pen, o pai, quem lhe deu proporçþes mundiais.
essas amizades efĂŞmeras de torcida sĂŁo tĂŁo legais... pena que no rio tenha se tornado tĂŁo perigoso frequentar os estĂĄdios.
Futebol ĂŠ muito bom, mas futebol + histĂłria formam um combo maravilhoso.
Forte abraço, Matheus!
P.s. Um adendo a um dos comentårios, sou do RJ e vivo no Maraca assistindo ao meu Fluminense (tive o prazer de estar na final da Libertadores 2023). Flu e Fla atualmente compartilham a administração do Maracanã, e quando jogam contra, hå setores de torcida mista. Matheus, deixo aqui o convite para quando vc estiver no Rio irmos a um FlaxFlu.