Para ler ouvindo: “Big Ideas”, dos Arctic Monkeys.
1.
Em 2019, eu estava morando em um barco na Doca de Belém, em Lisboa, quando decidi escrever um livro com crônicas de viagens.
“Virou rotina desde que cheguei em Lisboa. Levanto cambaleando no barco que chamo de casa. Não por estar bêbado, mas porque essa porra balança o tempo todo”.
Foram com essas linhas nauseadas que comecei o rascunho do que viria a ser “Passageiro”.
O original de “Nômade Digital” havia sido entregue para a editora meses antes, em 31 de dezembro de 2018 (o prazo final do meu contrato), mas seria publicado apenas em 31 de julho do ano seguinte.
Boa parte do livro foi escrito em Arezzo, na Toscana, durante a Copa do Mundo de 2018, quando a Itália ficou de fora pela terceira vez na história, a primeira desde 1958.
2.
Em 2018, os Arctic Monkeys lançaram o álbum “Tranquility Base Hotel & Casino”. Father John Misty lançou “God's Favorite Customer”. Deixei o apartamento na Toscana para assistir os ingleses em Lisboa e o americano em Londres.
No final daquele mesmo ano Jair Bolsonaro venceria as eleições presidenciais.
“Enquanto a chaleira elétrica esquenta a água do meu café, a segunda garrafa do dia, os fogos na rua me alertam para a tragédia anunciada. No condomínio, construído através de um programa de habitação federal criado em 2009 pelo governo Lula, crianças jogam bola despreocupadamente na quadra próxima ao meu apartamento. Da sacada os enxergo com suas camisas da CBF. O clima é de Copa do Mundo”.
Logo após o primeiro turno participei de uma oficina literária com o autor J.P Cuenca. Lembro de ele nos contar sobre a ideia e o processo criativo de sua obra “Descobri que estava morto”.
Em 2011, após uma discussão com vizinhos que acabou na delegacia, Cuenca recebeu a notícia de que estava morto. Um cadáver foi identificado com sua certidão de nascimento num edifício invadido no bairro carioca da Lapa. Assim começou a investigação real que originou o livro.
Cuenca nos disse que um escritor deve aproveitar quando uma coincidência cai no seu colo. Acho que não com essas palavras, mas algo nesse sentido. Não anotei.
3.
Aproveitei a estadia em São Paulo durante a oficina literária para fazer o que o pessoal na Faria Lima chama de networking. Conheci pessoalmente avatares que costumavam interagir comigo no LinkedIn, a rede mais odiada da internet, mas que me deu uma carreira como escritor.
Nenhum desses encontros aparentemente foi digno de nota, uma vez que não tenho material sobre eles; apenas essa nota sobre não ter uma nota.
4.
Hospedei-me no Copan. Em uma noite qualquer logo após o primeiro turno das eleições de 2018, desci para tomar uns drinks e comer qualquer coisa no Bar da Dona Onça.
Na mesa atrás de mim estavam Eduardo Suplicy e Mônica Dallari. Com a desenvoltura de quem já bebeu alguns negronis, comento com ela que gostaria de morar em São Paulo só para ter a oportunidade de votar em Suplicy. Mônica pede que eu diga isso diretamente para o político. Suplicy acabara de ser derrotado na disputa pelo Senado e, segundo ela, estava muito triste.
“De repente me vejo sentado em uma mesa de bar com Eduardo Suplicy, bebendo drinks coloridos, discutindo o futuro do Brasil, lhe explicando o conceito de nomadismo digital, fazendo o papel de fotógrafo quando um grupo de mulheres pede uma foto com ele. Suplicy paga a conta, me entrega o seu cartão de visitas e, como um velho amigo, me diz que quando eu precisar de algo basta lhe ligar. Nunca liguei, mas guardo o cartão comigo até hoje”.
Esse encontro foi digo de nota. E de selfie.
5.
“Perdi minha carteira no aeroporto de Lisboa. Só me dei conta disso na escala em Zurique. Dinheiro, cartão de débito da minha conta na Europa, habilitação de motorista, e-Residency da Estônia e uma lembrança importante: o cartão de visitas do Eduardo Suplicy que ganhei do próprio após beber uns drinks com ele no Bar da Dona Onça, em São Paulo, após as eleições de 2018”.
Cheguei em Belgrado por volta das 23h do horário local, portando apenas o meu cartão de crédito brasileiro que, por sorte, estava na capinha do meu celular.
Na manhã seguinte liguei para o aeroporto de Lisboa tentando reaver a minha carteira. Fui informado que ela estava no setor de achados e perdidos.
Após duas semanas sofrendo com o IOF a cada transação, recebi uma correspondência no Airbnb. Era a carteira com todos os meus pertences. Incluindo o cartão de visitas do Suplicy.
6.
Em 2020, planejei uma viagem pelo Sudeste Asiático para finalizar o livro de crônicas. Comecei o itinerário pela Tailândia e de lá não saí pelos próximos 6 meses, quando voltei para o Brasil. As fronteiras foram fechadas na metade de março, quando a OMS decretou a pandemia do novo coronavírus.
Não poder viajar colocou o meu projeto do livro de crônicas em stand by. Ninguém sabia direito o que iria acontecer nos próximos meses e eu não fazia ideia de que direção tomar com a obra.
Em uma tarde qualquer dirigindo minha motinho por Koh Phangan com os fones no ouvido, “Passenger”, do Iggy Pop, começou a tocar em uma playlist.
7.
Passageiro
substantivo masculino
Pessoa que usa um meio de transporte; quem é transportado de um lugar para outro por um veículo (público ou particular).
adjetivo
Que passa rapidamente, de curta duração; breve, momentâneo.
8.
Em 2019, o Flamengo venceu a Libertadores após 38 anos de espera. Eu, que ainda não havia nascido em 1981, assisti a final de 2019 com o meu pai.
A de 2021 assisti sem ele, em Playa Del Carmen, no México. A de 2022, que acontecerá amanhã, assistirei em São Paulo, também sem a companhia do meu pai, que, assim como nas finais anteriores, assistirá o jogo em Imbituba, Santa Catarina, onde nascemos. Ele em 1949, eu em 1989.
9.
2021 foi um ano esquisito em termos de trabalho. Algumas fronteiras reabriram e voltei a viajar, mas aos poucos fui me afastando do projeto do livro – ou ele foi se afastando de mim.
Relendo o material escrito nos anos anteriores, percebi que o mundo não precisava de mais um livro com crônicas de viagens onde o autor sai por aí, bebe todas, descreve lugares e fica o tempo todo dizendo “eu”, “eu”, “eu”.
Ainda não havia nada que justificasse a existência do livro. Faltava um conceito.
10.
Em 2022, logo após voltar de uma nova viagem pelo Sudeste Asiático, dessa vez fazendo o itinerário que não consegui em 2020 – e agora na companhia da minha esposa –, me deparei por acaso com “O caminho imperfeito”, do autor português José Luís Peixoto.
O ponto de partida da obra é a sinistra descoberta de várias encomendas contendo partes de corpo humano num correio na Tailândia. O que por si só justifica a existência do livro.
Também em 2022, os Arctic Monkeys lançaram o álbum “The Car”. Father John Misty lançou “Chloë and the Next 20th Century”. Assistirei o show de ambos no Primavera Sound, em São Paulo, no próximo final de semana.
11.
Assim que vi o anúncio de que José Luís Peixoto daria uma oficina literária em São Paulo, garanti minha vaga.
No último encontro, que aconteceu ontem, comentei com ele sobre “Passageiro”.
O formato de “O caminho imperfeito”, que foge da crônica tradicional de jornal, variando entre textos mais longos e outros mais curtos, indo e voltando na ordem cronológica, transportando o leitor de um lugar para outro através de momentos breves, passageiros, que se repetem ou não, me fez enxergar um caminho que justificasse a existência do livro.
Foi Peixoto quem disse que um livro, para existir, precisa ser justificado. Acho que não com essas palavras, mas algo nesse sentido. Não anotei.
Brinquei que roubaria o formato de “O caminho imperfeito”. Ele me disse que tudo bem, que ele deve ter roubado de alguém. Assim como também roubei essa ideia de que um livro precisa justificar a sua existência.
12.
Minha esposa está no meio do processo de obtenção da cidadania italiana e em 09 de novembro de 2022 nos mudaremos para Cecina, uma cidadezinha na costa da Toscana, perto de Arezzo.
Ficaremos, no mínimo, 3 meses na Itália, tempo que utilizarei para finalizar o livro de crônicas.
Em “Passageiro”, a newsletter que leva o nome do livro, você receberá crônicas semanais, sempre às sextas-feiras, em que falarei sobre o meu processo de escrita em meio à vida cotidiana de uma cidadezinha medieval na Toscana.
13.
Em 2018, escrevi parte de um livro na Toscana durante uma Copa do Mundo em que a Itália ficou de fora. Em 2022, escreverei parte de outro livro na Toscana durante outra Copa do Mundo em que a Itália ficou de fora.
Entre 2018 e 2022 viajei por mais de 20 países, a Itália ficou fora de duas Copas do Mundo, os Arctic Monkeys lançaram dois álbuns, o Father John Misty também, tivemos duas eleições presidenciais que estarão nos livros de história, a OMS decretou uma pandemia, o Flamengo jogou três finais de Libertadores.
Enquanto era transportado de um lugar para outro por um veículo (público ou particular), o tempo passava rapidamente. Momentos breves, passageiros, coincidências, eventos que se repetiram ou não. Acho que o livro é sobre isso.
A sua forma de escrita é bastante inspiradora. Quando conheci “Passageiro”, estava já no #15. fui lendo e me identificando com o estilo de escrita, o que me fez parar e começar do #1. Recebi a indicação do blog da minha amada esposa.. aliás, ela vem escrevendo muitas crônicas e contos da sua área de atuação: medicina.
A minha esposa e eu estamos na iminência de iniciarmos o nosso processo de cidadania na Itália. Foi bem legal saber algumas das futuras crônicas terá todo um contexto no qual estarei inserido em um futuro próximo.
Abraços de BH!
Interessante o enredo e o desenrolar das passagens, algo similar a um déjà vú, só que neste caso, você vivenciou dê fato. A temática relacionada ao tempo é fascinante quando estamos atentos para registrar os momentos que constroem a narrativa, sejam fragmentos de algo efêmero ou acontecimentos memoráveis. Valeu, Matheus!