[Passageiro #11] Os lugares
Lisboa mudou, eu também, mas algo continua igual: aqui me sinto em casa.
Para ler ouvindo: The Passenger, do Iggy Pop.
1.
No fim de 2022 fui convidado para palestrar em um TEDx. O tema do evento era “lugares”. O briefing dizia o seguinte:
“Lugar é onde, aonde. Aqui e lá. Fora e dentro. Pode ser físico, geográfico ou virtual. Pode ser casa, permanência, viagem. O pensamento, o sonho, a fala, o sentir. Existência e, ao mesmo tempo, ausência. Vida, luto e luta. Corpo e mente. Estamos, estivemos, estaremos ocupando e existindo em lugares”.
Vivendo uma vida nômade desde 2017, estive e existi em muitos lugares – quase 30 países, alguns deles mais de uma vez, segundo o meu perfil no Nomad List.
Descobri durante esse período que viver na estrada é lidar constantemente com um sentimento de não pertencimento, de não pertencer àquele lugar, de ser um intruso.
Alguns lugares, no entanto, por um ou outro motivo, nos trazem uma sensação de casa. A Tailândia, em 2020, no auge da pandemia, foi um deles. Me vi preso no país assim que as fronteiras internacionais foram fechadas – e escolhi falar sobre isso no TEDx (infelizmente o vídeo oficial do evento ainda não está disponível).
2.
Foi em Koh Phangan, quando chamei a ilha tailandesa de casa em 2020, que tive a ideia do título do livro. Em uma das várias idas e vindas de motinho entre meu bangalô e o Pum Pui, meu restaurante favorito, The Passenger, do Iggy Pop, começou a tocar nos fones de ouvido.
“É isso”, pensei, enquanto sentia o vento na cara.
3.
Estou em Lisboa. É minha primeira vez na capital portuguesa desde 2019, aquela em que morei em um barco ancorado na Doca de Belém.
A cidade mudou, eu também, mas algo continua igual: aqui me sinto em casa. Pode ser a língua, pode ser pelo tanto de brasileiros circulando, pode ser porque o Cais do Sodré me lembra Florianópolis.
I. também sentiu-se assim. É a primeira vez dela em Lisboa. Ontem decidimos que vamos morar aqui. Os preços de aluguel dispararam de 2019 para cá, amigos falam para irmos para o norte, Porto, quem sabe, ou buscar cidades nas proximidades de Lisboa, Ericeira, quem sabe, mas é aqui que nos sentimos em casa, então daremos um jeito de pagar o preço – só não moraremos em um barco. Os dias nômades estão chegando ao fim. Tudo é passageiro.
4.
No início de 2022 voltei para Koh Phangan, dessa vez na companhia de I. A ilha mudou pouco de 2020 para cá, mas mudou. Novos empreendimentos surgiram, outros fecharam. Era a semana do Songkran, o ano novo tailandês, e o Pum Pui estava de férias, de modo que não pude apresentar o meu restaurante favorito para I.
Essa viagem foi marcada por uma sensação estranha de felicidade, de excitação, de querer apresentar para I. cada pedacinho de Koh Phangan, como se eu estivesse apresentando minha casa a ela, aquele lugar, entre tantos lugares, que eu não nasci, mas que também pertenço.
Tenho sentido o mesmo em Lisboa enquanto apresento a capital portuguesa para I. – ou a minha versão da capital portuguesa. O croquete no Time Out, a explicação de como funciona o transporte público, a livraria na LX Factory, o por do sol no Cais do Sodré, o “foi nessa doca aí que morei no barco”.
5.
Esses dias abri uma sessão de perguntas e respostas no Instagram (por lá sou o @matheusdesouzacom) e fui perguntando sobre como escolher o que entra ou não em um livro sobre uma longa viagem.
Em uma das edições desta newsletter falei sobre como acredito que o grande erro dos livros de crônicas de viagens é o excesso do “eu”. Apesar de tratar-se de uma escrita autobiográfica, esse foco dos(as) autores(as) no “eu fiz isso” e “eu fiz aquilo” quando “eu estive em tal lugar”, misturando guia de viagem com narcisismo masturbatório à la Karl Ove Knausgård (e eu adoro Karl Ove Knausgård), torna a leitura cansativa.
Assim como a autora da pergunta, também sofri um bocado para entender o que deveria ou não entrar no livro. Cheguei à conclusão de que, talvez, escrever um livro de crônicas de viagens seja como apresentar as nossas versões dos lugares para alguém que amamos. Eles, os lugares, são os personagens; não o “eu”.
✍️ Notas:
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Outro papel do(a) cronista é ser uma voz do seu tempo, da sua geração, é documentar a história enquanto escreve a sua própria. Ninguém, na minha opinião, fazia isso melhor do que a eterna Joan Didion. Comece lendo O álbum branco.
Putz, essa edição aqui me pegou no pulo e segurei as lágrimas! O não-pertencimento a nenhum lugar e não ser o personagem de nenhuma história por onde passamos: parece desesperador, mas quando você se deixa imergir e permite se tornar parte do todo, passa a ser liberdade!
Imagino como deve ser legal encontrar várias partes de cidades que acaba se identificando com você. Das diversas cidades que se sente um intruso, deve ser o momento que pode relaxar quando encontra esses lugares.
Muito bom ler seus textos!