[Passageiro #21] Tentativa de jornalismo gonzo na Tailândia
Tatuagem sagrada, Hunter S. Thompson tailandês e maconha liberada: a Tailândia é um prato cheio para o jornalismo literário – uma pena que ele esteja morrendo.
Para ler ouvindo: Trouble Every Day, por The Mothers of Invention.
O jornalismo literário está morrendo. Os culpados são muitos: internet, paywall, SEO, ChatGPT e qualquer outra forma de entretenimento que dê mais curtidas nas redes sociais.
Saudosista confesso e sem gingado para se gravar fazendo passinhos de dança naquela rede social de vídeos, nosso intrépido correspondente internacional na Tailândia envia três sugestões de pautas que renderiam boas matérias no maior estilo gonzo – caso ele fosse pago para isso e não bancasse as suas próprias viagens.
Sugestão de pauta 1: Tatuagem sagrada feita por monges
CHIANG MAI – A fumaça que esconde o Doi Suthep no horizonte é o anúncio de que a temporada de queimadas começou. Faz pouco mais de 30 graus e o ar está pesado. Caminho pela Cidade Velha pensando nas minhas intenções. Seria eu merecedor de uma sak yant? O que direi ao Ajarn? E se ele não for com a minha cara e tatuar o que bem entender? Já li relatos de ocidentais que não falam tailandês e não puderam escolher o desenho e tampouco o lugar do corpo.
A primeira vez que ouvi falar nas sak yants, as tatuagens sagradas tailandesas feitas por monges e ex-monges budistas, foi durante o lockdown de 2020. Eu estava na Tailândia quando as fronteiras internacionais foram fechadas, resolvi ficar por aqui e me vi “preso” por quase 10 meses no país. Na época, templos e estúdios de tatuagem estavam fechados por causa da pandemia, de modo que não pude arriscar a minha pele – literalmente, uma vez que não estou certo das condições de higiene das varetas metálicas dos Ajarns (em alguns templos eles ainda utilizam bambu, da mesma maneira como faziam há cerca de dois mil anos).
Chego no estúdio no horário marcado e sou atendido por Ploe, simpática tailandesa que, ao longo da manhã, repetiria que gostaria de ter uma pele tão branca quanto a minha. Explico que no Brasil a moda é ser bronzeado. Ela diz que podemos trocar de pele. Ser branquelo por aqui, assim como no resto do Sudeste Asiático, é questão de status social. Quanto mais pálido melhor. Mulheres circulam com camisas de manga longa e calças para se protegerem dos raios de sol e há todo um mercado bizarro e racista de produtos para branquear a pele. “Você só precisa ser branca para vencer”, dizia um anúncio veiculado por uma famosa empresa de cosméticos que causou polêmica no país em 2016.
O colega de Ploe, que agora não recordo o nome (se eu fosse um jornalista pago por algum veículo talvez tivesse o cuidado de tomar notas), fica feliz ao saber que sou brasileiro. Arrisca algumas palavras em português. Diz ser fã de música brasileira, mostra em seu Spotify várias músicas de Gusttavo Lima (daqui para frente ele será referenciado como Tailandês Fã de Gusttavo Lima), penso “puxa, imaginei que ele me mostraria Tom Jobim ou Mutantes”, respondo “que legal, adoro Gusttavo Lima”, e Ploe e Tailandês Fã de Gusttavo Lima entram em uma rinha de quem sabe mais palavras em português – Ploe ganha por pouco, mas a pronúncia de Tailandês Fã de Gusttavo Lima é um pouco melhor.
Ploe pergunta se estou ciente dos significados dos desenhos mágicos, digo que sim, ainda que não esteja tão ciente assim, mas me arrisco a dizer que quero receber do Ajarn uma hah taew no antebraço direito. A hah taew é composta por cinco linhas sagradas que protegem contra maus espíritos, má sorte e pessoas mal-intencionadas – além de trazer boa energia, sucesso e carisma. Ela me deixa tranquilo quanto à higiene das varetas metálicas ao mostrar o seu funcionamento e garantir que as agulhas são trocadas a cada novo cliente.
Tailandês Fã de Gusttavo Lima me encaminha até a sala em que o Ajarn me aguarda e sou instruído a entregar uma cesta com oferendas ao mestre tatuador. Ploe entra na sala e conversa algo em tailandês com o Ajarn. “Ajarn Beer”, ela o apresenta. “O nome dele é Beer, kkkk”, penso eu, “não tem como dar errado”.
Ajarn Beer foi monge por 12 anos e faz parte da terceira geração de uma família de mestres sak yant. Enquanto ele me tatua com a sua vareta metálica – a dor é semelhante a alguém lhe espetando com alfinetes; uma delícia, tipo acupuntura, imagino, já que nunca fiz uma sessão –, Ploe, que está segurando o meu braço, quer saber o significado de algumas palavras em português. Ela me pede para ensiná-la algum palavrão, dou um sorriso sem graça e brinco que talvez não seja o momento – só consigo pensar em palavrões pesados. Tipo, bem pesados. Ajarn Beer também ri, o que me faz pensar que ele provavelmente entende o que estamos conversando. Seria um teste?
O procedimento, praticamente indolor, dura pouco mais de 40 minutos. Ao final, Ajarn Beer benze a tatuagem. Ploe me instrui a pensar em minhas intenções durante a benção. O ritual emociona o intrépido correspondente internacional na Tailândia.
Ao nos despedirmos, já fora do estúdio do Ajarn Beer, Ploe pergunta novamente se podemos ensiná-la um palavrão em português. I., a responsável pelas belas fotografias que ilustram essa sugestão de pauta que nunca será publicada em outro lugar por falta de interesse e curtidas, diz para Ploe sussurrar algum palavrão em inglês no seu ouvido.
– What the hell! – ela sussurra aos risos; um riso quase infantil.
Fico aliviado em não ter falado o que tinha em mente na primeira vez em que fui questionado. Lembro de Caio Ribeiro.
Sugestão de pauta 2: Hunter S. Thompson tailandês
CHIANG MAI – Estou na capital criativa do Sudeste Asiático. Tudo o que há de mais hipster na região está concentrado em Chiang Mai, norte da Tailândia.
Dizem que não se compra um livro pela capa, mas não consigo tirar os olhos daquele tailandês segurando uma câmera antiga. The man from Bangkok: San Francisco’s culture in the 60s. Não tem como ser ruim.
‘Rong Wongsavun (ou Wongsawan) é uma espécie de Hunter S. Thompson tailandês. Nascido em 1932 e morto em 2009 aos 76 anos, publicou pouco mais de 100 livros em sua longeva carreira como escritor. The man from Bangkok, publicado em 2022 apenas na Tailândia, é seu primeiro livro traduzido para o inglês.
Penso ter descoberto um tesouro. ‘Rong viveu na Califórnia dos anos 1960, aqueles dos hippies, de Woodstock, da descoberta dos psicodélicos. Em seu The man from Bangkok, ‘Rong apresenta essa terra tão distante aos tailandeses da época. “Por que os americanos são do jeito que são?”, “Por que há tanto rancor nas relações entre pais e filhos?”, “Por que os americanos são tão obcecados com pornô ao mesmo tempo em que são tão puritanos?”, “Por que o dinheiro é a base de tudo nos Estados Unidos da América?”. Os questionamentos de ‘Rong seguem atuais.
The man from Bangkok foi traduzido por Tony Waters, professor universitário radicado em Chiang Mai, em parceria com os seus alunos. Waters também contou com a ajuda de Sumalee, viúva de ‘Rong que hoje toca o Tune In Garden, restaurante a cerca de uma hora de Chiang Mai na mesma propriedade em que o Hunter S. Thompson tailandês escreveu os seus últimos livros.
Caso fosse pago para tal, eu até poderia entrevistar Waters e Sumalee, mas o jornalismo literário está morrendo. Provavelmente nunca saberemos o que eles teriam a dizer.
Sugestão de pauta 3: Maconha liberada na Tailândia
BANGKOK – O estereótipo é bom: cabelo comprido e braços tatuados. Os contemporâneos de ‘Rong Wongsavun devem me tachar de maconheiro, mas a verdade é que não fumo – maconha ou qualquer outra coisa.
A Tailândia foi o primeiro país asiático a legalizar a maconha. Desde então (junho de 2022), explodiram os cafés e bares dedicados ao consumo da erva tão sagrada para muitos quanto uma sak yant para outros.
Na última edição dessa newsletter comentei que me hospedei na Khao San Road, a rua mais louca de Bangkok. Confesso que na época em que escrevi o citado texto, este intrépido correspondente internacional na Tailândia estava deveras confiante com a sua escolha, porém, a Khao San Road de 2023 é ainda mais louca do que aquela de 2020, quando aquele que escreve estas palavras esteve pela última vez no fervo de Bangkok.
O comércio legal de maconha deixou as coisas ainda mais frenéticas. Enquanto esperava meu pad thai de camarão ficar pronto em uma das várias barraquinhas de street food, observei, pela janela, o que estava rolando em um desses ambientes de venda e consumo da erva sagrada – ambiente de música é ambiente de drogas, já diria Rogerinho do Ingá.
O que meus olhos viram certamente viralizariam em um artigo da VICE, mas, como não fui pago para isso, deixo os flashs apenas na imaginação do leitor.
A fumaça no interior do estabelecimento lembrava o horizonte de Chiang Mai durante a temporada de queimadas. Os lentos movimentos de gringos e tailandeses, assim como a música que ultrapassava as paredes, um dub jamaicano que deve ter inspirado o Khruangbin, deixavam a cena ainda mais cinematográfica – renderia um bom story para o Instagram com um daqueles filtros que simulam uma câmera 8mm.
Dito isso, peço que imaginem um escritor sendo pago para passar uma noite inteira relatando o que viu na Khao San Road de 2023. Sem beber ou fumar nada, completamente sóbrio para lembrar de cada detalhe.
Como o jornalismo literário está morrendo, talvez nunca saberemos o que esse escritor teria visto. Se bem que Passageiro, o livro, vem aí…
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento:
Qual o estrangeirismo que vocês mais detestam?
O meu é bowl. Por que falar bowl quando podemos falar CUMBUCA?
✍️ Notas de rodapé:
Durante o mês de março, quem se inscrever no meu curso de Marketing Pessoal e Produção de Conteúdo ganha, de brinde, o curso de Escrita Criativa – uma economia de R$ 597. Garanta o seu combo neste link (bora dar um up na sua carreira e, de quebra, ajudar o seu escritor favorito a pagar o seu rolê pela Tailândia).
Recomendo este artigo (em inglês) para entender quem foi ‘Rong Wongsavun e o seu impacto na literatura tailandesa.
'People From My Hometown Need Water To Drink': essa entrevista (também em inglês) do Mdou Moctar – banda foda de nômades do Níger – pra VICE é o tipo de coisa que eu poderia estar fazendo (no caso eu seria o entrevistador).
Unknown Mortal Orchestra, uma das minhas bandas indie favorita, acaba de lançar V, um álbum duplo gostosinho demais.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
o jeito é esperar o livro chegar para ver os olhares desse correspondente internacional na Tailândia!
sobre os estrangeirismo, para quem saiu do mundo das agências, muitas palavras são traumáticas.
mas engraçado que hoje mesmo fiquei indignada com uma dessas alterações para o inglês que não fazem sentido: overnight oat.
cara, a mistura de aveia com leite, deixada na geladeira, virou comida chique chamada de overnight oat. todos os sites brs e nutricionistas que eu vejo, falam overnight oat. é mingau gente. mingau!
essa realmente me irritou hoje mais cedo. hahaha
Budget e target rsss