[Passageiro #24] De volta à Koh Phangan
Um texto sobre sentir-se em casa fora de casa – e resistir à tentação de interferir na realidade local.
Para ler ouvindo: White Sands, por Tommy Guerrero.
1.
Em Cuba e o Cameramen, documentário original da Netflix lançado em 2017, o cinegrafista estadunidense Jon Alpert compartilha com o público gravações feitas no país de Fidel Castro entre 1974 e 2016, ano da morte do revolucionário cubano.
Em 1974, um jovem Jon, na época com 25 anos, partiu em uma embarcação de Key West, na Flórida, Estados Unidos, rumo a Havana, Cuba. Dez anos haviam se passado desde o início da Revolução Cubana e Jon queria registrar os efeitos disso no desenvolvimento do país e na vida da população local.
Independentemente da opinião que você tenha sobre Fidel Castro, sobre a Revolução Cubana, sobre o embargo dos Estados Unidos, sobre o comunismo ou o capitalismo, Cuba e o Cameramen acerta em focar nas pessoas, em mostrar algo que quem viaja para destinos fora da rota do turismo comercial all inclusive e fica mais tempo nos lugares tem a oportunidade de experimentar: a convivência além da relação turista-serviçal.
Ao longo de quatro décadas em que voltou à Cuba, Jon fez inúmeras amizades com personagens locais, tanto da cidade como de zonas rurais, repletos de histórias peculiares e dramas humanos que desenrolam-se de forma inquietante. A cada volta de Jon, você torce para que aqueles personagens, que tornam-se amigos do cinegrafista, tenham prosperado.
2.
Na 17ª edição da newsletter Passageiro, escrita enquanto eu estava na Albânia, contei como a Tailândia, mais especificamente Koh Phangan, arruinou a minha vida – no sentido de que nada nunca mais foi igual. O que eu não sabia, quando escrevi aquelas linhas, é que pouco mais de um mês depois eu estaria escrevendo outras linhas diretamente de Koh Phangan graças ao bater de asas de uma borboleta.
A primeira vez em que estive na ilha que arruinou a minha vida foi na metade de 2020. Era o primeiro ano da pandemia, eu estava “preso” na Tailândia (as fronteiras internacionais haviam sido fechadas) e, assim que o governo tailandês liberou o turismo doméstico após dois meses de um lockdown que funcionou, decidi deixar Chiang Mai e partir para a famosa ilha da Full Moon Party – festa estranha com gente esquisita que até hoje não frequentei e que espero que isso se mantenha.
Eu não sei se foi o momento (eu havia ficado dois meses trancado em um apartamento), se foi a sensação de liberdade de viver uma espécie de realidade alternativa em uma ilha paradisíaca livre do coronavírus (até então Koh Phangan não havia registrado nenhum caso), se foram as praias de água cristalina e areia branca, se foi a descoberta da vida em duas rodas, se foi tudo isso junto. O fato é que, desde que deixei Koh Phangan em 2020, a ilha sempre esteve em meu imaginário.
3.
No início de 2022, I. e eu estávamos sossegados no sul do Brasil, vivendo uma vidinha normal, juntando dinheiro para uma possível mudança para Portugal quando o bater de asas de outra borboleta desviou a nossa rota: a Tailândia reabriu suas fronteiras para o turismo, eu fechei um contrato que me rendeu um bom e inesperado dinheiro e uma promoção de passagem aérea pela metade do preço do que geralmente custa a rota Brasil-Tailândia-Tailândia-Brasil pipocou no meu celular. “E se fizermos uma despedida dos dias nômades pelo Sudeste Asiático? Tailândia, Vietnã e Indonésia. Quero te apresentar Koh Phangan”, cochichei no ouvido de I., tal qual um diabinho. Compramos, pela primeira vez, uma passagem de ida e volta – nossa primeira viagem com um roteiro definido (5 dias em Bangkok, 7 em Phi Phi, 13 em Koh Phangan, 3 em Hanói, 8 em Da Nang, 4 em Ho Chi Minh, 8 em Ubud, 11 em Canggu).
Foi estranho revisitar a Tailândia naquele início de uma tentativa de vida pós-pandêmica (ainda que a pandemia não tivesse – ou tenha – acabado oficialmente). Lugares que eu costumava frequentar fecharam as portas. Novos estabelecimentos surgiram. A hospedagem ficou um pouco mais cara. Nômades que conheci seguiram seus caminhos; outros que haviam ido embora também voltaram. Na época, escrevi a respeito na Folha de S.Paulo (e você pode ler o texto diretamente no meu site sem paywall).
4.
Mais um ano se passou e estou de volta à Koh Phangan. Dessa vez, muita coisa mudou – e está mudando.
A gentrificação está chegando por aqui – o que é sempre preocupante. O preço dos aluguéis está inflacionado. Novas construções surgem a cada esquina – o que também é preocupante, uma vez que estamos falando de uma ilha que começa a sofrer com o desmatamento.
“Enquanto meu pad thai com tofu é preparado, observo um tailandês magrelo com um macaco na garupa estacionar sua motoneta do outro lado da rua. O bicho, preso por uma longa corrente, sobe em uma árvore e volta com um coco. Ele repete o processo enquanto o tailandês magrelo fuma um cigarro. A Tailândia é o terceiro maior exportador mundial de coco e muitos produtores locais dependem da mão de obra de macacos. A People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), maior organização de direitos dos animais, conduziu uma investigação em 2019 para denunciar a forma como os animais são treinados para subir às árvores e colher cocos. Quando não estão trabalhando, como o macaco escravizado que vi em Koh Phangan, eles geralmente são mantidos acorrentados e transportados em jaulas minúsculas. Depois de a investigação da PETA ter sido publicada, algumas redes de supermercados decidiram boicotar produtos de empresas tailandesas que utilizam a mão de obra de macacos. O caso mais emblemático de boicote foi do time de futebol do Liverpool, que encerrou seu contrato de patrocínio com a Chaokoh, uma das empresas citadas na investigação da PETA, cujo jogador brasileiro Roberto Firmino era um dos garotos-propaganda. O tailandês magrelo percebe que estou de olho em seu funcionário e me encara como quem diz ‘isso não é problema seu, farang de merda’. Abro a notificação do celular e há um convite para uma live no Instagram. O tema, claro, é nomadismo digital”.
(Trecho de Passageiro, o livro, escrito em 2020. Essas árvores em que o macaco escravizado colhia cocos, e que ficavam em frente ao Pum Pui, meu restaurante favorito na ilha, foram derrubadas. Há uma construção no local.)
É tentador, quando você sente-se em casa sem estar, de fato, em casa, tentar ou achar que tem o direito de interferir na realidade local. Esse talvez seja o grande dilema de um viajante; ser apenas um observador, como Jon Alpert em Cuba, sem emitir opiniões ou interferir no curso das coisas.
Koh Phangan vive do turismo. As fronteiras internacionais da Tailândia ficaram fechadas por dois anos. Nesse tempo, pude sair e voltar da ilha; a população local não. Enquanto viajo pelo mundo trabalhando online, ficando 2 ou 3 meses em cada lugar, essas pessoas precisam se virar. Pum Pui, aquele do restaurante, ampliou o seu espaço e agora também faz um extra alugando motonetas para turistas. Ele parece ter prosperado. O The Jam, barzinho com música ao vivo que eu costumava frequentar em 2020, mudou de lugar porque o dono do terreno decidiu construir umas casinhas para alugar. O novo endereço do The Jam é um pouco mais afastado do centrinho da ilha, o que imagino ter afastado o público habitual. O dono do terreno no antigo endereço, no entanto, provavelmente ganha mais dinheiro hoje em dia com as casinhas. O Rasta, outro barzinho que eu costumava frequentar em 2020, agora cobra 100 baht de ingresso (em torno de R$ 15) – antigamente era gratuito. Com a liberação da maconha na Tailândia, vários cafés dedicados ao consumo da erva surgiram em Koh Phangan. O Rasta, mesmo antes da liberação, dava os seus pulos. Ganharam uma concorrência a mais com a liberação. A guerra entre Rússia e Ucrânia fez com que muitos russos viessem para… Koh Phangan! Alguns deles têm revoltado a população – local e de expatriados – ao aplicarem golpes em plataformas como o Airbnb (alugando espaços que não lhe pertencem, tipo sublocar, mas sem que os donos dos imóveis estejam cientes). Em grupos do Facebook, há uma cruzada contra os agentes (imobiliários) russos da KPG (Koh Phangan).
5.
Há uma diferença entre emitir uma opinião e narrar o que se vê. A imparcialidade no jornalismo talvez seja um mito, nenhum jornalista é imparcial porque segue os interesses de quem lhe paga (esse vídeo do Pedro Cardoso na CNN mostra essa teoria na prática), mas (felizmente?) eu não sou um jornalista.
É difícil, muito difícil, resistir à tentação de opinar sobre o que vi ou o que vejo, seja em Koh Phangan, em Israel, na África do Sul ou mesmo no Brasil, mas, assim como Jon Alpert em Cuba e o Cameramen, ou mesmo como o saudoso Anthony Bourdain fazia em seus programas de TV, tenho tentado focar nos personagens locais, nos dramas humanos, naquilo que nos une independentemente da nacionalidade. Quero que cada história contada fique em aberto para que vocês, os leitores, decidam quem são os mocinhos e os vilões. Talvez esse seja o papel do cronista.
6.
PS: 1 ano depois, I. e eu estamos em outra viagem de despedida dos dias nômades. Dessa vez acho que é pra valer. Aguardemos as próximas borboletas…
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento:
Vocês gostam de comida apimentada? Aqui na Tailândia os rangos, geralmente, são bem apimentados. Eu adoro. Mas hoje o pessoal exagerou no meu prato. Meu couro cabeludo ficou ensopado de suor, meu nariz começou a escorrer, minha língua a queimar, os lábios incharam… Não foi uma cena bonita.
✍️ Notas de rodapé:
Se você tem vontade de viajar o mundo enquanto trabalha de forma remota, se liga nessa: meu curso Nômade Digital, que custa R$ 997, está sendo ofertado por apenas R$ 300! É isso mesmo. Corre aqui para saber mais e aproveitar esse descontão.
“Ninguém chegou perto de preencher o vazio que Anthony Bourdain deixou, mesmo depois de quatro anos de sua morte. Sua paixão e curiosidade genuínas sobre pessoas e diferentes culturas fizeram o mundo parecer menor e mais conectado. Apesar de sua personalidade afável, confiante e autêntica na TV, o verdadeiro Tony era reservado, sempre em profundo conflito com a fama e enigmático até mesmo para aqueles próximos a ele. A equipe de Tony o conhecia melhor que a maioria das pessoas, e talvez ninguém tenha sido tão próximo quanto seu diretor e produtor, Tom Vitale. Com base em filmagens de programas, transcrições, cadernos de anotações, itinerários de viagens, e-mails e velhos recibos, Vitale constrói um registro emocionante, sóbrio, angustiante, divertido e frenético do que era conviver com Anthony Bourdain por trás das câmeras”. Sinopse de Em maus lençóis, livraço que estou lendo.
Na edição anterior da newsletter falei sobre marketing literário. Para quem se interessa pelo tema, sugiro acompanhar a coluna da Vanessa Passos no PublishNews.
Lembram que comentei sobre o meu plano de monetização da newsletter? As assinaturas pagas estarão disponíveis já na próxima edição. Preparei várias coisas especiais para vocês!
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Essa é a grande tentação dos viajantes e da sociedade globalizada - vide ONU! Quando estava na Indonésia muçulmana, não era incomum vermos cachorros enjaulados - são considerados impuros para a religião. Minha amiga alemã, incrédula com um especialmente maltratado e acorrentado, começou a gritar com o dono do cão e, inclusive, com a gente, por estarmos sendo "coniventes" com aquilo. É realmente um tema muito espinhoso, porque não compete a nós interferir ali e "ensinar" o melhor. Essa postura é extremamente colonialista, inclusive. Talvez quem tenha estudado direito (e principalmente direitos humanos) tenha uma inclinação maior para interferir, mas acho que faz bem deixarmos de lado a posição de "juízes da verdade", do "bem e do mal" (contém ironia) de lado, e nos abrirmos para observar, conversar, ouvir... na maioria das vezes, é o que fazemos de melhor!
Não interferir no modo de viver de outras culturas é realmente uma grande dificuldade, mas, acima de tudo, uma grande necessidade. Cada cultura é única e não podemos ignorar essas diferenças. Sim, há questões que podem nos ferir de forma pessoal e mesmo gerar indignação, mas precisamos colocar um filtro nisso, até porque não somos o umbigo do mundo, rs.
Gostava muito da postura do Bourdain nesse sentido. Observar, interagir, conhecer, se relacionar, mas não interferir. Vou dar uma olhada nas referências que você passou.
Abraço!