[Passageiro #26] Balões, sonhos lúcidos e golpes militares em Mianmar
Tentando encontrar algum sentido no caos; inspirado por Joan Didion.
Para ler ouvindo: Where Is My Mind?, por Pixies.
1.
ENTREVISTADORA
Você disse que escrever é um ato hostil; eu sempre quis te perguntar por quê.
JOAN DIDION
É hostil porque você está tentando fazer alguém ver algo do jeito que você vê, tentando impor sua ideia, sua imagem. É hostil tentar mexer com a mente de outra pessoa dessa maneira. Muitas vezes você quer contar a alguém seu sonho, seu pesadelo. Bem, ninguém quer ouvir sobre o sonho de outra pessoa, bom ou ruim; ninguém quer andar por aí com ele. O escritor está sempre enganando o leitor para ouvir o sonho.
2.
O balão chega à estratosfera. Sinto um frio na barriga ao olhar para baixo. O caminho parece o mesmo do teleférico até Bà Nà Hills, em Da Nang, no Vietnã, onde fica a Golden Bridge, aquela ponte dos dedinhos, mas a paisagem é outra, uma mistura da Los Angeles de Blade Runner, a versão de 1982 com Harrison Ford, com o Vietnã de Francis Ford Coppola em Apocalypse Now. The End, do The Doors, começa a tocar. Previsível. Centenas, talvez milhares de pagodas e templos budistas no horizonte, mas não os templos aqui da Tailândia, as cores e os formatos são diferentes. Onde estou? Cambodia? Birmânia? Sri Lanka? No topo da montanha há uma estátua de um Buda em proporções absurdas, duas, talvez três vezes maior que o Cristo Redentor. Procuro por I. no interior do balão, que parece maior do que o interior de um balão costuma ser. Ela precisa ver o que estou vendo. É incrível. É… um sonho?
3.
Em 1962, através de um golpe de Estado, os militares chegaram ao poder na Birmânia. Em 1988, eles mudaram o nome do país para Mianmar. Em 1990, eleições democráticas foram, enfim, realizadas. O pleito foi vencido pela líder pró-democracia Aung San Suu Kyi, mas os militares ignoraram o resultado. Novo golpe.
Suu Kyi foi presa após as eleições e, no ano seguinte, durante a sua prisão domiciliar que durou até 2010, venceu o Prêmio Nobel da Paz.
Entre 2010 e 2011, o poder de Mianmar, que estava nas mãos dos militares, começou a ser devolvido à sociedade civil por meio de reformas que promoveram a abertura política (e turística; Anthony Bourdain esteve lá). A ditadura militar deu lugar a uma democracia parlamentar, em que a população tinha participação na escolha dos representantes por meio do voto; ainda que o partido militar tenha vencido as eleições e ficado no poder até 2015.
Em 2015, quando novas eleições gerais foram realizadas, a Liga Nacional para a Democracia (NLD, na sigla em inglês) venceu a disputa. Esse partido havia surgido na década de 1980 e lutado historicamente pela derrubada da ditadura militar. A ascensão da NLD trouxe também Suu Kyi ao poder. A grande líder histórica do partido assumiu o cargo de conselheira de Estado, uma espécie de primeira-ministra.
Durante o seu mandato, Suu Kyi procurou manter uma boa relação com os militares, que, mesmo longe do poder, ainda tinham muita influência na política local. Suu Kyi, inclusive, foi internacionalmente criticada por ser conivente com o genocídio dos rohingyas, uma minoria étnica adepta do islamismo que vive em Mianmar. A Anistia Internacional retirou o prêmio de Embaixadora da Consciência que havia sido concedido à Suu Kyi em 2009 e o Instituto Nobel chegou a ser pressionado para que o mesmo acontecesse com o Nobel da Paz, mas, de acordo com a organização, não existe a possibilidade de retirar o prêmio de qualquer um dos ganhadores.
Em outubro de 2020, a NLD de Suu Kyi conseguiu a reeleição. Em fevereiro de 2021, novo golpe militar. A jovem democracia de Mianmar durou apenas 10 anos. Suu Kyi, 77, foi presa novamente – a pena dessa vez é de 33 anos.
4.
Eu nunca estive em Mianmar – ou na Birmânia –, mas cito o país algumas vezes no livro que estou escrevendo como uma referência geográfica para Chiang Mai; “Chiang Mai, no norte da Tailândia, perto da fronteira com Laos e Mianmar”.
Antes de nos mudarmos para a casa em que estamos atualmente em Koh Phangan, ficamos duas semanas em um hotel no centrinho de Thong Sala, perto de onde rolou as festividades do Songkran. Todos os dias, por volta das 7h da manhã, eu me acomodava em uma das mesas do restaurante para escrever. A televisão estava sempre ligada em um canal de notícias. Não falo tailandês, mas em mais de uma vez vi imagens dos atentados recentes contra civis em Mianmar.
Em 12 de abril, um avião da junta militar bombardeou um vilarejo em Sagaing, antiga capital do país, onde cerca de 300 pessoas comemoravam a abertura de um escritório da administração local. Pelo menos 100 pessoas, incluindo mulheres e crianças, morreram no ataque. O canal de TV tailandês mostrou as imagens dos corpos empilhados em Mianmar; a maioria dilacerados.
E se isso tivesse acontecido na Europa? Ou nos Estados Unidos?
“Os ataques militares de Mianmar contra pessoas inocentes, incluindo o ataque aéreo de hoje em Sagaing, são possibilitados pela indiferença mundial e por aqueles que fornecem armas a eles”, disse Tom Andrews, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos em Mianmar.
5.
Acabo de ser hostil com você, caro(a) leitor(a); e não pedirei desculpas por isso. Acredito que um dos papéis de quem escreve é justamente gerar desconforto; para que, de alguma maneira, o(a) leitor(a) encontre algum conforto na literatura.
Eu nunca estive em Mianmar – ou na Birmânia –, mas hoje acordei de um sonho lúcido que, aparentemente, se passou no país. Ao procurar por “Mianmar” no Google, fotos dos balões em Bagan, cidade histórica que descobri ser Patrimônio Mundial da UNESCO, apareceram na pesquisa. O cenário, exceto pela estátua de um Buda em proporções absurdas do sonho, é o mesmo. O bizarro dessa história toda é que, até então, eu nunca tinha visto uma foto ou vídeo dos balões em Bagan; sequer sabia da existência da cidade.
6.
Joan Didion, que nos deixou em 2021 aos 87 anos, respondeu em um ensaio de 1976 para o The New York Times a pergunta que sempre me deixa desconfortável: “por que você escreve?”.
"Escrevo inteiramente para descobrir o que estou pensando, o que estou olhando, o que vejo e o que isso significa." (Joan Didion)
Ela começa o texto dizendo que roubou a ideia do título (Why I Write) do famoso ensaio de George Orwell por causa da sonoridade da frase.
Why I Write. As três palavras têm o som da letra “i”, que em inglês significa “eu”. Ou seja, I, I, I; Eu, Eu, Eu. Para Joan, o ato de escrever é, em grande parte, o ato de dizer eu isso ou eu aquilo. De se impor sobre o outro. De ser hostil. De ser narcisista.
Hoje após acordar do meu sonho lúcido sobre um lugar em que nunca estive, minha ideia era escrever sobre como escritores podem (e devem) utilizar os seus sonhos como inspiração, sobre como anotar os sonhos pode ser útil no futuro, ou mesmo sobre como os índios achuas, da Amazônia equatoriana, compartilham seus sonhos todas as manhãs com outros membros da tribo, mas, ao me deparar, por acaso, com essa entrevista de 1978 da Joan Didion para o The Paris Review, resolvi usar a série de coincidências aleatórias para desempenhar o meu papel de escritor e gerar algum desconforto. Afinal, ninguém quer ouvir sobre o sonho de outra pessoa; bom ou ruim.
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Uma vez por mês são discutidos, via Zoom, livros e lugares – não necessariamente nessa ordem – que marcaram a nossa vida (tipo um Clube de Leitura, mas sem regras) em encontros com duas horas de duração. Eventualmente, autores e autoras serão convidados(as) para um bate-papo.
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Escolhi Where Is My Mind? do Pixies para abrir a edição de hoje porque é a música da cena final de Clube da Luta. Antes do sonho dos balões em Mianmar, o único sonho lúcido de que me recordo é um em que estou em um apartamento com o pé direito alto em Buenos Aires e há uma vidraça enorme em que fico parado na frente olhando para as luzes dos outros prédios na rua, uma imagem que me remete ao final de Clube da Luta. Não estava tocando Pixies, mas alguma música do M83.
Pouco mais de um ano depois desse sonho, I. e eu, que tínhamos acabado de nos conhecer, fomos para Buenos Aires – nossa primeira viagem juntos – e moramos dois meses em um apartamento que bate com essa descrição.
O que tudo isso quer dizer eu não sei, mas assim como Joan, “escrevo inteiramente para descobrir o que estou pensando”.
Você já teve algum sonho lúcido? Tem alguma experiência/coincidência para compartilhar? Eu adoraria ler sobre nos comentários; de verdade, tanto faz se for bom ou ruim.
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Quem entrevistou Joan Didion para o The Paris Review foi Linda Lipnack Kuehl, jornalista que morreu em circunstâncias misteriosas antes da publicação da entrevista. Na época, ela estava escrevendo uma biografia sobre Billie Holiday que nunca chegou a ser publicada, mas serviu de base para o premiado documentário Billie, lançado em 2019.
Em 2017, a Netflix lançou um documentário sobre a carreira de Joan Didion. Uma curiosidade/fofoca do documentário é que, antes da fama, Harrison Ford trabalhou como marceneiro na casa de praia de Joan em Malibu.
Eu adoro assistir os vídeos desse canal no YouTube em que um filho apresenta os álbuns que gosta para o pai e eles reagem juntos. Meu favorito, até agora, é o vídeo do pai ouvindo pela primeira vez Whatever People Say I Am, That's What I'm Not, primeiro álbum dos Arctic Monkeys.
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Matheus, sinto uma conexão bonita com teus escritos. Me remete muito as viagens que fiz e hoje, especialmente, sua postagem me provocou a minha minhoquinha da escrita. O primeiro capítulo do meu livro "Cartas abertas a quem tocar possa" começa com o ato de contar um sonho. Vou escrever e publica-lo amanhã na minha newsletter. Te faço o convite para a leitura. Vou marcar o seu substack ;)
Parabéns pelo o texto rico de referências e reflexões. Faz tempo que não ouço essa música mas ela já marcou bastante um período da minha vida e fui lendo enquanto cantarolava mentalmente.
parafraseando outro artista, escrever pra acomodar os incomodados e pra incomodar os acomodados.