[Passageiro #29] Dia da Marmota
Os dias nômades estão chegando ao fim; mas estão demorando a passar.
Para ler ouvindo: Ando Meio Desligado, d’Os Mutantes; R.I.P. Rita Lee.
1.
Estou há dois meses na Tailândia; três dias em Bangkok, sete em Chiang Mai, o restante em Koh Phangan. No próximo dia 25 completo 34 anos; eu tinha 28 quando tornei-me nômade. Seis anos de mudanças; dois meses aqui, um ali, três lá, algumas semanas em tal lugar, uma pandemia. Desfazer as malas; fazer as malas. Check in; check out. Seis anos vivendo assim.
De acordo com o meu perfil no NomadList, conheço 16% do mundo. Foram 30 países, 54 cidades e 356.309 quilômetros rodados. Somando idas e vindas, são onze meses na Tailândia, cinco no México, cinco na Itália, três na África do Sul, três na Argentina, dois em Portugal, dois na Inglaterra, um na Albânia, um na Macedônia do Norte, um na Sérvia, um na Rússia; algumas semanas ou dias em outros 19 países.
Cansei de tanta mudança. E tem um tempo.
2.
34 anos.
Meu sonho de criança era ser jogador de futebol.
Se jogador fosse, aos 34 eu provavelmente estaria me aposentando dos gramados; quem sabe no Flamengo.
Jogador não sou, mas aos 34 anos estou me aposentando; não no Flamengo, mas na Tailândia; não dos gramados, mas da vida nômade.
3.
Em duas semanas farei as malas mais uma vez, o check out, devolverei a moto ao locador, deixarei Koh Phangan para trás em um barco, em Surat Thani pegarei um ônibus até Bangkok, viagem longa, mas barata, farei check in em um hotel em Bangkok, depois o check out, Grab (Uber tailandês) até o aeroporto, algumas horas me empanturrando e bebendo vinho no lounge VIP do Aeroporto Suvarnabhumi (não é publi, uma pena, mas tenho este benefício por causa do cartão Carbon do C6) e… casa. Casa. Algo que havia perdido o significado para mim aos 28; aos 25 para I. Casa. Comprovante de residência. Nossa casa. Nossos talheres. Nossos pratos. Nosso sofá. Nossa cama. Nossa casa.
4.
Isso – nossa futura casa – é tudo o que consigo (conseguimos) pensar desde que I. recebeu há uma semana a proposta para trabalhar em — — — — —.
Estive em — — — — — num já longínquo 2019, adorei a cidade, mas não era o local que eu imaginava chamar de casa; não porque eu não tenha gostado de — — — — — , pelo contrário, adorei — — — — —, mas na época não enxergava como viabilizar tal mudança. Nosso plano, até pouco tempo atrás, era morar em — — — — — —, a questão linguistica, o clima, o céu azul, de modo que — — — — — nem era uma opção, mas a vida não está nem aí para o nosso planejamento.
5.
Tem algo que você não consegue ver ou sentir em fotos ou vídeos de ilhas paradisíacas: o calor. Está quente em Koh Phangan. Muito quente. É o mês mais quente do ano na ilha. A temperatura varia entre 32 e 35 graus todos os dias; a umidade está sempre na casa do caralho.
Desde o momento em que — — — — — começou a povoar nossos pensamentos, os dias em Koh Phangan parecem os de Phil Connors (Bill Murray) em Punxsutawney, no interior da Pensilvânia, durante o Dia da Marmota: um eterno déjà vu.
Acordo entre 6h e 7h da manhã, encho nosso galão d’água em uma máquina automática no condomínio (5 litros por R$ 0,58; pois é!), faço café, checo meu e-mail e as redes sociais para ver o que perdi (ou ganhei) por causa do fuso enquanto estava dormindo, procrastino até umas 8h e tento escrever o livro.
Lá pelas 11h30 o assunto “o que iremos almoçar?” entra em pauta. “Temos comida em casa?”, “Pum Pui”?, “K.C.?”, “que tal aquele indonésio do centrinho?”. Ao abrir as portas da nossa fortaleza climatizada por um ar condicionado que está sempre em 16 graus, sentimos o bafo pesado que vem da rua. Uma onda de calor que não se move; não há vento, nunca há sequer um galho se mexendo nas árvores.
Ligo a moto, colocamos os capacetes, faço a mesma piada de sempre enquanto I. me espera manobrar, “e aí, vizinha, tô saindo pra comer algo, já almoçou?”, era engraçado no começo, “o Pum Pui está cheio, vamos na K.C.”, “a K.C. está fechada, vamos no indonésio”. Satisfeitos, voltamos para casa. Ar condicionado no 16. Um ou dois episódios de Modern Family para relaxar. Trabalho.
Meio da tarde. “Praia?”. A resposta antes de — — — — — geralmente era “sim”, mas está tão quente e nossa cabeça está tão longe (em — — — — —) que ultimamente tem sido “não”; “a água é quente demais, não refresca, vamos ficar no ar condicionado”; ou “tô sem saco para sair”.
Fim da tarde. A dúvida agora é ver ou não o por do sol em Zen Beach. Quando “sim”, tudo é exatamente igual; quando “não”, também.
Para chegar à praia é preciso cruzar um caminho estreito ao lado de um restaurante onde um cachorro depressivo está sempre deitado no mesmo lugar uivando cada vez que um tilelê toca um tambor. Passando o cachorro depressivo, há uma espécie de viveiro em uma árvore, lar de um macaco que volta e meia passeia pela praia montado na cacunda de sua dona; a dona do restaurante.
“Quer pegar uma cerveja e sentar em uma das cadeiras do restaurante ou prefere estender a canga?”, geralmente pegamos uma cerveja, nos acomodamos em uma mesa embaixo de uma árvore para ter uma visão privilegiada do por do sol e vivemos o nosso déjà vu.
Não importa o dia, os personagens são sempre os mesmos. Um traficante ocidental de túnica que carrega um livro de capa dura embaixo de um dos braços – e que, curiosamente, nunca me ofereceu drogas; no México os traficantes me disputavam na rua, que absurdo –, um outro ocidental que pratica uma espécie de street dance misturada com tai chi chuan, os tilelês (também ocidentais) do acroioga e, claro, os maconheiros (adivinha?; ocidentais). Tailandeses? Apenas aqueles que servem nossas cervejas.
6.
Eu ando meio ranzinza. Não um Jack Kerouac reacionário no fim da vida, mas a estrada não me faz mais feliz. Tem um ou outro momento que faz tudo valer a pena, como o Ano Novo Tailandês, mas, de modo geral, cansei. Cansei de tanta mudança.
Não sei se tem a ver com os 34 chegando, com — — — — —, mas para mim deu; e não haveria outro lugar no mundo para encerrar esse ciclo do que Koh Phangan.
Em breve, muito breve, o cachorro depressivo, o macaco da dona do restaurante, o traficante de túnica que nunca me ofereceu drogas, o dançarino do tai chi chuan, os tilelês, o acroioga, tudo isso e todos eles não passarão de memórias de uma vida anterior; e eu estou muito, muito, bem com isso. Sempre foi sobre liberdade de escolha.
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O Clube Passageiro é uma comunidade de leitores(as) interessados(as) em narrativas de viagens.
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✍️ Notas de rodapé:
Foram seis anos incríveis. Os melhores da minha vida até aqui.
Não uso drogas.
Continuarei fazendo uma ou outra viagem, mas, pela primeira vez desde 2017 terei um lugar para voltar. Uma casa. Nossa casa.
Eu achei incrível esse vídeo da Nath Braga sobre a estética dos perfis de marketing digital. É algo que venho percebendo há tempos, mas nunca consegui organizar em palavras.
Essa versão do Father John Misty para The Suburbs, do Arcade Fire, é [insira um palavrão] para [insira outro palavrão].
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Mateus, esse foi o texto que mais me tocou até aqui, fim de um ciclo e recomeço. O nomadismo é um estado, não uma identidade fixada pra sempre. Que seu recomeço em ------ seja o início de outra viagem.
A vida é feita de ciclos, e é muito bom quando temos oportunidade e maturidade para vivê-los. A mudança de vocês para ----- pode ser apenas uma pausa da vida nômade, assim como pode ser o fim dela. E também não significa que lá viverão para sempre. Só o tempo dirá. Após tantos anos de mudanças, check in/check out, vai ser bom ter um sofá, uma xícara e um canto para deixar os livros. Boa sorte nessa nova fase da vida!