[Passageiro #3] O ritmo
Um livro, além de justificar a sua existência, precisa de um ritmo.
Para ler ouvindo: “Estate”, do João Gilberto.
Essa versão do Erlend Øye (Kings of Convenience) também é ótima.
1.
Eu estava em Split, na Croácia, quando João Gilberto faleceu. 06 de julho de 2019, acabo de confirmar a data na fototeca do iPhone.
Lembro de ter publicado um vídeo de um barco ancorado na marina próxima ao Palácio de Diocleciano. Coloquei “O barquinho” como trilha sonora. O vídeo está salvo nos meus destaques do Instagram. Era verão na Europa, o meu primeiro viajando sozinho, e eu achava que era feliz.
2.
Os croatas, principalmente aqueles que nascem em Split, são fanáticos por futebol. É comum encontrar pela cidade muros pintados com o escudo do Hajduk Split, o time local, e a inscrição “Torcida”, assim mesmo em português.
Em 1950, marinheiros croatas, na época iugoslavos, muitos deles de Split, desembarcaram no Rio de Janeiro em plena final da Copa do Mundo – aquela em que o Brasil perdeu para o Uruguai, o Maracanazzo.
Os torcedores do Hajduk Split encantaram-se com a paixão dos brasileiros pela Seleção – que ainda não era Canarinho e jogava de branco – e ao voltarem para casa autodenominaram-se “Torcida”. Nascia a primeira torcida organizada da Europa.
Com o passar dos anos a Torcida transcendeu o futebol e tornou-se um símbolo social da cidade. Se as pessoas tem um problema no trabalho, não buscam apoio no sindicato, procuram a Torcida. Se querem organizar um desfile de carnaval e o governo local não ajuda, a Torcida é quem entra em campo. Aquele papo de que “futebol não é só um jogo” é levado a sério em Split.
3.
Acredito que o grande erro dos livros de crônicas de viagens, daqueles que li, obviamente, é o excesso do “eu”. Apesar de tratar-se de uma escrita autobiográfica, esse foco dos(as) autores(as) no “eu fiz isso” e “eu fiz aquilo” quando “eu estive em tal lugar”, misturando guia de viagem com narcisismo masturbatório à la Karl Ove Knausgård (e eu adoro Karl Ove Knausgård), torna a leitura cansativa.
Os rascunhos da Croácia estão carregados pela paixão da Torcida, os da Sérvia com os horrores da guerra e os da Tailândia, por algum motivo (alcoólico, talvez), tem um quê de Hunter S. Thompson. Sobra pouco espaço para o “eu”; que acaba tornando-se mais narrador e menos personagem. Não quero que “Passageiro” seja sobre mim; mas sobre lugares e suas histórias.
É estranho reler esses rascunhos. Em maio de 2019 completei 30 anos, uma fase importante da vida, o retorno de Saturno. Estava em Belgrado e passava boa parte dos meus dias vagando sozinho pelo parque Kalemegdan e estudando sobre a dissolução da Iugoslávia e a Guerra da Bósnia. Praticamente tudo que escrevi no mês em que estive na capital da Sérvia era relacionado a isso. Estava obcecado. É um material que transita entre o melancólico e o depressivo. E eu achava que era feliz.
Assim que cheguei à Tailândia, em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus. Foram 2 meses de lockdown em Chiang Mai, no norte do país, até o governo tailandês afrouxar suas restrições (o lockdown realmente funcionou por lá). Foi quando mudei-me para Koh Phangan.
“Dirigir minha motoneta alugada sem rumo foi um grande prazer que adquiri em Koh Phangan. Eu, que até então nunca havia pilotado nada com duas rodas mais potente do que um patinete elétrico, e que sequer tenho habilitação para tal, passei tardes e mais tardes zanzando pela ilha. Fones nos ouvidos, chinelos, bermuda, às vezes sem camisa, sempre sem capacete, cabelos ao vento, um selvagem, um fora da lei, sentindo a brisa que vinha do mar, pilotando uma motoneta que na minha cabeça era uma Harley Davidson, Jax Teller em Sons of Anarchy, tatuagens de caveiras e anéis nos dedos, saindo em grupo com outros nômades como se fosse Hunter S. Thompson com os Hell’s Angels, medo e delírio sobre duas rodas, Johnny Depp narrando a cena de forma pausada, luz baixa, fumaça de cigarro e garrafas vazias na sala de quem assiste a tudo isso do sofá, até estacionar no Pum Pui e ele, sorrindo, perguntar se quero o de sempre, eu confirmar que quero o de sempre, e me sentar de frente para o asfalto com a sensação de dever cumprido”.
O trecho acima, um parágrafo bem mais longo do que os que eu costumo escrever (claramente influenciado por Hunter S. Thompson – e talvez por um pouco de rum tailandês de qualidade duvidosa), destoa de todos os rascunhos anteriores.
O fato de viver uma vida nômade por tanto tempo e, principalmente, de ter tido a oportunidade de viver diferentes vidas, diferentes versões do mesmo eu, sozinho ou acompanhado, faz parecer que meus rascunhos tenham sido escritos por diferentes pessoas; e de certa forma foram.
Juntar esse caminhão de referências e diferentes estados de espírito de diferentes épocas em uma obra autobiográfica de não ficção é uma tarefa difícil – principalmente quando esses rascunhos dormiram tempo demais e você não se identifica mais com os diferentes eus do seu passado. É preciso encontrar um ritmo. Felizmente Hemingway apontou um caminho que nunca fez tanto sentido para mim.
"Nunca escreva sobre um lugar até que você esteja longe dele, porque isso lhe dá perspectiva". (Ernest Hemingway)
4.
Chegamos à Toscana na última quarta-feira, cansados após quase 30h de viagem (um voo de Guarulhos para Lisboa, outro para Roma, um trem até Florença, outro até Pistoia, mais uma hora de carro até Cecina), e ainda não consegui trabalhar de verdade no livro.
Os primeiros dias em uma nova cidade sempre são de reconhecimento. Conhecer o bairro a pé, escolher o melhor lugar da casa para trabalhar, preparar o mise en place literário, esse tipo de coisa.
Cecina é uma cidadezinha com pouco mais de 20 mil habitantes banhada pelo Mar da Ligúria que, por algum motivo, me traz um sentimento de doçura. É outono, baixa temporada, e provavelmente somos os únicos forasteiros por aqui.
Ontem pela manhã, ouvindo “Estate” (“Verão”, em italiano), do João Gilberto, enquanto caminhava pela praia, esse sentimento de doçura intensificou-se.
Meu eu atual, esse que caminha pela Marina di Cecina ouvindo João Gilberto, será o responsável por juntar os rascunhos e fragmentos desses outros eus e transformá-los em algo que faça sentido. Será o responsável por colocar todos esses outros lugares e suas histórias em perspectiva.
Um livro, além de justificar a sua existência, precisa de um ritmo. O de “Passageiro” acredito que será uma mistura de bossa nova cantada em italiano com Iggy Pop (de quem roubei o título): doce e refrescante como um gelato, mas com um pouco da paixão da Torcida e da intensidade de Hunter S. Thompson.
Pois é... narrar em primeira pessoa exige tanto coragem quanto humildade. É que é muito tentador... Ser protagonista e dono da história, ao mesmo tempo?! Imagina se na vida tb fosse assim??? Eu ia acabar abusando kkkkk
Pois eu me sinto muito mais em casa na terceira pessoa hahaha tanto que meu foco, de uns tempos pra cá, tem sido tentar deixar meus textos mais pessoais.. morro de inveja de quem tem esse talento pras crônicas, autoficção..