[Passageiro #32] A Geração Perdida
Sobre viver (ou sobreviver) como escritor nos anos 20.
Para ler ouvindo: Looking For You, por Nino Ferrer.
1.
“Você nunca teve o sentimento que sua vida está acontecendo e você não está aproveitando? Já notou que você viveu pelo menos metade do seu tempo?”. Ernest Hemingway em O sol também se levanta.
2.
Zelda Fitzgerald, esposa de F. Scott, mandou arrancar a capota do seu Renault como se arranca a tampa de uma lata de sardinhas porque queria um carro conversível. Ernest Hemingway, que além de escrever era fã de boxe, tornou-se sparring de Ezra Pound, o poeta fascista. Eram les Années Folles (os Anos Loucos). A Lei Seca proibia a fabricação, a venda e o transporte de bebida alcoólica nos Estados Unidos da América, de modo que alguns artistas boêmios, como os citados acima, mudaram-se para a efervescente Paris. Na Cidade Luz, beberam. Beberam muito. E conceberam algumas de suas melhores obras.
3.
Gertrude Stein, a mais velha do grupo de expatriados, fofoqueira que só, ouviu certa vez uma briga daquelas em uma oficina mecânica. O dono do lugar estava furioso com o seu empregado porque este, supostamente, não tinha cumprido bem a sua tarefa. “Vocês todos”, disse ele, como quem brada no meu tempo a vida era melhor e as pessoas mais trabalhadoras, “são uma geração perdida”.
A autora d’A Autobiografia de Alice B. Toklas tomou emprestada a expressão para descrever a geração de Hemingway e dos Fitzgerald. “É isso mesmo que vocês são. Todos vocês, essa rapaziada que serviu na guerra. Vocês são uma geração perdida”.
A guerra é a I Mundial, na qual Hemingway voluntariou-se para dirigir as ambulâncias da Cruz Vermelha; a expressão até hoje representa os jovens que tiveram o azar de chegar à maturidade naquele contexto.
4.
Em 1919, Sylvia Beach fundou a Shakespeare and Company. Na época, livros em inglês eram caros e difíceis de se encontrar em Paris. Além de livraria, a Shakespeare and Company funcionava também como biblioteca. Entre os clientes regulares, além de Hemingway e Stein, estavam Aimé Césaire, Simone de Beauvoir, Jacques Lacan, Walter Benjamin e o gênio zombeteiro James Joyce, que publicou sua obra-prima Ulisses graças à generosidade de Beach.
Mais de 100 anos se passaram desde a sua fundação, mas a Shakespeare and Company segue na ativa. O mundo mudou bastante desde então – e não seria diferente com a livraria. Agora há um anexo com um café que serve croissants superfaturados para turistas desprevenidos. O interior e as estantes da livraria ainda remetem aos tempos da Geração Perdida. Após esperar por cerca de 15 minutos em uma fila que parece não andar, dou de cara com uma estante dedicada aos expatriados dos anos 20. Hemingway, os Fitzgerald, Stein, estão todos ali. Ao lado, uma prateleira dedicada aos beatniks, que estiveram por aqui anos mais tarde, entre as décadas de 1960 e 1970.
O segundo andar abriga centenas de livros que não estão à venda; são exemplares disponíveis para leitura da época em que a Shakespeare and Company ainda funcionava como biblioteca. Folheio um ou outro exemplar dos anos 1800 (!!!), muitos com dedicatórias para pessoas que há tempos não estão mais entre nós, e imagino se Hemingway já folheou aqueles mesmos livros.
Documentos coletados pelo professor Joshua Kotin, da Princeton University, revelaram recentemente os títulos que os frequentadores mais ilustres da livraria nos anos 1920 leram durante o período. Tudo isso pode ser acessado na página do Shakespeare and Company Project.
As pilhas e pilhas de papéis (o Shakespeare and Company Project contou pelo menos 180 caixas com documentos variados) revelam algumas peculiaridades: Hemingway, por exemplo, era leitor de Ivan Turgêniev e Gertrude Stein, mas também tinha o hábito de alugar os próprios livros (em 1926, retirou duas vezes O sol também se levanta). A própria Gertrude Stein era uma leitora prolífica e, durante os anos em que foi sócia da Shakespeare and Company, pegou emprestado, entre outros, Este lado do paraíso, de F. Scott Fitzgerald (duas vezes) e o romance Minha Antônia, de Willa Cather.
5.
No último dia 31 rolou o primeiro encontro do Clube Passageiro, a comunidade de assinantes pagos desta newsletter que a partir de agora se encontrará uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em encontros via Google Meet com duas ou mais horas de duração.
Ao mesmo tempo em que estou feliz por ter tido a oportunidade de reunir um grupo de escritores(as) altamente talentosos(as), saí do papo com um sentimento agridoce: estaríamos nós, aqueles e aquelas com pretensões artísticas, vivendo uma nova versão da Geração Perdida 100 anos depois? – no sentido de que somos jovens adultos nos novos esquisitos anos 20; três anos de pandemia, Invasão da Ucrânia pela Rússia, precarização do trabalho, deterioração da saúde mental, artistas se virando para pagar as contas como podem, talentos desperdiçados. Só nos falta uma Lei Seca.
Escrevo isso porque, ao que parece, todos nós, independentemente do estágio de nossas carreiras, enfrentamos as mesmas dores: como monetizar o nosso trabalho, como ter consistência em nossa produção quando temos que dividir nossas horas com outros trabalhos para pagarmos as contas, como sermos vistos em uma época em que os vídeos curtos dominam a atenção das pessoas? Como? Como? Como?
São muitas perguntas, poucas respostas e a sensação de que tudo (ou quase tudo) está se perdendo. De positivo, saber que estamos todos no mesmo barco; ainda que isso não mude a nossa frustração. “No meu tempo era melhor”, Hemingway talvez diria hoje ao analisar a nossa situação. “Vocês são uma geração perdida”.
🗣 Enquete aleatória para gerar engajamento:
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Estou lendo Primeira pessoa do singular, coletânea de contos do escritor japonês Haruki Murakami.
Então você quer ser escritor? O famoso poema de Charles Bukowski é o tema da última edição da minha outra newsletter, Nômade Digital, no LinkedIn.
Ainda no tema geração perdida (não a de Hemingway, mas a nossa), gostei bastante da série documental Trabalho, da Netflix, com Barack Obama.
V, álbum mais recente do Unknown Mortal Orchestra, está há algumas semanas no repeat por aqui. No próximo dia 12 os verei ao vivo em Paris. Estou bem empolgado!
Eu respiro música, mas não consigo escrever ouvindo canções com letras. Uma banda instrumental que adoro ouvir enquanto trabalho é o duo Hermanos Gutiérrez, composto pelos irmãos Alejandro e Estevan Gutiérrez. Eles têm uma vibe meio Breaking Bad, deserto, bolas de feno. Recomendo o álbum mais recente, El Bueno Y El Malo, com participação do Dan Auerbach dos Black Keys.
✍️ Notas de rodapé:
Sylvia Beach foi forçada a fechar a Shakespeare and Company depois de se recusar a vender sua última cópia do livro Finnegans Wake, de James Joyce, para um oficial nazista. George Whitman reabriu a livraria em 1951.
Para participar dos próximos encontros do Clube Passageiro e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram, basta assinar um dos planos pagos da newsletter (se você ainda não é assinante e quer participar do encontro de junho, ainda dá tempo; assine com 30% de desconto).
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Desde o dia que coloquei o link da minha newsletter no meu perfil do IG começou cum shadow banning pesado. Meu conteúdo praticamente não é mais mostrado a quase ninguém. Quando fiz um post para divulgar a newsletter e coloquei nos stories pior ainda. Passa o mesmo com você? A pouca paciência que já tinha com o IG veio a quase zero e tô pensando seriamente em começar a usar os notes aqui como "posts" e investir na criação de interações aqui mesmo dentro do Substack. Esse modo de atuação da outra rede só vejo que gera ansiedade e frustração em qualquer um que tenta ir além de dancinhas e reels com clipes de meio segundo. O que você pensa sobre?
Eu amo escrever com música. Quando estou produzindo textos mais simples, a música ter letra não é um problema. Mas quando preciso escrever um artigo, por exemplo, de um tema que não domino tanto ou mais denso, procuro versões sem letra também. Gosto muito do estilo Lo-Fi, pq em meio a uns acordes dissonantes, ele encaixa uma variedade incrível de gêneros. Nessa semana encontrei música clássica lo-fi, amei, rs.
News impecável como sempre!
Abraço!