[Passageiro #33] O autorretrato
Sobre criar identidade e linguagem próprias; e desprezar as trends; mas não só.
Para ler ouvindo: It’s Raining Today, por Scott Walker.
1.
Em julho de 2013 fui aprovado em um processo seletivo para trabalhar em uma faculdade em Tubarão (SC), cidade vizinha à que eu nasci. O salário não era grandes coisas (R$ 1.428,00; que em 2016 seria reajustado para R$ 1.632,00), mas eu gastava pouco nessa época. Conseguia pagar com alguma folga o aluguel de uma kitnet sem janelas de 15m² (R$ 480,00/mês + eletricidade, internet e gás) e o que sobrava, além de coisas básicas como alimentação (supermercado ainda era algo barato no Brasil), geralmente ia para os livros.
Foi naquela kitnet sem janelas de 15m² que minha formação como leitor teve início; muito em conta pelas edições de bolso da L&PM com obras clássicas de grandes autores que custavam entre R$ 5 e R$ 10.
Meu horário de expediente era atípico. Eu batia o ponto às 12h30, fazia um intervalo das 16h30 às 17h30, e voltava para a kitnet sem janelas de 15m² às 22h, de modo que, como podia me dar ao luxo de acordar tarde na manhã seguinte, era comum virar a madrugada na companhia dos beatniks ou dos russos.
Lembro de ler o conto O retrato, de Nikolai Gogol, e ter pesadelos febris com a capa da edição de bolso da L± uma reprodução do quadro Homem desesperado (1843-1845), um autorretrato do francês Gustave Courbet.
2.
O retrato tem apenas 64 páginas e é dividido em duas partes. Na primeira delas, a minha favorita, o jovem pintor Tchartkov se vê assolado por inúmeras dívidas e pela ambição de ficar rico e famoso com a sua arte. Em uma loja de antiguidades de São Petersburgo, onde mora, gasta os seus últimos trocados em um quadro escondido nos fundos do estabelecimento por achar a pintura dotada de extrema vivacidade; o olhar do retrato o seguia, o mesmo fenômeno relatado por quem já viu a Mona Lisa de perto (ainda que a ciência explique que não, a obra de Da Vinci não te segue com os olhos).
Na mesma noite em que compra o quadro, Tchartkov sonha que o homem do retrato lhe mostra mil ducados. Na manhã seguinte, quando o seu senhorio aparece para cobrar o aluguel, o retrato cai da parede deixando um pacote à mostra. Tchartkov, que estava sem dinheiro, percebe que no pacote havia mil títulos de ducados. E é aí que entra o elemento chave do conto, a questão sobre o quê faz um artista ser conhecido; ou ainda o preço que um artista conhecido paga por sua fama. Tchartkov deixa a vaidade falar mais alto e usa o dinheiro da venda dos títulos para luxos dispensáveis como roupas e vinhos caros, além de pagar um artigo promocional em um jornal enaltecendo as suas habilidades artísticas.
O jovem pintor, que até então não tinha trabalho, e por não ter trabalho não tinha dinheiro para pagar as contas enquanto tentava a carreira artística, fica extremamente conhecido após o anúncio. Clientes ricos começam a procurá-lo. Tchartkov pinta seus retratos, tentando agradá-los, mas um novo conflito aparece: o que eles querem não é o que ele acredita que deveria fazer. Ele sente que está desperdiçando o seu talento. As consequências disso levam a um desfecho melancólico. Seu pincel acostuma-se com as mesmas poses, as mesmas expressões faciais, os mesmos movimentos memorizados; Tchartkov estava com os bolsos cheios, mas infeliz com os rumos da sua carreira; estava entregue ao modismo.
3.
No ensaio de abertura de Falso espelho, Jia Tolentino discorre sobre o “Eu na internet”. Para a autora, as redes sociais influenciam diretamente o nosso comportamento e as nossas vivências; mais do que isso, elas nos incentivam a sermos de determinadas formas.
"A internet é um meio em que o incentivo à performance é inerente. No mundo real, você pode simplesmente andar por aí vivendo a vida, enquanto as outras pessoas olham para você. (...) Na internet é preciso agir."
Na lógica de Tolentino, as redes sociais acabam nos afastando de quem realmente somos e do que queremos ser, deixando de lado a esfera do real para atender uma demanda social. É o que acontece, por exemplo, quando apresentamos nossas vidas de maneira filtrada: não apenas esteticamente, mas assumindo uma identidade que não necessariamente vivemos no dia a dia, mas que possivelmente queremos construir.
4.
Gustave Courbet é considerado o fundador e principal proponente do realismo francês, um estilo de pintura que visava retratar fielmente a realidade sem embelezar.
As pinturas de Courbet são caracterizadas por um alto grau de veracidade, captadas por meio de composições espontâneas e assuntos desprovidos de poses artificiais. Sua rejeição aos padrões tradicionais de beleza e seu foco na vida cotidiana elevaram temas anteriormente negligenciados ao reino da alta arte.
5.
Eu tô cansado pra caralho desse monte de Photoshop
Me mostra alguma coisa de verdade, tipo o afro do Richard Pryor
Me mostra alguma coisa de verdade, tipo uma bunda com estrias
Kendrick Lamar em HUMBLE.
6.
Há duas ou três edições, indiquei este vídeo da Nath Braga sobre a estética dos perfis de marketing digital.
Confesso que me fascina a lógica irônica dos viciados em seguir trends: ao fazer o que todo mundo está fazendo, ao utilizar templates, esse produtores (ou replicadores) de conteúdo trocam a oportunidade de criar algo único, com uma identidade autêntica, para seguir modismos, para fazer mais do mesmo.
O mesmo tipo de reels, o mesmo tipo de carrossel, as mesmas poses nas fotos de perfil (com fundinho colorido), o mesmo layout nas respostas das caixinhas de pergunta (fundo preto, letra branca, pontos-chave em vermelho – quando for apontar um problema – e verde – quando apontar a solução), a mesma dancinha no Tik Tok, o mesmo formato de newsletter (ou você acha mesmo que eu não perceberia? 👀).
Quem cria identidade e linguagem próprias está sempre sujeito a ser copiado; e é por isso que grandes artistas estão sempre se reinventando; eles não ficam satisfeitos com mais do mesmo. Embora o processo de criação seja, em grande parte, estressante (você nunca sabe se dará certo até tentar; e ainda tem as contas para pagar), a verdade é que criadores estão sempre um passo a frente dos replicadores, uma vez que os replicadores nunca sabem qual será a próxima tentativa de quem cria, afinal, estão ocupados acompanhando as trends (criadas adivinhe por quem?).
Faz sentido para você?
🧠 Para ler, assistir e ouvir:
Outro livro que li e gostei muito na época da kitnet sem janelas de 15m² foi A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói.
Scott Walker é um dos meus artistas favoritos. No final dos anos 1960 ele lançou uma série de álbuns do que chamam de pop barroco. Nos anos seguintes, encheu o saco de fazer mais do mesmo e lançou apenas álbuns experimentais. Tem um documentário muito bom sobre a carreira dele no MUBI: Scott Walker: 30 Century Man.
Eu encontrei no YouTube um filme mudo de terror baseado em O retrato de Gogol. A obra, que tem pouco mais de 8 minutos de duração, foi gravada em 1915 – e é muito boa.
Alguém fez uma playlist no Spotify ranqueando as músicas do Leonard Cohen em ordem de tristeza.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento:
Você já morou em algum lugar MUITO fodido? Tipo a kitnet sem janelas de 15m².
✍️ Notas de rodapé:
Estou com inscrições abertas para dois cursos: 1) Escrita Criativa; 2) Escrita de Viagem.
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em encontros via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Para participar dos encontros e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram, basta assinar um dos planos pagos da newsletter (assine com 30% de desconto).
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Eu acho o criar a própria voz uma das coisas mais difíceis que há. E isso em absolutamente todas as áreas, mesmo nas mais técnicas. E às vezes a gente jura que está criando uma identidade e, quando se dá conta, não é bem assim. Quando se está aprendendo, se munir de referências variadas e fazer uma colcha de retalhos acaba fazendo parte do processo - fui professora de sala de aula por 17 anos, é simplesmente assim que acontece. Você aprende a técnica a partir de modelos, meio que decora a técnica e então consegue enfim aprender - é inconsciente e nem todos percebem o processo.
Você vê uma coisa legal aqui e adere à ideia. Vê outra ali. Na própria Arte isso é muito comum - a arte acadêmica utiliza muito da cópia como forma de aprender a técnica, estudar um artista específico para entendê-lo para, então, ser capaz de encontrar seu próprio traço e identidade (meu esposo faz doutorado em Arte, conversamos muito sobre).
Hoje em dia, num mar de tantas vozes, encontrar a sua própria é muito difícil, mas acredito ser necessário. Afinal de contas, como se destacar sendo mais um entre tantos, né? As newsletters que assino possuem todas praticamente o mesmo formato. Mas cada uma traz um quê a mais que a torna única, diferente das outras. E sim, você percebeu a semelhança, porque deveria perceber. Porque nem sempre ela está escondida.
Enfim, mais uma ótima reflexão sobre autenticidade e a criação de uma voz única. Sempre nos faz pensar, às vezes incomoda, pq expõe as fraquezas. Mas eu sou do tipo que gosta demais de aprender por isso até o incômodo é sempre é muito bacana.
Abraço!
Tô atrasada umas três newsletters, mas feliz aniversário atrasado!!!! E sim, já morei num lugar tão fodido que tive intoxicação por mofo durante a pandemia 🥴 Felizmente saí de lá, mas a saúde nunca mais foi a mesma.
Teve uma época que algum criador de conteúdo disse que a primeira linha da sua bio no Instagram deveria ter algo como “te ensino” “te mostro” “te guio” e outros abres do gênero. Ficou tão comum ver esse tipo de introdução nos perfis que o que deveria ter sido uma sugestão acabou virando regra, tirando a autenticidade do primeiro contato do creator com a audiência. Babado né? Ainda mais na internet que nem sempre a fórmula certa pros outros pode ser a correta/ideal pra você.
Que Paris continue sendo uma festa. Abraço pra você e I. 💘