[Passageiro #34] O gabinete de curiosidades
Wunderkammer; memórias; Copa do Mundo; Miles Kane; Roberto Baggio; rotina; Unknown Mortal Orchestra; Pablo Picasso; acho que é isso.
Para ler ouvindo: Baggio, por Miles Kane.
1.
A primeira vez que tive contato com a ideia de Wunderkammern, os “gabinetes de curiosidades” que precederam os museus, foi no segundo livro da série Minha luta de Karl Ove Knausgård.
Na citação abaixo, um trecho de um diálogo com um amigo, Knausgård refere-se à um mundo que não existe mais. Um mundo que ele gostaria que existisse.
“O esplendor do mundo é o pensamento barroco. Que morreu de vez com o período barroco. É um pensamento que diz respeito às coisas. À finalidade das coisas. Os bichos. As árvores. Os peixes. Se você está triste porque a ação desapareceu, estou triste porque o mundo desapareceu. O mundo físico. Sobram apenas as imagens. É com essas imagens que nos relacionamos. O que é o apocalipse hoje? As árvores que desaparecem na América do Sul. O gelo que derrete, a água que sobe. Se você escreve para recuperar a seriedade, eu escrevo para recuperar o mundo. Claro, não o mundo em que estou. Não o mundo social. Mas as Wunderkammern do período barroco. Os gabinetes de curiosidades. E o mundo das árvores. A arte. Nada mais.”
2.
Faz tempo que não falo por aqui sobre o processo de escrita de Passageiro, o livro. As coisas estão andando. Devagar, mas andando.
Essa semana reescrevi algumas partes que se passam durante a Copa do Mundo de 2018 – ganchos e memórias para que o(a) leitor(a) (re)encontre familiaridade quando ler, no mesmo livro, sobre o torneio da FIFA de 2022; que aconteceu na mesma época em que iniciei essa newsletter enquanto estava em Cecina, uma cidadezinha na costa da Toscana; expliquei o conceito do livro aqui.
Não sou um autor com a experiência de ter escrito muitos livros, até então tenho apenas um publicado, porém, nestes dez anos escrevendo na internet (o matheusdesouza.com é de 2013) percebi que os textos que mais tocam as pessoas (e escrevo querendo dizer o óbvio dentro deste mundo digital: os que mais engajam; likes, shares, whatever), são os que contém elementos que geram algum tipo de familiaridade; uma memória geracional, uma experiência de trabalho, uma viagem, um 11 de setembro, um 7x1, um pênalti perdido pelo Baggio em 1994 – onde você estava nestes três últimos?
3.
"Nunca havia cobrado um pênalti por cima do gol. Acho que foi o (Ayrton) Senna que puxou aquela bola para o alto. Acredito que foi ele que fez o Brasil vencer", disse Roberto Baggio em entrevista ao Esporte Espetacular em 2010.
Eu tinha cinco anos em 1994. Não lembro da morte de Kurt Cobain, mas lembro em detalhes da morte da Ayrton Senna; foi a primeira vez que tive contato com a ideia de morte; de alguém que você conhece, ainda que pela tevê, simplesmente deixar de existir. Lembro também do famoso pênalti perdido por Baggio que nos deu o tetracampeonato mundial.
Quem também lembra em detalhes da Copa de 1994 é o músico inglês Miles Kane – que faz dupla com Alex Turner (Artic Monkeys) no The Last Shadow Puppets. Kane, nascido em 1986, atribuiu alguns dos seus interesses atuais ao ex-camisa 10 da seleção italiana.
“Eu tinha oito anos quando vi Baggio pela primeira vez na TV, durante a Copa do Mundo de 1994. Fiquei impressionado com sua presença, seu estilo e seu talento. Foi a primeira vez que vi um homem tão diferente e único. Ver Baggio me deixou obcecado por aquele time de futebol italiano por muitos anos depois. Eles me fizeram querer deixar meu cabelo crescer e acho que foi o começo de minha obsessão por roupas, moda e todas as coisas italianas. Foi o começo de mim querendo crescer em quem eu sou hoje”.
Curiosidade aleatória do meu gabinete: quem me fez querer deixar o cabelo crescer foi a geração de 2002 da Itália (outra Copa vencida pelo Brasil); Buffon, Nesta, Maldini, Cannavaro, Totti, Del Piero e Inzaghi (menção honrosa à Pirlo, que ficou de fora em 2002, mas foi campeão em 2006; com uma bela cabeleira).
4.
"Na hora, quis cavar um buraco para me esconder. Depois, pensei que, como o Brasil tem muito mais habitantes que a Itália, fiz mais gente feliz com aquela cobrança", Baggio, na mesma entrevista para o Esporte Espetacular.
Baggio, que é budista (um personagem, no mínimo, digno de interesse; assistam O Divino Baggio na Netflix), fez os brasileiros felizes, deixou os italianos tristes, mas não só: o garotinho inglês Miles Kane, nascido em Birkenhead, margem oposta do rio Mersey, que corta Liverpool, aquela cidade dos Beatles e do time que perdeu do Flamengo em 1981 e deu o troco em 2019, também chorou essa derrota.
5.
Já conseguiu estabelecer alguma rotina na cidade nova? Tem percebido novas influências?, pergunta Wesley Faraó Klimpel, meu ex-editor na Folha de S.Paulo, que está viajando em tempo integral pela África e documentando tudo aqui – ele teve “direito” à essa pergunta respondida aqui porque é assinante do Clube Passageiro (a versão paga dessa newsletter que está com 30% de desconto durante o mês de junho).
I. e eu colocamos no papel os famosos prós e contras de morar nesse ou naquele lugar antes de nos decidirmos por Paris.
Essa semana, uma semana normal, não fizemos nada demais – para os padrões parisienses.
Segunda-feira assistimos o show do Unknown Mortal Orchestra – uma das nossas bandas favoritas – em uma casa de eventos super intimista. Ontem, dei um rolê com um amigo brasileiro no Museu Picasso (pelo nome você deve saber qual o foco do museu).
6.
Shows.
Não há nada no mundo que eu goste mais do que música.
Abaixo, um final de semana em Paris baseado apenas no meu gosto musical.
Paris tem muita coisa acontecendo o tempo todo. Não estamos em todas por dois motivos: 1) somos jovens idosos; 2) falta dinheiro.
Então sim, Faraó, estamos adaptados; nossos bolsos, no entanto, são o jovem Miles Kane em 1994: apreciam o que é bom, mas ainda há uma longa estrada até realizarmos o nosso sonho.
7.
Falando em sonho, Kane realizou o dele.
Após escrever uma canção inspirada em seu ídolo – fruto do seu gabinete de curiosidades –, o músico inglês foi convidado pelo próprio Baggio para passar uma tarde em sua casa em Vicenza.
O resultado desse encontro é, provavelmente, a melhor coisa que você assistirá hoje.
🧠 Para ler, assistir e ouvir:
O preço no Brasil está absurdo (e ainda não existe versão digital em português da obra), mas o novo livro do Nick Cave – o músico; sobre criatividade – talvez seja o que você está precisando ler agora.
Série bobinha pra passar o tempo: Amor platônico, com o Seth Rogen (um dos melhores atores ruins) na Apple TV+.
IC-01-Hanoi, essa tentativa de jazz – meio oriental; meio Frank Zappa – do Unknown Mortal Orchestra. Escuto, geralmente, enquanto escrevo.
🗣 Perguntas aleatórias para gerar engajamento:
Quais objetos e/ou memórias estariam no seu gabinete de curiosidades?
Onde você estava no 11 de setembro?
E no 7x1?
Você era nascido(a) quando Baggio perdeu aquele pênalti em 1994? I. não; ela nasceu em 1995.
✍️ Notas de rodapé:
Estou com inscrições abertas para dois cursos: 1) Escrita Criativa; 2) Escrita de Viagem.
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em encontros via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Para participar dos encontros e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram, basta assinar um dos planos pagos da newsletter (assine com 30% de desconto).
Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Delícia de news mesmo!
Deixa eu contar também =]
No 7x1 eu me recusava a assistir a Copa. Estava escrevendo minha tese e ouvindo o silêncio com gritos espaçados de desespero. Liguei a TV, mais um gol da Alemanha, fui ao banheiro, mais um gol da Alemanha. Fiquei surpresa, mas nem triste nem feliz.
No 11 de setembro eu estava estudando para o Vestibular. Ouvi pela TV do vizinho e fui ver o que aconteceu na minha TV.
Na Copa de 1994 eu tinha 13 anos e assisti, torci, fui feliz e até hoje lembro o nome daqueles jogadores. Mas, depois dela não curti mais nenhuma Copa, e foi por opção mesmo.
Te contando isso, acho que no meu Gabinete de Curiosidade teria muito sobre os meus estudos hehe.
Belos gatilhos de memória, meu caro! Kkkkk Não gosto nem de lembrar do 7 x 1, pq assiti com os amigos às vesperas de uma viagem p/ Holanda e Alemanha.. O bacana é que, lá na Holanda, os caras choraram comigo . Foi qdo descobri a forte rivalidade das Nederlands com os alemães, que vem desde a Segunda Guerra.
O episódio do Senna foi ainda mais triste, mas recompensado pelo Baggio, uns 3 meses depois. Estava inagurando a adolescencia, vi num telão em Vitória e depois varei madrugada pelas ruas curtindo com os amigos até quase o amanhecer. Seria maravilhoso se eu nao tivesse sido assaltado no ponto de onibus e os malandroos nao tivessem me levado a minha camisa oficial do Flamentgo , autografada pelo Andre Cruz kkkkk (to rindo agora nè... pq já faz quase 30 anos)
Por fim, no 11 de Setembro eu estava nos .... EUA. Rs Morava em Los Angeles na época e fiquei sabendo de madrugada (fuso da Califa é 5 horas mais tarde do de NY) qdo meu roomate chegou bufando em casa dizendo que um avião havia "caído em cima do Empire States" . Como ele não sabia entendia inglês direito e disse que tinha ouvido na radio do carro, cai na gargalhada e virei para o lado p voltar a dormir kkkkk De manhã, entendi o tamanho do drama com a neura e o deserto que viraram as ruas de L.A.