[Passageiro #45] Em busca de iluminação
Satori em Paris, karma na Tailândia, ikigai no Japão; o misticismo e as suas imperfeições.
Para ler ouvindo: Journey In Satchidananda, por Alice Coltrane e Pharoah Sanders.
1.
“Em algum momento ao longo de meus dez dias em Paris (e na Bretanha) recebi uma iluminação de algum tipo que parece ter me modificado outra vez, rumo ao que suponho que vai ser meu padrão por outros sete anos ou mais: com efeito, um satori: a palavra japonesa para ‘iluminação súbita’, ‘despertar súbito’, ou simplesmente ´chute no olho´. – Seja o que for, alguma coisa aconteceu mesmo e em meus primeiros devaneios depois da viagem e estou de volta em casa reagrupando todos os eventos saborosos e confusos daqueles dez dias, parece que o satori me foi transmitido por um motorista de táxi chamado Raymond Baillet, outras vezes acho que pode ter sido meu medo paranoico nas ruas nevoentas de Brest Bretanha às três da madrugada, outras vezes acho que foi Monsieur Casteljaloux e sua estonteante e deslumbrante secretária (uma bretã de cabelo negro-azulado, olhos verdes, dentes dianteiros separados com perfeição em comestíveis lábios, suéter de tricô de lã branca, com pulseiras de ouro e perfume), ou o garçom que me disse ´Paris est pourri´ (Paris está podre) ou a apresentação do Réquiem de Mozart na velha igreja de St-Germain-des-Prés com violinistas exultantes sacudindo os ombros de alegria porque tantas pessoas distintas tinham aparecido apinhando os bancos e as cadeiras especiais (e do lado de fora tem névoa) ou, em nome dos Céus, o quê? As três alamedas retilíneas dos Jardins das Tulherias? Ou o balanço turbulento da ponte sobre o ribombante e festivo Sena que cruzei segurando meu chapéu e sabendo que não era a ponte (aquela provisória no Quai des Tuileries) mas eu mesmo balançando pelo excesso de conhaque e nervos e nenhum sono e avião a jato desde a Flórida doze horas com ansiedades de aeroporto, ou bares, ou angústias, se interpondo?” – Jack Kerouac em Satori em Paris.
Em busca de seus antepassados franceses, Jack Kerouac parte para uma viagem à Europa que dá origem à Satori em Paris (1966), uma alucinatória odisseia autobiográfica que tornaria-se um dos últimos livros do autor de On the Road (1957); um insight sobre as descobertas de Kerouac a respeito do misticismo oriental.
Satori, palavra japonesa para “iluminação súbita”, é o sentimento que acompanha o escritor pelas ruas de Paris e da Bretanha à medida que tenta se reconhecer em meio aos nativos com quem vai se envolvendo ao longo deste inusual diário de viagem; Kerouac sendo Kerouac – protagonista e narrador de sua própria história.
2.
Nasci católico apostólico romano. Quer dizer, nasci ateu, um bebê é um HD com 100% de espaço livre, mas minha família é católica apostólica romana, de modo que fui uma criança como outra qualquer que frequentava as missas de domingo na Igreja da Paróquia Santa Terezinha do Menino Jesus em Nova Brasília, Imbituba, que passava tardes intermináveis estudando a bíblia na catequese, que fez a primeira comunhão e o crisma e que, em algum momento da adolescência, passou a não ver mais sentido nisso tudo.
3.
Todos os dias, às 6h da manhã, milhares de monges e noviços deixam os mais de 40 mil templos espalhados pela Tailândia carregando seus alguidares de metal para pedir comida para o café da manhã, uma tradição que remonta aos tempos de Buda, há mais de 2.500 anos. É dever da população budista alimentá-los.
A Tailândia não tem uma religião oficial, no entanto, cerca de 95% da população segue a interpretação tailandesa do budismo theravada, uma versão um pouco diferente das praticadas em outros países do Sudeste Asiático como Sri Lanka e Mianmar.
Assim que completam a maioridade, aos 20 anos, os homens tailandeses de família budista devem, se possível, tornarem-se monges por um período indeterminado – o mais comum é que passem três meses nos monastérios durante a época das monções. No Wat Doi Suthep, o Templo da Montanha em Chiang Mai, é comum ver garotos muito novos, que devem ter no máximo 12 anos, circulando com suas cabeças raspadas e túnicas laranjas; são os noviços, garotos enviados por suas famílias aos templos para terem acesso à uma boa educação e fazer mérito.
A ideia de fazer mérito no budismo tailandês está ligada ao karma. Faça coisas boas e boas coisas acontecem. Ter um filho monge é o maior mérito para um casal, a garantia de uma vida feliz para a família na próxima encarnação. Aqueles que não tem um filho homem – uma lei de 1928 impede que mulheres dediquem-se à atividade monástica – podem patrocinar um candidato à ordenação, garantindo assim méritos, um bom karma e um lugarzinho no céu.
4.
Há uma epidemia de obesidade entre os monges tailandeses que, de acordo com a tradição budista, devem aceitar todas as oferendas. Supostamente para ganhar mais méritos, muitos tailandeses têm trocado alimentos baratos e nutritivos como frutas e legumes por porcarias industrializadas made in USA que custam uns trocados a mais.
Nos supermercados, há prateleiras inteiras dedicadas ao café da manhã dos monges, com cestas amarelas cheias de saquinhos de batatas chips e outros snacks. As oferendas muito calóricas, repletas de sal ou açúcar, têm sido apontadas como responsáveis pelo aumento do número de casos de hipertensão e diabetes entre o clero budista tailandês.
O Ministério da Saúde da Tailândia tem tentado conscientizar os monges sobre a importância de uma dieta mais saudável. Em Bangkok, em um hospital voltado para monges, um cartaz na recepção diz: "a água é a melhor bebida". Há um outro que mostra uma lista das bebidas açucaradas mais vendidas e o correspondente em açúcar contido nelas. "Devem consumir menos de seis colheres de açúcar por dia”.
5.
Para os centenários de Okinawa, no Japão, o segredo da longevidade não está ligado apenas aos hábitos saudáveis, algo em falta para os monges budistas tailandeses, mas também ao ikigai.
Não existe uma tradução literal para o termo, mas segundo Ken Mogi, autor de Ikigai: Os cinco passos para encontrar seu propósito de vida e ser mais feliz (2018), ikigai é “o motivo que faz você acordar todos os dias”.
Para Francesc Miralles, coautor de um outro livro sobre o tema, Ikigai: Os segredos dos japoneses para uma vida longa e feliz (2016), ikigai é “a felicidade que vem de sempre ter algo para fazer, de estar ocupado”.
"Há pessoas que sabem o que querem ser desde a infância, mas a maioria de nós não sabia o que queria. Vamos à escola, procuramos emprego, lidamos com obrigações e pagamos contas... e, com isso, podemos nos distanciar de nossos impulsos naturais".
Para ajudar a encontrar sua paixão, o escritor sugere seguir o conselho do cientista da computação e palestrante motivacional Randy Pausch:
"Resgate seus sonhos de infância. Quais eram? Desenhar por horas? Dançar? Correr? Pense em quando era pequeno e no que te deixava feliz e você não faz mais".
6.
Em 1959, os beatniks estavam em seu auge e Jack Kerouac tentou definir o termo relacionando-o com "beatitude" e "beatífico", algo como um tipo de felicidade serena, sem inquietações.
Em obras como Os vagabundos iluminados (1958) e, principalmente, em Despertar: uma vida de Buda (escrito em 1955 e publicado apenas em 2008), Kerouac, nascido e criado em um lar católico apostólico romano, mostra o seu fascínio pelo budismo em uma profunda meditaçăo sobre a natureza da vida, a sabedoria e o sofrimento a partir da biografia de Sidarta Gautama.
Robert A. F. Thurman, professor de Estudos Budistas Indo-Tibetanos na Universidade de Columbia, escreve em uma nota introdutória de Despertar: uma vida de Buda que “em decorrência dos vícios que abreviaram sua vida aos 47 anos de idade, qualquer iluminação que Kerouac pudesse ter tido fora ‘desprovida do estado de buda perfeito’. Assim como fizera com o álcool e as drogas, a temporária espiritualidade fora outra espécie de apoio, com a diferença de que neste havia um frágil verniz de salvação”.
7.
A hah taew, a sak yant (tatuagem sagrada) de cinco linhas que recebo do ex-monge Ajarn Beer em Chiang Mai, tem origem nos quatro elementos (terra, ar, fogo e água) combinados com o quinto elemento que é Buda.
Cada uma das linhas confere uma proteção:
A primeira linha protege contra injustiças, espanta a negatividade e protege o lugar que se vive (casa):
A segunda linha protege contra a má sorte, invertendo os maus fluídos para positivos:
A terceira linha protege contra magia negra e qualquer pessoa que tente fazer algo contra você;
A quarta linha energiza sua boa sorte, sucesso e fortuna nas ambições e estilo de vida;
A quinta linha aumenta o carisma e atração nos relacionamentos amorosos.
8.
Em novembro de 2022, um templo tailandês ficou vazio depois que todos os monges foram reprovados nos exames toxicológicos; eles estavam tentando alcançar o satori com aplicações de metanfetamina.
"O templo agora está vazio, sem monges, e os moradores da região estão preocupados que não vão poder obter qualquer mérito", contou uma autoridade à agência de notícias AFP, demonstrando a preocupação local com o próprio karma.
Distraio-me no banho enquanto penso em meu ikigai e derrubo o porta-sabonetes, que espatifa-se no chão. Olho para a primeira linha da minha sak yant e tento entender como isso aconteceu. Recolho os pedacinhos de vidro e subitamente tenho um satori: talvez eu possa aplicar o kintsugi, a técnica japonesa de reparação com pó de ouro, e aceitar as imperfeições do porta-sabonetes; talvez isso melhore o meu karma.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir:
Em meu último texto no LinkedIn mandei a real sobre a saúde mental dos nômades digitais; e contei porque eu pendurei a mochila.
Zen e a arte da escrita é uma das melhores obras sobre o ato de escrever que já li.
Viver até os 100: o segredo das Zonas Azuis é uma minissérie da Netflix que aborda os hábitos das comunidades mais longevas do mundo.
Com a ajuda dos leitores da sua newsletter The Red Hand Files, Nick Cave fez uma playlist com as suas melhores músicas em parceria com o The Bad Seeds.
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Você já encontrou o seu ikigai? Qual a sua razão para sair da cama todas as manhãs?
✍️ Notas de rodapé:
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Por último, mas não menos importante, você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
deliciosa essa edição e a do seu LinkedIn tb, mas o q amei mesmo foram as sugestões musicais, tanto aqui qto lá :)
Muito bom, Matheus!
Por coincidência, assisti ontem a série da Netflix e fiquei pensando nesse lance do Ikigai...
É curioso pensar que na nossa cultura ocidental, o ikigai parece ser uma "busca" enquanto que na oriental, um "achado"!
O Aristóteles falava alguma coisa parecida, quando se referia à ordem do cosmos. Se o maluco conseguir encaixar-se na ordem das coisas, encontra a eudaimonia.
Bixo, eu ando desistindo de Instagram e LinkedIn, essas coisas, mas ainda dou uma sacada só pra ler estes textos...o ritmo é bom e os assuntos são interessantes!
Congratulations!
Um abraço, daqui da Praia do Rosa!