[Passageiro #49] O flâneur e o jogo da amarelinha
A Paris de Baudelaire e Cortázar é uma grande metáfora.
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Para ler ouvindo2: Baudelaire, por Serge Gainsbourg.
1.
“Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, constitui um grande prazer fixar domicílio no número, no inconstante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e, no entanto, sentir-se em casa em toda parte; ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, esses são alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a língua não pode definir senão canhestramente. O observador é um príncipe que usufrui, em toda parte, de sua condição de incógnito”.
Charles Baudelaire em O pintor da vida moderna, crônica originalmente publicada no jornal Le Figaro em 1863.
Carrego minha câmera pelo Boulevard de Clichy tal qual Thomas, o personagem de David Hemmings em Blow-Up, filme cult do italiano Michelangelo Antonioni que catapultou Jane Birkin ao estrelato e que conta a história do envolvimento acidental de um fotógrafo com um crime de morte; a película foi baseada em As babas do diabo, um pequeno conto do escritor argentino Julio Cortázar que faz parte da coletânea As armas Secretas.
Em frente ao número 4 da Rue Martel, onde Cortázar viveu de 1979 até a sua morte em 1984, observo uma senhora de vestido rosa falar ao telefone; ela segura o aparelho em uma das mãos e um cigarro na outra. Paris. Foi aqui, no número 4 da Rue Martel, que o autor do clássico O jogo da amarelinha escreveu, entre outros livros, Um tal Lucas e Queremos tanto a Glenda. Tento espiar além das janelas dos apartamentos. Em qual deles teria vivido o argentino?
2.
Cortázar adorava o metrô.
“O metrô sempre foi para mim um lugar de passagem, onde o sentimento de tempo muda. No conto O perseguidor, aliás, um personagem descobre que o tempo é completamente diferente quando se está no metrô e na superfície. Este é um sentimento, uma experiência, que tenho pelo menos uma vez a cada quinze dias”.
Julio Cortázar em entrevista ao canal espanhol RTVE em 1977.
Pego a linha 4 no Château d’Eau e, na próxima meia hora (ou trinta horas?), sou envolvido por aquela atmosfera de pessoas entrando e saindo, saindo e entrando, anúncios em francês nos alto-falantes, os mais jovens oferecendo os seus lugares aos mais velhos, o rapaz de calça de moletom cinza que fede a mijo, o senhor de terno azul que carrega um livro de poesias de Rimbaud, a senhora que protege a sua bolsa quando um grupo de imigrantes árabes entra no vagão, a descida na estação Raspail e a saída 1 até o Boulevard Edgar Quinet, a versão de Miles Davis para o Concierto de Aranjuez nos fones de ouvido.
O cemitério de Montparnasse, onde hoje descansa Cortázar, fica no 14º arrondissement e é o segundo maior de Paris. Em sua tumba, que divide com as duas mulheres que mais amou, Aurora Bernárdez e Carol Dunlop, bilhetes de metrô deixados por outros flâneurs de passagem.
3.
Perto da morada de Cortázar, um outro escritor repousa: Charles Baudelaire. No caminho até a sua tumba, encontro Serge Gainsbourg. Sua lápide está “decorada” com marcas de batom e bitucas de cigarro. Penso em Jane Birkin. Penso naquele vídeo maravilhoso em que crianças caracterizadas com falsas barbas, falsas doses de whisky e falsos cigarros homenageiam o cantor na TV francesa.
No túmulo de Baudelaire, cartas de outros flâneurs descansam junto ao poeta. Foi em sua Paris do século XIX que nasceu esse tipo vagabundo que perambula sem compromisso, esse alguém que observa a cidade e os seus arredores, que experimenta não só o passeio físico mas também o do pensamento, que imagina a vida dos que se encontram a sua volta, que constrói narrativas e bisbilhota conversas, como n’O jogo da amarelinha de Cortázar.
“Meu mito de Paris atuou em meu favor, me fez escrever um livro, O jogo da amarelinha, que é um pouco a encenação de uma cidade vista de uma maneira mítica. Toda a primeira parte que se passa em Paris é a visão de um latino-americano perdido em seus sonhos a passear em uma cidade que é uma imensa metáfora”.
Cortázar em entrevista concedida no número 4 da Rue Martel em 1980.
Na saída do cemitério de Montparnasse ainda encontro Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Assim como a lápide de Gainsbourg, a do casal também sofreu uma espécie de intervenção artística dos fãs com desenhos de corações e marcas de batom.
4.
De volta ao mundo dos vivos, quase na esquina da Rue de Douai com a Rue Pierre Fontaine, pertinho do Pink Mamma, o restaurante instagramável que sempre tem uma imensa fila em sua entrada, Warren Ellis, parceiro de longa data de Nick Cave, flana como se fosse uma aparição.
– É o Warren Ellis! – falo para I. em um tom um pouco mais alto do que gostaria.
– Tem certeza?
– Não.
Warren Ellis parece ter ouvido e agora me encara como quem diz “sim, sou o Warren Ellis, você pode falar comigo”. Ele olha para a minha camiseta do Velvet Underground, eu olho para a dele do AC/DC por baixo do paletó, estamos lado a lado, nossos olhos se encontram, não falo nada.
– Sim, era ele.
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Autobiografia: Romance. Neste intrépido romance, José Luís Peixoto tem a ousadia de transformar em personagem ninguém menos que José Saramago. Num movimento circular, que brinca todo o tempo com a ideia de ficção e realidade, um jovem autor em início de carreira tem a missão de escrever a biografia de seu mestre, um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Nina Simone's Gum: A Memoir of Things Lost and Found, a maravilhosa autobiografia (em inglês) de Warren Ellis.
Na Mira do Júri, série do Prime Video, é uma das coisas mais geniais que assisti nos últimos tempos.
Julio Cortázar no apartamento do número 4 da Rue Martel refletindo sobre o flâneur e o existencialismo em Paris (em francês com legendas em espanhol).
Haruki Murakami’s Late Night Jazz Music; apaixonado por essa playlist.
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✍️ Notas de rodapé
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Olá Matheus,
caí aqui no seu call to action de engajamento! :-D. Morei no Rio até os 40 anos e por isso sempre encontrava os famosos que moram no Rio pela cidade. Há milhôes de anos atrás quando o Gabeira era candidato a prefeito do Rio eu o encontrei na fila do restaurante Alface no Jardim Botânico, ele estava na minha frente e o cumprimentei dizendo que seria nosso prefeito. Ele foi simpático e retribuiu com um aperto de mão e alguns comentários. Ele estava só e trocamos ideias aleatórias, sobre a cidade e as saladas do restaurante. No aeroporto Santos Dumont que frequentei por idas constantes a SP encontrei dezenas. A mais recente foi com o Menescal que posou para uma selfie fora de foco. Além desses aleotórios eu cheguei a conhecer alguns hoje famosos da TV que são da minha geração e frequentaram minha casa quando eram jovens adolescentes. Tive a sorte de ter um amigo comum com o Fitipaldi e quando visitei o box da F1 num treino do sábado, pré-prova, encontrei-o e conversamos rapidamente, falando sobre essa pessoa em comum e sobre a prova. Mas eu estava com pressa e acabamos não nos alongando. Acredito que essa intimidade estranha proporcionada pelo Rio de Janeiro cheio de estrelas que frequentam a mesma praia e os mesmos bares me tornaram mais indiferente aos astros, reconhecendo o valor daqueles que acredito que merecem, mas não os ovacionando apenas por existirem. Como fazem hoje com alguns influencers que são influencers porque são influencers, numa tautologia paradoxal que funciona como uma bitcoin, que só vale porque acham que vale.
Um abraço e boas caminhadas.
Em tempo, do Cortázar (que li muita coisa) gosto dos Cronópios e Famas.
Para você que está em Paris sugiro ler Vida Modo de Usar de Georges Perec.
Oi Matheus. Fiquei impressionada com o cemitério de famosos que você visitou... estranho estarem todos reunidos num só lugar...meio macabro, também. Será que foi intencional?
Quanto aos famosos, uma vez encontrei o Joelmir Beting (jornalista e sociólogo famoso que trabalhou em vários programas de rádio e TV) na fila do Belas Artes, em São Paulo. Ele estava com a esposa, bem discreto, mas não me aproximei, não acho legal tietagem e invasão de privacidade, só comentei discretamente com meu esposo. Nenhum dos dois está mais entre nós, nem o Belas Artes, nem o Joelmir...