[Passageiro #61] Largue a porr* do celular
Estamos capturando memórias ou perdendo momentos?
A newsletter Passageiro, enviada sempre às terças-feiras1, é gratuita, porém, ao assinar o Clube Passageiro2 você tem direito a benefícios exclusivos – incluindo workshops mensais e uma comunidade no Telegram para fazer networking e trocar ideia com outros produtores de conteúdo.
Para ler ouvindo3: Total Entertainment Forever, por Father John Misty.
1.
Se Allen Ginsberg viu os expoentes da sua geração destruídos pela loucura, tenho visto os da minha destruídos pela vaidade. As harmonizações faciais; os lábios que parecem ter sido picados por um enxame de abelhas; os bronzeamentos artificiais que lembram os Oompa Loompas; os “feeds harmônicos”; os “looks do dia”; o “turismo instagramável”; as dívidas no cartão de crédito para manter um estilo de vida de ostentação incompatível com o saldo bancário; os impactos das redes sociais na saúde mental. E as mortes – voluntárias ou não.
Um estudo publicado no Journal of Family Medicine and Primary Care mostrou que pelo menos 259 pessoas morreram em tentativas mal-sucedidas de selfies entre outubro de 2011 e novembro de 2017; a Wikipedia, inclusive, mantém um histórico com acidentes e óbitos provocados por selfies; muitos dessa lista não eram influenciadores digitais, mas sim influenciados digitais: pessoas comuns que perderam a vida tentando replicar trends das redes sociais.
Em 11 de março de 2018, um mês antes de eu aterrissar no Aeroporto Internacional John F. Kennedy, cinco turistas com idades entre 26 e 34 anos morreram em um acidente de helicóptero no East River em Nova York causado por… produção de conteúdo para o Instagram.
O piloto da aeronave, o único sobrevivente do trágico voo, contou aos investigadores que um dos passageiros acionou – sem querer; com um chute – o interruptor de corte de combustível do helicóptero em uma tentativa de fazer uma #shoeselfie – um autorretrato dos seus pés balançando no ar com a cidade ao fundo; o tipo de foto que a própria empresa responsável pelo passeio promovia em seus materiais de divulgação nas redes sociais.
2.
“Nada inesperado e maravilhoso vai acontecer se você tiver um itinerário em Paris preenchido pelo Louvre e pela Torre Eiffel.” (Anthony Bourdain)
Durante as férias fui um turista em minha própria cidade. Idas à Torre Eiffel, visitas ao Palácio de Versalhes e ao Museu do Louvre, passeio de barco pelo Rio Sena.
Ainda que concorde com a frase do querido Tony, sigo, vez ou outra, submetendo-me às longas filas4 de atrações turísticas apenas para constatar que sim, nada de inesperado e maravilhoso acontece nestes lugares; mais que isso: eles têm me irritado.
Em Versalhes, turistas se apressam e se empurram para registrar cada detalhe de cada cômodo; o teto, os móveis, a decoração; dezenas de cliques em segundos para eternizar momentos em que não estavam, de fato, presentes; ainda que as selfies tentem mostrar o contrário no Instagram.
Ver com os meus próprios olhos La Gioconda, a Monalisa de Leonardo da Vinci, foi provavelmente minha experiência mais deprimente como turista. Hordas se espremem na busca do melhor ângulo para as suas fotografias; e assim que você chega em frente ao quadro um segurança lhe avisa que você tem apenas dez segundos para fotografar a Monalisa (ainda que este não seja o seu objetivo) – ou seja, muitos veem o famoso quadro de Da Vinci apenas pela tela dos seus celulares. O mesmo acontece com a Vênus de Milo, a segunda obra mais fotografada do museu, de modo que desisto da ideia de me aproximar da estátua; espio de longe – com meus próprios olhos.
3.
Alguns restaurantes e cafés estão proibindo a entrada de influenciadores digitais.
Aos desatentos, como eu em um primeiro momento, o pensamento pode ser “ué, mas quem não quer o seu estabelecimento lotado de clientes?”.
O principal motivo da medida extrema é evitar “morrer de sucesso”.
Grande parte desses estabelecimentos, principalmente aqueles descritos como “um segredo super bem escondido, meo”, simplesmente não estão preparados para o fluxo de pessoas que grandes influenciadores são capazes de atrair – o que gera avaliações ruins no Google ou no TripAdvisor; “tive que esperar duas horas na fila e os atendentes estavam super apressados”.
Outro bom motivo é que os influenciados, muitas vezes, querem somente dar um “check” no local e criar conteúdo para as suas próprias redes sociais. Ou seja, entram, montam seus tripés e vão embora tendo consumido o mínimo apenas para registrar que estiveram lá; o que atrapalha também que clientes habituais consigam uma mesa.
Em um domingo qualquer de janeiro chego no horário de sempre para comer o yakisoba de sempre no meu restaurante japonês favorito de Paris. Há uma fila dobrando a esquina. Ele viralizou no Tik Tok.
4.
Maya Bay, na Tailândia, locação do filme cult A praia, aquele com o Leonardo DiCaprio, é uma ilha que tornou-se refém da sua própria popularidade.
No auge da sua fama, em 2018 (18 anos após o filme ser lançado), Maya Bay recebia cerca de 6 mil turistas por dia, que deixavam um rastro de destruição para trás – estima-se que só as âncoras dos barcos que levavam os turistas até a ilha tenham destruído 50% dos corais.
Maya Bay foi fechada para o turismo em 2018 e reabriu apenas em janeiro de 2022; estive lá em março do mesmo ano, pouco tempo depois da reabertura. O lixo foi retirado da praia, a vegetação replantada, corais foram recuperados e uma infraestrutura turística totalmente nova foi criada.
Isso inclui um píer flutuante em Loh Sama Bay, do outro lado da ilha, onde os turistas seguem uma trilha até a praia do Leonardo DiCaprio – os barcos agora estão proibidos de ancorar em Maya Bay.
Também está limitado o número de visitantes por dia: no máximo 3 mil, divididos em grupos de até 300, que poderão conhecer a praia em oito turnos de apenas uma hora cada. Mergulhar está proibido; no máximo molhar as canelas.
Com as canelas molhadas pela água azul turquesa de Maya Bay, sento-me na areia branca e observo influenciadores e influenciados de vários lugares do mundo posando para fotos que serão postadas em seus perfis no Instagram com hashtags como #wanderlust e #nomadesdigitais.
Minutos antes, I. e os outros membros do nosso grupo avistaram um filhote de tubarão – eu não vi; estava gravando um publi.
5.
A fila que mais enfrentei até hoje em Paris foi a da Shakespeare and Company. A primeira vez em que estive lá foi no papel de turista; assim como grande parte das centenas de visitantes diários, eu nutria uma vontade romântica de conhecer a tradicional livraria que Ernest Hemingway costumava frequentar. Desde então, a Shakespeare tornou-se meu lugar favorito para comprar livros físicos (estou longe de ser fluente em francês e eles têm a melhor seleção – para o meu gosto – de livros em língua inglesa).
Durante as férias, enquanto procuro um exemplar de Na pior em Paris e Londres, de George Orwell, um atendente pede pacientemente que um turista ao meu lado não faça fotografias no interior da livraria; há diversos avisos sinalizando que isso é proibido. Lembro das fotografias que fiz na primeira vez em que estive na Shakespeare and Company; elas fizeram sucesso no Instagram.
🧳 Clube Passageiro
Perdeu o workshop de dezembro do Clube Passageiro sobre LinkedIn para Creators?
Sem problemas. A gravação ficará disponível até 31 de janeiro de 2024.
Assine o Clube Passageiro para assistir o papo e confira os detalhes do próximo encontro:
Janeiro/2024: dia 25, 18h 🇧🇷, workshop O processo de escrita de um livro de não ficção ✍️.
👨🎓 Cursos com inscrições abertas
✍️ Escrita Criativa
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
Pomfret, em Vermont, nos Estados Unidos, baniu influenciadores digitais que invadiam a cidade no outono para fotografar sua “paisagem instagramável”.
O que é meu, livro de estreia de José Henrique Bortoluci, é uma das melhores coisas que li nos últimos tempos. Em uma espécie de ensaio biográfico, o sociólogo e professor parte de entrevistas realizadas com seu pai, que durante cinquenta anos foi motorista de caminhão, para retraçar a história recente do país e da própria família. Meu pai também foi motorista de caminhão por muito tempo e muitas das lembranças do autor sobre a infância se confundem com as minhas.
Paris é superestimada? Gostei dessa visão (em inglês) do Nathaniel Drew.
Para quem gosta de The Doors: o canal ARTE disponibilizou na íntegra o famoso show da banda de Jim Morrison no no Isle of Wight Festival em 1970.
Já indiquei em outra oportunidade, mas o álbum Mil Coisas Invisíveis, do Tim Bernardes, é de uma sensibilidade rara.
O que mais tocou nas minhas sessões de escrita em janeiro: The Exciting Sounds of Menahan Street Band, da Menahan Street Band.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Você tem dicas de livros, séries e/ou filmes sobre cultos?
✍️ Notas de rodapé
Sim, troquei o dia. Quero testar se a taxa de abertura (que já é boa) fica ainda melhor se eu fizer os envios no início da semana.
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em bate-papos via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Assine para participar dos próximos workshops e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Dica para quem não está nem aí para esse papinho e ainda sim quer visitar o Museu do Louvre (que, de fato, vale a visita; eu que sou ranzinza): evite a entrada principal da pirâmide de vidro. Ao lado direito do Arco do Triunfo do Carrossel há uma entrada subterrânea que dá acesso às alas Sully, Denon e Richelieu – siga numa linha reta até a pirâmide invertida; a entrada para o museu fica à esquerda e, dependendo do horário, as filas são praticamente inexistentes; de nada.
Eu amo fotografar, de verdade. Mas até a mim tem incomodado que a fotografia seja o único propósito de algumas pessoas e suas visitas a lugares. Eu fotografo (o local, não a mim) e então o aproveito.
Há uns dias caminhei até um deque à beira mar que há aqui perto de casa. O dia estava incrível, o mar de um azul turquesa raro, o céu sem uma única nuvem. O tipo de vista que enche os olhos e traz uma calma surreal. Fiquei ali olhando aquilo tudo, só sentindo. Uma moça chegou de bicicleta, parou, tirou exatamente 8 selfies e saiu. Juro que ela nem olhou para o mar.
Meu esposo e eu, nestas férias, visitamos cerca de 18 cidades argentinas - fazendo uma pesquisa sobre alguns dos 30 povos missioneiros. Filmamos, fotografamos porque queremos produzir um material legal. Mas nosso foco estava tão em registrar, sentir e aprender mais sobre o tema com os locais que tiramos exatamente 3 fotos de nós nesse tempo todo.
Parece que as pessoas vivem cada vez menos fora das telas.
Texto excelente, como sempre.
Abraço!
Observo essa obsessão por selfies na academia. As pessoas majoritariamente estão mais preocupadas em registrar sua ida do que, de fato, suar e malhar. É bizarro. Por onde vc vira a cabeça tem alguém fazendo uma foto. Isso virou uma doença, sinceramente.