Para ler ouvindo1: Yumeji’s Theme, por Shigeru Umebayashi.
1.
O cheiro. Difícil esquecer o cheiro. As cabeças dos porcos perfiladas, umas dez, são um lembrete de que o cheiro é de morte. A primeira parte da aula de culinária tailandesa consiste em escolher os ingredientes em um dos vários mercados de rua de Chiang Mai. Sonthichai, que diz para o pequeno grupo de três pessoas – eu e Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield, cidade dos Arctic Monkeys, a minha banda favorita – chamá-lo apenas de Son, explica sobre diferentes ervas e temperos, mas o cheiro de morte me impede de prestar atenção em qualquer palavra dita pelo simpático chef e professor. Não consigo não olhar para as cabeças dos porcos. Acima delas há três ventiladores ligados com varetas plásticas penduradas nas hastes, uma gambiarra para tentar espantar as moscas. Além das cabeças, há também uma variedade de patas, tornozelos, orelhas e tripas. Muitas tripas. Ao lado do balcão da morte, um saco cheio com rãs e um outro com pequenas tartarugas, todas vivas, as rãs e as pequenas tartarugas, à espera dos seus destinos.
Em 23 de fevereiro de 2000, enquanto Son estava com os seus pais nas arquibancadas do Estádio Rajamangala, em Bangkok, assistindo o Brasil golear a Tailândia por 7x0 em partida válida pela Copa do Rei, torneio amistoso que é disputado anualmente no país desde 1968, eu estava com os meus em um depósito do Grupo Pão de Açúcar em São Paulo, tentando assistir o mesmo jogo em uma televisãozinha portátil da Bakosonic no caminhão do meu pai. O sinal era ruim e as imagens iam e voltavam. Em uma dessas voltas, vi Zé Roberto carimbar o travessão tailandês em uma bicicleta cinematográfica. Eu tinha 11 anos e era a minha primeira vez fora de Santa Catarina. Ainda lembro do meu olhar curioso ao ser acordado pela minha mãe por volta das 4h da manhã para observar os arranha-céus iluminando o horizonte. Somos de Imbituba, uma cidadezinha com pouco mais de 40 mil habitantes no litoral catarinense, onde as construções não podem ultrapassar sete andares. Meu pai foi caminhoneiro durante boa parte da sua juventude e naquele ano havia voltado para a estrada após meu avô vender o supermercado da família, onde ele era gerente e filho do chefe. Aos 51 anos, desempregado e movido por uma nostalgia dos velhos tempos (crise tardia da meia-idade?), juntou suas economias, comprou um caminhão e seguiu o seu caminho; o único caminho que aparentemente o fazia feliz.
2.
Diferente dos mercados de rua de Chiang Mai, o mercado de peixes de Noryangjin, em Seul, na Coreia do Sul, quase não tem cheiro de morte; a grande maioria dos peixes, moluscos, crustáceos e demais criaturas marinhas vendidas no mercado vivem (até deixarem de viver) em aquários que despertam a curiosidade dos turistas. Tudo é tão fresco que é possível comer um filhote de polvo ainda vivo – ou quase. O vendedor retira o molusco do aquário e corta a cabeça do bicho. Em seguida, fatia os tentáculos em pequenos pedaços e serve o sannakji com óleo de gergelim enquanto o coitado do filhote de polvo continua se contorcendo mesmo depois de ter sido decapitado.
– Os tentáculos ainda se mexem por causa das terminações nervosas que entram em contato com o sal, ele não está realmente vivo. São espasmos involuntários – me explica um turista americano que puxa papo; americanos adoram puxar papo nas viagens; eles também têm o hábito de apresentar-se dizendo o estado onde nasceram e não o país.
– Meu nome é John. Sou do Colorado.
– Prazer, John. Sou o Matheus. De Santa Catarina.
Desde que cheguei na Ásia convivo com a estranha sensação de liberdade em ser um analfabeto. Os cardápios das barraquinhas de comida de rua, o folheto que uma senhora me entrega em frente a uma casa de chá em Insa-dong – “dong” significa “bairro” em coreano; isso eu aprendi –, as placas luminosas das lojas em Myeong-dong, um cartaz na entrada de uma sauna em Nagwon-dong com a foto de um braço tatuado e um “X” vermelho desenhado – isso acho que entendi; aparentemente pessoas tatuadas não são bem-vindas no lugar –, os livros na estante do quartinho que alugo na casa do Sr. e da Sra. Park, os dizeres abaixo da estátua em homenagem ao rei Sejong, o Grande, na praça Gwanghwamun. Foi o rei Sejong quem criou, em 1443, o hangul – alfabeto coreano que me faz conviver com a estranha sensação de liberdade em ser um analfabeto. O sistema linguístico foi publicado pelo rei em um documento intitulado Hunminjeongeum, que significa “sons corretos e apropriados para a instrução do povo”. Até então, a língua coreana existia somente de maneira falada; a elite alfabetizada utilizava o chinês clássico para escrever, enquanto as classes menos abastadas comunicavam-se apenas de forma oral.
Felizmente para o viajante não familiarizado com o hangul, a mímica ainda é uma linguagem universal. Ainda que John do Colorado tenha me explicado que o filhote de polvo não está realmente vivo, me falta coragem para comer tal iguaria. Aponto para um robalo exposto em uma caixa de plástico cheia de gelo e sou atendido por um peixeiro corpulento com olhos pequenos e espremidos em um rosto grande e desproporcional.
– Sashimiii?
– Sashimi.
– Ohh, sashimiii!
O peixeiro mostra o valor em uma calculadora e pago com a quantia certa de wons. Uma senhorinha que deve ter no máximo 1 metro e 40 e qualquer coisa de altura retira o peixe da caixa e o prepara com cortes cirúrgicos. Ela me entrega seis pequenos e frágeis filés em uma bandeja de plástico e aponta para um rapaz com jeito de integrante de grupo de k-pop que mal deve ter 18 anos. O rapaz fala algo que não entendo e me guia pelos corredores molhados do mercado até um restaurante no segundo piso onde, aparentemente, meus filés serão transformados em sashimi de robalo.
Escorado no balcão do estabelecimento, um solitário salaryman de terno e gravata e cara vermelha bebe uma garrafinha de soju enquanto encara seu prato já vazio. O soju, um destilado de arroz, é a bebida mais consumida na Coreia do Sul. O garçom me oferece um menu de bebidas escrito em coreano, japonês e inglês. Peço soju sabor maçã verde. Ele serve uma caneca de cerveja para o salaryman que, com a destreza de quem já bebeu meia garrafinha de soju, despeja uma dose do destilado dentro da caneca. O somaek, como eu descobriria mais tarde, é um drink explosivo que mistura soju com cerveja (maekju) em uma proporção de 1 para 3.
Meu sashimi é servido com molho de soja, wasabi e folhas de gergelim. Percebendo minha dificuldade com os escorregadios hashis de metal, o salaryman retira um garfo de plástico de um recipiente no balcão e o balança no ar para chamar a minha atenção.
– Primeira vez na Coreia? – não sei se é o efeito do somaek, mas sua voz parece uma máquina de terraplanagem.
– Sim. Estou adorando. A comida é ótima.
– Bom, bom. Aqui bebe muito e come muito. De onde você é?
– Brasil.
– Ahh, Brasil! Ronaldo! Ronaldinho! Copa do Mundo na Coreia!
– Park Ji-sung! E aquele zagueiro que hoje é treinador. Bo?
– Hong Myung-bo! Ohh, Hong Myung-bo.
– E aquele garoto do Tottenham. Son?
– Ohh, Son Heung-min! Você bom em futebol. Brasil!
Enquanto degusto meu sashimi de robalo e fico alegre de soju, meu novo amigo coreano segue mencionando o nome de jogadores brasileiros do presente e do passado. Ainda que a Seleção não viva o seu melhor momento, o futebol continua sendo a melhor maneira para um viajante brasileiro fazer amizades no exterior.
3.
Acordo do meu sono inebriado tentando lembrar onde estou; sensação recorrente desde que me tornei nômade. O lençol está encharcado de suor. Procuro meu celular na mesinha de cabeceira. A tela colorida mostra que são 08h23 da manhã de quinta-feira e faz dois graus em Seul. No móvel em frente à cama vejo alguns porta-retratos com fotos de uma coreana que aparenta ter a minha idade, talvez um pouco menos. Em uma das fotos, que parece ter sido tirada em uma cerimônia de formatura, a coreana posa com um buquê de flores; ela no centro, Sr. Park à sua direita, Sra. Park à esquerda. Lembro onde estou: em um quartinho alugado na casa do Sr. e da Sra. Park. Passo os olhos pela estante e reconheço os livros em coreano que folheei no dia anterior antes de comer sashimi de robalo no mercado de peixes de Noryangjin. Há também um solitário exemplar em inglês de Os vagabundos iluminados (The Dharma Bums no original) de Jack Kerouac com uma dedicatória caprichosamente escrita em coreano na folha de rosto. Terá sido um presente? Não imagino que Sr. e Sra. Park sejam leitores de Jack Kerouac; além de tudo eles mal falam inglês, o que me faz pensar agora que provavelmente a coreana dos porta-retratos, que deve ser filha do Sr. e da Sra. Park, foi quem respondeu as minhas mensagens na plataforma do Airbnb; o quartinho deve ser seu.
Afasto o lençol molhado e me sento na beirada da cama. Meus pés ardem de calor assim que tocam o chão. O sistema de aquecimento subterrâneo da casa do Sr. e da Sra. Park parece estar desregulado. Quase todas as casas na Coreia do Sul têm o piso aquecido por um sistema de calefação chamado ondol (palavra derivada de caracteres chineses que significa “condutos aquecidos”). Acredita-se que o ondol tenha sido criado no ano 37 a.C., durante a dinastia Koguryo. O engenhoso sistema consiste em tornar o chão um imenso irradiador de calor através de condutos debaixo do piso; antigamente utilizava-se lenha em um ou dois caldeirões subterrâneos, mas hoje a maioria das casas utiliza gás.
Coloco os chinelos e dirijo-me até a área comum do apartamento, que consiste em um pequeno banheiro, uma cozinha – onde a Sra. Park está preparando algo no fogão – e uma sala com um computador antigo e uma televisão que está sempre ligada em algum programa de auditório. Ao perceber a minha presença, Sr. Park levanta agitado do sofá e aponta para a mesa de jantar. A Sra. Park serve uma sopa com partes de porco e faz sinal que devo me sentar. Geralmente não como nada pela manhã, ainda mais uma sopa, ainda mais porco, mas aceito de bom grado.
– Muito, muito bom. – junto as palmas das mãos e faço uma leve reverência com a cabeça.
– You! You! – Sr. Park imita um bêbado; Sra. Park solta uma gargalhada.
Haejangguk significa, literalmente, “sopa para curar a ressaca”. Receitas dessa poção mágica capaz de acalmar estômagos doentes e fígados danificados foram encontradas em livros do século XIV, o que me leva a crer que os coreanos da época já exageravam no soju. Na minha tigela, além dos restos de um porco, cubos gordos de sangue de boi coagulado boiam em um mar apimentado de cebolinhas picadas e pedaços de gengibre. A Sra. Park traz os acompanhamentos; arroz branco e kimchi. Agradeço ainda sem saber como conseguirei participar de tamanha orgia gastronômica a essas horas da manhã; fazer desfeita não é uma opção. Sr. Park senta-se no sofá e devora uma porção de arroz enquanto assiste o equivalente coreano das Videocassetadas do Faustão. Observo sua destreza com os hashis de metal; ele observa a falta da minha e me oferece uma colher.
– Muito, muito bom. – repito, ao passo que Sr. e Sra. Park respondem com os olhos sorridentes de quem não precisa de um idioma em comum para demonstrar ternura.
Com a ajuda do rolo de câmera do celular tento refazer os passos da noite anterior. O convite do salaryman de cara vermelha para o chimaek (frango frito com cerveja; o happy hour coreano) com os seus colegas de trabalho, o riso alto, os brindes, soju?, novas menções a jogadores de futebol do presente e do passado, as tentativas de comunicação através do Google Tradutor, mais brindes, mais soju?, somaek?, o clipe de Smooth Sailing do Queens of the Stone Age (?), o k-pop que é trilha sonora em todos os bares, a linha 2 do metrô até Gangnam-gu, o noraebang (uma sala privada de karaokê), minha performance alcoolizada de Creep do Radiohead, as reverências sem fim na despedida, os cinco coreanos de terno sumindo no horizonte em meio aos painéis de neon, o Sr. Park cochilando no sofá com a televisão ligada e o controle remoto apoiado na barriga.
Recordo também de uma palavra que aprendi: jeong. Assim como “saudade” em nosso português, jeong também não tem uma tradução literal do coreano para os outros idiomas; jeong é um sentimento; é o salaryman que te convida para o chimaek; é compartilhar uma porção de frango frito com desconhecidos; é a conversa sobre jogadores de futebol do presente e do passado; é você bêbado no karaokê cantando Creep abraçado com alguém que acabou de conhecer; é pai e filho nas arquibancadas do Estádio Rajamangala em Bangkok; é uma viagem de caminhão em família de Imbituba até São Paulo; é uma aula de culinária tailandesa em Chiang Mai; é a Sra. Park preparando uma sopa para curar a minha ressaca em Seul.
4.
Preparo minhas mochilas – uma de 50 litros onde guardo minhas roupas e uma de ataque com meus gadgets (laptop, fones de ouvidos e Kindle), documentos e outras miudezas – e aceno para o Sr. Park, que está fazendo qualquer coisa no computador. Ele levanta agitado – Sr. Park é um senhor de movimentos agitados – e aponta para geladeira, decorada com notas de dinheiro de diversos países, e, em seguida, para mim. Para a geladeira. E para mim. Um loop de movimentos agitados.
– Bazil! Bazil!
Interpreto a agitação como um pedido.
Vasculho as miudezas da mochila de ataque e encontro uma nota de dois reais amassada junto de recibos antigos e de um mapa do metrô de Seul que a Sra. Park me deu assim que cheguei. Sr. Park agradece a recordação e fixa a nota de dois reais na geladeira com um ímã que segura também uma nota de 20 baht tailandeses.
– Aeroporto? – Sr. Park usa as mãos para imitar um avião levantando voo.
– Sim. Vou pegar o metrô. – sacudo o mapa no ar.
– Não, não, não.
Sr. Park pega um casaco, um molho de chaves e faz sinal que devo segui-lo. Me despeço da Sra. Park, “muito obrigado pela sopa”, ela apenas ri, imagino que não tenha entendido o que eu disse em inglês, e o Sr. Park me guia ao elevador. Já na garagem do subsolo ele aponta para um antigo Daewoo Espero branco. Meu avô paterno teve um desses nos anos 1990; o dele era preto. Penso em contar para o Sr. Park sobre a coincidência, mas a barreira linguística me faz desistir da ideia.
Acomodo as mochilas no porta-malas e sento no banco do carona. Nos alto-falantes do Daewoo Espero branco do Sr. Park não tocam os maiores sucessos de Milionário & José Rico, como costumava tocar nos alto-falantes do Daewoo Espero preto do meu avô paterno, mas sim BTS; o Sr. Park me mostra orgulhoso um CD do grupo de k-pop. Ele pede o mapa e aponta qual linha do metrô devo pegar para chegar ao aeroporto. É fim de noite quando o Sr. Park estaciona o seu Daewoo Espero branco em frente à estação central de Seul ao som de BTS; ele me ajuda com as mochilas.
– Obrigado por tudo. – agradeço fazendo uma leve reverência.
– Boa sorte! – Sr. Park me oferece um caloroso aperto de mãos.
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Muito legal o texto, cara. Me convenceu a comprar o livro antes mesmo de ele existir. Penso que com tua escrita, vais proporcionar para muitos de nós que não tiveram coragem ou condições de viver como nômades digitais, o mais próximo possível de uma experiência dessas. Aguardando o livro!