[Passageiro #79] Uma história oral de nossa época
Entre gaivotas e mendigos, a tentativa de finalizar um livro.
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🎧 Para ler ouvindo1: Mentira, por Manu Chao.
1.
Joe Gould, o Professor Gaivota2, era um mendigo3 alcoólatra e supostamente escritor nascido em berço de ouro e formado em Harvard que, bem, acabou nas ruas porque, palavras suas, “um emprego fixo, qualquer que fosse, atrapalharia suas reflexões”.
Aqui em Paris há um termo para esse tipo de mendigo: clochard não é um mendigo tradicional desses que fica enchendo o saco dos transeuntes contando uma história triste, não, no máximo ele vai te pedir um troquinho pra tomar algo que esquente sua alma; o clochard, segundo os parisienses, é alguém que não se adaptou à sociedade e acabou na rua; alguém que não queria ter suas reflexões atrapalhadas, assim como o Professor Gaivota.
2.
“Embora se esforce para dar a impressão de que é um vagabundo filosófico, Gould tem trabalhado muito durante sua carreira de boêmio. Todos os dias, mesmo quando está com uma ressaca das bravas, ou com tanta fome que se sente fraco e desanimado, passa ao menos duas horas trabalhando num livro sem forma e misterioso que chama de ‘Uma história oral de nossa época’. Começou a escrevê-lo 26 anos atrás e está longe de concluí-lo. A preocupação com essa obra parece ser o motivo principal de seu estilo de vida; um emprego fixo, qualquer que fosse, atrapalharia suas reflexões, diz ele”.
Joseph Mitchell em O segredo de Joe Gould.
3.
É meu aniversário de 35 anos e estou em Étretat, na Normandia, mais ou menos perto do local onde em 06 de junho de 1944 os Aliados desembarcaram na França pra descer o cacete nos nazistas, quando Jacques Leclair pousa na sacada do Airbnb.
– Primeira vez aqui? – pergunta Jaques.
– Peraí, você fala?
– Ué, você me entendeu, não?
– Você é uma gaivota!
– E você é um humano. Assim como Joe Gould, o escritor.
– Você conhece o Joe Gould? Eu também sou escritor. Ou costumava ser.
– Não cheguei a conhecê-lo. Meu avô, no entanto, o comendador Pierre Leclair, morou muitos anos em Nova York e costumava conversar com Joe Gould no píer 84 do rio Hudson.
– Seu avô conhecia Joe Gould?
– Foi o que eu disse.
– E você sabe sobre o quê eles conversavam? Digo, não é comum uma gaivota e um humano conversarem.
– Estamos conversando.
– Exato!
– Joe Gould estava escrevendo um livro.
– Isso eu sei. É o que todo mundo sabe sobre ele. Mas nunca existiu um livro, né?
– Não sei. Por que você está interessado?
– Porque sim.
– “Porque sim” não é resposta.
– Você é uma gaivota.
– E daí?
4.
I. sai do banho e se assusta com a presença de Jacques Leclair.
– Vou jogar um risoles em direção à praia pra ver se essa gaivota sai daqui.
– “Essa gaivota?”, Jacques Leclair faz um sinal de aspas com as asas.
– Sai daqui!
Jacques Leclair voa em direção à falésia d'Aval.
5.
Estamos em um restaurante italiano qualquer de Étretat quando I. me pergunta de Passageiro, o livro, não a newsletter.
– Estou escrevendo.
– Faz um tempo, né?
– Uns dois anos?
– Desde que a gente se conhece tu fala desse livro.
– Mas nesse formato faz dois anos.
– Vou parar de perguntar.
6.
– Ela está aí? – pergunta Jacques Leclair.
– Desceu para comprar pão.
– Minha irmã Emma adora pão. Mudou-se para Paris por isso.
– Lá é fácil roubar os turistas, né?
– Muito. Já estive por lá quando era mais jovem, mas prefiro a calmaria da Normandia.
– Você gosta de peixe?
– Padre gosta de rezar missa?
– Você é uma gaivota que fala.
– Você é um humano que fala com uma gaivota.
– Enfim, você deveria ir para Cape Town, na África do Sul. Tem um restaurante em Mouille Point, o Lily’s, onde comi o melhor fish and chips da minha vida.
Mostro uma foto do prato para Jacques Leclair.
– Parece bom. Acho que são uns três meses de voo. Até lá você já deve ter terminado o seu livro, né?
7.
De volta à Paris encontro o clochard da Rue Pierre Fontaine, um mendigo distinto, cabelos grisalhos e compridos e oleosos lambidos para trás, barba por fazer, lenço no pescoço, blazer cinza e calça preta de alfaiataria.
Quando nos mudamos para cá, há um ano, ele meio que parecia uma versão das ruas de Ernest Hemingway, mas agora está muito mais magro.
Penso em oferecer algo para comer, mas alguém fez isso antes; ele devora um prato de qualquer coisa. Penso em lhe oferecer algo para beber, mas ele já tem um garrafinha de vodka barata acomodada no bolso esquerdo do blazer. Penso em falar qualquer coisa, mas Emma, Emma Leclair, a irmã mais velha de Jacques, interrompe minha aproximação com um rasante.
– Nunca, nunca interrompa as reflexões deste homem, d'accord?
🧠 Para ler, assistir e ouvir
“Quando acaba a viagem do imigrante?”. Esse texto da é das coisas mais lindas que já li sobre o tema (e eu leio muito sobre isso).
tornou-se uma das minhas newsletters favoritas nesse Substack (e eu nem sou o público-alvo) e a última edição, sobre uma imersão da na Amazônia, é provavelmente o que vocês estão buscando hoje para ficar com os corações quentinhos.
Literatura é uma parada que tu curte? Leia Saiu edição nova hoje.
Quantas vezes eu já citei o aqui? Várias, né? Bom, ele não para de criar coisas incríveis – tipo isso.
Matéria Escura, na Apple TV+. Sério. Tem a Alice Braga.
Vocês talvez conheçam Jovem Dionisio por Acorda Pedrinho, mas os guris vão muito além disso – e tive a chance de ver isso bem de perto em Paris. Os caras estão com álbum novo na praça e, esqueçam o Tik Tok, ouçam isso de cabo a rabo.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
De 1-10, qual o seu nível de procrastinação? O quê te prende?
✍️ Notas de rodapé
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Ele tinha esse apelido porque afirmava ser capaz de se comunicar com as gaivotas.
“Pessoa em situação de rua”, nos dias atuais.
Genial! Fiquei preso em um diálogo entre um humano e uma gaivota às 8h30min de uma quarta-feira. ❤️
Eu gosto de todas as tuas edições, mas essa aqui, putsssss, foi boa demais! Por Deus, Matheus, termina logo esse livro para eu poder ler inteiro.
Quanto a procrastinação, minha psicóloga fala que procrastinamos o que não gostamos ou não queremos fazer. Tenho chegado a conclusão de que não gosto do meu trabalho inteiro, rs. De 1 - 10, procrastino 100. Mas o livro da cabeceira, toda semana tem um novo, rsrsrs.