🎧 Para ler ouvindo1: Leia o Livro Universo em Desencanto, por Tim Maia.
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
Voltar ao Brasil é participar de algumas discussões que há um tempo já não fazem parte do meu dia a dia; em um jantar na virada do ano, ouço um homem do meu círculo familiar, um cidadão de bem, afirmar que “hoje em dia as mulheres traem mais que os homens”2, fico quieto mesmo sabendo da grande asneira que acaba de ser dita, não deveria ter ficado quieto, me arrependo quase que imediatamente, cabe à I. pedir dados à ele, “você leu algum estudo sobre isso?”, ele não tem dados, é óbvio que ele não tem dados, uma rápida pesquisa no Google mostra que ele está errado, ele insiste, “quando eu era solteiro chovia mulher casada”, crio coragem e cito o Ashley Madison, plataforma para casos extraconjugais que, embora afirmasse que 40% do seu público era constituído por mulheres, descobriu-se em um vazamento de dados que elas representavam uma parcela ínfima dos usuários3 – e que muitos perfis eram falsos e gerenciados por funcionários da própria plataforma –, ele dá de ombros, peço licença e finjo precisar ir ao banheiro; não quero me indispor. Após o jantar, comento com I. sobre essas pequenas violências sofridas pelas mulheres, uso essa exata frase que li num livro do francês Édouard Louis, “pequenas violências sofridas pelas mulheres”, apesar de achar graça do uso das palavras ela concorda, diz que estou muito “feministo”, me chama de Fiuk, respondo que tenho lido Édouard Louis, “na próxima não me deixa falando sozinha, então”.
I. tem razão.
I., J., K., L., M., N., independentemente da letra, elas geralmente têm razão.
2.
Muita gente zombou de Fiuk durante sua passagem pelo BBB21. Meses antes de entrar no reality show, o músico/ator/nepo baby teve aulas sobre história do Brasil, feminismo e movimentos LGBTQIA+. Tendo nascido em berço de ouro, a ideia de Fiuk era não cometer os mesmos erros de participantes anteriores e evitar seu cancelamento. Até aí tudo bem, o problema, segundo os internautas4, é que apesar de ter chorado no BBB ao declarar-se um “homem branco privilegiado”, foram várias as vezes em que Fiuk teve comportamentos machistas, interrompendo as mulheres da casa e mostrando-se intransigente e mimado nas discussões.
Desconstruir-se, o objetivo de Fiuk com as aulas, leva tempo. Com a repercussão negativa e os memes sobre a transformação de Fiuk em esquerdomacho, a internet foi atrás das professoras.
“Não podemos nos responsabilizar sobre como os alunos reproduzem o conhecimento passado”, defendeu-se a historiadora Laís Ribeiro, uma das professoras de Fiuk, em entrevista ao Universa.
A também historiadora Carol Sodré, a outra professora de Fiuk, conta como surgiu o contato:
"Eles queriam que eu desse um choque de realidade no Fiuk usando a História, porque ele, de fato, vive numa bolha. E a Laís foi contratada para falar sobre corpos e padrão de beleza.”
“Eles” seriam a produção do músico/ator/nepo baby. O objetivo do staff de Fiuk era que ele usasse seu privilégio para ser porta-voz de algo que fizesse sentido dentro do programa.
"Porque o homem branco, cis e hétero é mais escutado pelas pessoas. O que sai da boca dele é muito mais levado em conta do que sai da boca, por exemplo, da Camilla de Lucas, da Lumena e de outras mulheres que estão ali. Por isso achei que valeria a pena. Mas em nenhum momento nos chamaram para treinar o que ele iria falar no programa. Era para dar uma aula particular", conta Carol.
Ainda segundo a matéria do Universa, foram nove aulas no total, com duração entre uma hora e uma hora meia, em que, por muitas vezes, as duas professoras apontam, Fiuk chorou.
"Várias vezes ele ficou constrangido e com cara de choque. Ele foi pego revendo muita coisa que ele nem sabia que era privilégio. Ele chorava muito nas aulas, e chegou a dizer que não queria ser um Prior na casa. Mas não compete a mim falar se era forçado. Ele se mostrou bastante sensibilizado com os conteúdos. Acho que ele foi pego, no mínimo, de surpresa pela quantidade de informações que estava recebendo", conta Carol, citando o ex-BBB Felipe Prior, que teve atitudes machistas na casa e, fora dela, foi condenado três vezes por estupro.
3.
No dia seguinte à discussão sobre traição, li “Monique se liberta”, do autor Édouard Louis.
Édouard Louis é francês, mas nasceu pobre. Édouard Louis é branco, mas gay. Cresceu em um ambiente tóxico. A literatura o libertou; e foi ela, a literatura, quem ajudou Édouard Louis a libertar Monique, sua mãe.
A história de Monique é a história de tantas mães e tias nascidas entre os anos 1950 e 1960. Casou-se com um alcoólatra. Largou os estudos para cuidar dos filhos. O marido, o alcoólatra, continuou estudando, fez faculdade, conseguiu um bom trabalho. “Mulher minha não trabalha”; até o dinheiro acabar.
Monique, além de não ter estudado, também não aprendeu a dirigir. “Isso é bobagem, te levo para onde você quiser ir”. Ele nunca a levou para lugar algum. Eles se divorciaram.
“Pequenas violências sofridas pelas mulheres”.
A falta de estudo, a falta de habilitação, a falta de experiência no mercado de trabalho, a falta de contribuição para o INSS; tantas faltas; e a falta de um futuro.
Quantas mães, quantas tias?
No interior da França, no interior de Santa Catarina, no interior da Bahia.
4.
Édouard Louis no Roda Viva. Assista.
5.
Há cerca de um ano recebi essa resposta por e-mail após reconhecer meus privilégios de homem branco heterossexual em uma tentativa de desconstrução à la Fiuk.
Nunca respondi o Ro***** Ar****, mas encontrei seus perfis no LinkedIn e no Instagram. Sei onde o Ro***** Ar**** trabalha, sei que o Ro***** Ar**** é catarinense como eu, sei que a mãe do Ro***** Ar**** ainda é viva, sei que o Ro***** Ar**** é casado e sei que o Ro***** Ar**** tem uma filha. Sei que o Ro***** Ar**** é um cidadão de bem. Sei que as mulheres da vida de Ro***** Ar**** não gostariam de ler o que Ro***** Ar**** escreveu para mim.
6.
Quando uso a expressão “cidadão de bem”, tanto no início do texto quanto no print do Ro***** Ar****, vocês sabem o tipo que estou falando. Vocês sabem que faço isso de propósito para reforçar um estereótipo, vocês sabem em quem eles votaram em 2018 e 2022 nas eleições presidenciais, vocês sabem o tipo de coisa que eles defendem, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, vocês sabem o discurso completo, mas e quando a misoginia vem do lado progressista do espectro político? E quando conhecemos ou temos simpatia pelos responsáveis dessas violências contra as mulheres? – sejam elas pequenas ou não. Passamos pano? Nos calamos?
7.
O que escrevo agora aconteceu na virada de 2019 para 2020, antes da pandemia.
Em São Paulo, durante um happy hour, sou apresentado a um escritor/YouTuber famoso. Cara gente boa, progressista. Eu nunca havia ouvido falar nele, mas em questão de 15 minutos duas mulheres vieram pedir para tirar foto, “adoro o seu trabalho”, de modo que fui obrigado a perguntar quem ele era no sentido de por que você é famoso?, ele adorava os holofotes, dava para perceber na maneira em que me contava detalhes sobre seu currículo, sobre ter vendido mais de 700 mil livros, sobre já ter sido entrevistado por Jô Soares, sobre ter milhões de seguidores nas redes sociais – principalmente mulheres; fazia questão de enfatizar isso.
Vejam que, tínhamos acabado de nos conhecer, a alcunha “escritor” de certa forma nos conectou, uma espécie de camaradagem imediata foi criada e, de repente, o escritor/YouTuber estava me mostrando, na tela do seu celular, conversas íntimas com seguidoras, mulheres que até então o admiravam e que ele parecia tirar vantagem de tal admiração. O escritor/YouTuber estava contando vantagem, pagando de comedor, coisa que todo homem heterossexual já fez ou fará na vida; não escapa um. Não escapo.
Escrevo “até então o admiravam” porque ele, que escrevia e gravava vídeos principalmente sobre relacionamentos, meses depois, quando já nutríamos uma amizade – cheguei a frequentar a casa do sujeito – seria exposto por ter agredido sua ex-companheira. Na época, 2020, fiz o que todo esquerdomacho faz: dei-lhe o benefício da dúvida; ou seja, passei pano e descredibilizei a vítima (chamada de “louca” por ele: elas sempre são as “loucas”) ainda que as evidências mostrassem que, sim, ele a agrediu.
Demorou algum tempo até eu cortar relações com o escritor/YouTuber e, hoje, não consigo deixar de pensar que o fiz apenas porque esse caso (que eu desconhecia até ter sido exposto) virou manchete; ele já havia demonstrado seu machismo e sua misoginia em outras oportunidades e, como nós, homens, geralmente fazemos em meio à camaradagem, sempre me calei; não queria me indispor.
8.
“Pequenas violências sofridas pelas mulheres”. Algumas são tão sutis que vocês, mulheres, nem ficam sabendo. Mas às vezes elas vazam. Como no assunto do momento da cena literária brasileira, o episódio 112 do podcast Rádio Novelo Apresenta em que a escritora Vanessa Barbara expõe um caso acontecido há 14 anos em um grupo de e-mails formado por alguns nomes bem conhecidos da nossa literatura.
Desde que comecei a escrever este texto, versões e notas de esclarecimento de diferentes CPFs tem pipocado aqui e ali, não entrarei em detalhes, não sou amigo de nenhum dos envolvidos, mas o resumo da ópera para os fofoqueiros de plantão é: um caso extraconjugal (um homem trai [!] a esposa), um grupo (semelhante aos de WhatsApp hoje em dia) de amigos homens que expõe detalhes íntimos de suas relações e, evidentemente, a turma do deixa disso que estava ali apenas pela camaradagem, ou seja, a turma que via, lia e ouvia as pequenas violências sofridas pelas mulheres, mas que assim como eu em vários momentos dos meus 35 anos, assim como eu no jantar na virada do ano, assim como eu no caso do escritor/YouTuber, resolve se calar. A boa e velha cumplicidade masculina que existe até alguém ser exposto.
9.
Nas notas de esclarecimento dos escritores do grupo que, até o fechamento desta edição da newsletter se pronunciaram sobre o caso do podcast, percebe-se o movimento – coordenado ou não – de “fui moleque, errei, faz 14 anos, o mundo mudou, eu mudei, hoje sou outra pessoa” e, dando o benefício da dúvida, aquele benefício da dúvida que damos para caras como eu, homens brancos heterossexuais desconstruídos à la Fiuk, faz sentido, as pessoas erram, morro de vergonha da pessoa que eu era há 14 anos, da pessoa que eu era há 10 anos, há 5, há 3, imagino que esses caras também, de modo que, sim, acreditamos que as pessoas mudam, mas mesmo mudando, leiam Édouard Louis, leiam “Monique se liberta”, leiam esse livro, leiam os outros livros do Édouard Louis; e que em 2025, nós, homens, não apenas deixemos de vez de fazer as nossas próprias merdas, mas também deixemos de passar pano e fechar os olhos para as merdas dos outros; chegou a hora de ser homem de verdade e se indispor com o coleguinha.
10.
Estou longe demais da desconstrução, do modelo de macho perfeito – que, cá entre nós, não existe –, estou no meu segundo casamento, 35 anos na cara sabendo que, em diferentes níveis, magoei (e ainda vou magoar) as mulheres da minha vida (as que passaram; as que continuam), sabendo que, mesmo me policiando, mesmo tentando ser um homem melhor, errarei, errarei vez ou outra reproduzindo comportamentos e padrões machistas que vieram configurados de fábrica, mas seguirei, seguirei lendo cada vez mais Édouard Louis e menos Neil Gaiman, seguirei usando a minha voz de homem branco heterossexual para falar sobre esse e outros temas de caráter social por vontade própria e não porque meu rabo está entre as pernas e precisei escrever uma nota de esclarecimento em conjunto com os meus advogados5.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Também li de Édouard Louis: “Mudar: método” e “Quem matou meu pai”.
Estamos conectados no LinkedIn? Contei dia desses como, desde 2017, estou construindo um negócio de uma pessoa só na internet.
“Ruptura”, da AppleTV+, está de volta, porém, como os episódios são liberados semanalmente, estou meio órfão de uma série para passar o tempo. Sugestões?
Produtividade é uma m*rda (minimalismo também) e o Arthur Miller, meu YouTuber favorito e próximo convidado do Clube Passageiro, acertou mais uma vez.
David Lynch nos deixou e, ouvindo a belíssima trilha sonora de “Twin Peaks”, percebi que Angelo Badalamenti e Julee Cruise também.
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Você sabia que a newsletter Passageiro tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Quando escrevo que “Voltar ao Brasil é participar de algumas discussões que há um tempo já não fazem parte do meu dia a dia” não é no sentido de que comentários machistas e misóginos não existam na França; o que quero dizer com essa frase é que esse tipo de conversa, geralmente, se dá em um contexto em que existe algum tipo de camaradagem ou vínculo familiar que acaba por acolher e/ou normalizar esse tipo de comportamento desprezível; algo que não tenho em Paris e que, evidentemente, é errado – aqui, em Paris, em Washington, em qualquer lugar.
Entreguei muito a idade ao usar esse termo, né?
Em uma das notas de esclarecimento, um dos escritores citados no rolê do podcast adotou uma postura do tipo “cuidado com o quê vocês tem publicado por aí, eu e meus advogados estamos de olho”, de modo que percebi que sequer tenho advogados, então quando escrevo “em conjunto com os meus advogados”, não passa de recurso literário; estou desamparado pelos homens da lei.
que importante esse texto, Matheus. homens escutam homens, então ter homens escrevendo o que você escreveu com tanta abertura, vulnerabilidade e coragem é muito importante. vi um comentário aqui em cima e senti de reforçar o pedido: leiam e ouçam mulheres. nós estamos sempre lendo e aprendendo com homens, mas vejo pouquíssimos homens lendo, aprendendo, ouvindo e, principalmente, admirando mulheres. já te vi diversas vezes indicando textos e livros de autoras e escritoras (inclusive a minha news, o que sempre me deixa muito lisonjeada), então sei que você já tem essa abertura. meu comentário é pra todos os que possam chegar a lê-lo.
indico: “memórias de uma moça bem comportada” da Simone de Beauvoir, a tetralogia napolitana da Elena Ferrante (que é uma obra-prima e vejo pouquíssimos homens lendo), “circe” da madeline miller. são algumas das obras que eu sinto que falam sobre ser mulher com verdade, que tem a nossa voz, sabe?
no mais, em outro ponto, eu também estou no mesmo processo que você por perceber que a maioria das minhas referências é branca. inclusive as que te indiquei. estou lendo agora “tudo sobre o amor”, da bell hooks e tem sido maravilhoso.
e com certeza vou ler edouard louis!
leiam mulheres, de preferência