#114 – Roda punk em um beach club na Indonésia
O tipo de crônica que eu escreveria para a VICE se eles não tivessem falido.
A newsletter Passageiro é um veículo independente e gratuito cujo conteúdo é escrito de maneira orgânica por um único humano – sem a ajuda de outras “inteligências”. Os textos aqui publicados têm como público-alvo pessoas reais – e não mecanismos de busca ou algoritmos –, de modo que, caso você seja um outro humano, talvez se identifique com o que é escrito neste espaço.
🎧 Para ler ouvindo1: Venturead, por White Swan.
📍 Canggu, Bali, Indonésia.
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
Estou de férias no Marrocos. “Férias”. Um escritor não tira férias – está sempre em busca de novas histórias. E este escritor agora é YouTuber, de modo que “férias” = “conteúdo”.
Dito isso, com este escritor em “férias”, a newsletter Passageiro está em férias – dessa vez sem aspas.
A programação normal volta na próxima terça-feira.
Hoje, reproduzo um texto que escrevi em agosto de 2023 sobre algo que aconteceu em maio de 2022. Como a newsletter Passageiro cresceu muito de lá para cá, talvez você ainda não tenha lido sobre a roda punk em um beach club na Indonésia. É um dos meus favoritos deste espaço.
1.
Um nômade digital brasileiro que conheci em Koh Phangan, na Tailândia, foi quem me passou o contato de Wayan, simpático motorista que nos espera no Aeroporto de Denpasar em Bali, na Indonésia, e explica a estrutura tradicional de batismo balinesa. Por aqui os bebês geralmente são batizados pela ordem de nascimento: Wayan (Primeiro), Made (Segundo), Nyoman (Terceiro) e Ketut (Quarto); independentemente do sexo. Se você tiver um quinto filho, o ciclo recomeça. É totalmente possível (e comum) que dois Wayans formem um casal; e seu primeiro filho também irá se chamar Wayan.
Diferentemente do restante do país, onde a maioria é islâmica – a Indonésia é o maior país muçulmano do mundo –, em Bali a religião predominante é o hinduísmo, tendo sido importado da Índia via Java. Após o Êxodo de Majapahit, violenta rebelião islâmica que varreu a região, a realeza hinduísta simpatizante de Shiva picou a mula de Java, refugiando-se em Bali. Além da religião, os javaneses também trouxeram para cá o sistema hinduísta de castas. Quem me conta tudo isso enquanto faço cara de paisagem é Wayan, não o motorista, mas o simpático gerente da pousada em que me hospedo em Ubud, cidade balinesa localizada entre plantações de arroz e vilas agrícolas.
Mesmo que por aqui o sistema de castas não seja tão discriminatório quanto o indiano, os balineses respeitam uma complexa hierarquia social. Confesso que eu teria mais chances de encontrar uma civilização secreta no coração da Amazônia do que tentar entender o emaranhado sistema de clãs que ainda vigora, mas basta dizer que, para nossos padrões ocidentais, todo mundo em Bali faz parte de um clã; todo mundo sabe a que clã faz parte; todo mundo sabe a que clã fazem parte os outros. Wayan, não o motorista, nem o gerente da pousada, mas o simpático (todo mundo aqui é simpático) atendente da loja onde compro um chip com internet para o meu celular, identifica que faço parte do clã dos nômades digitais e me indica um café moderninho com um bom Wi-Fi.
2.
Kopi Luwak é um café típico feito a partir de grãos extraídos das fezes de civeta, um mamífero típico da Ásia que lembra o nosso quati; “Kopi” significa “café” e “Luwak” significa “civeta”. Wayan, não o motorista, nem o gerente da pousada, tampouco o atendente da loja de celulares, mas o simpático barista do café moderninho que Wayan me indicou (o Wayan da loja de celulares), me serve uma xícara. O café, com o perdão do óbvio trocadilho, estava uma merda. Ao meu redor, nômades digitais com a mesma vibe tilelê de Koh Phangan trabalham em seus laptops.
Ubud é considerada o centro cultural e espiritual de Bali e, como não fica perto de nenhuma praia, os forasteiros por aqui formam um seleto clã paz & amor que prefere tomar café feito de merda do que beber umas cervejas à beira-mar. Nada contra, que fique claro; mas pouquíssimo a favor. Pago a conta e sigo para um warung pé sujo; “warung” é uma mistura de bar com restaurante onde você comerá o melhor nasi goreng da sua vida por menos de 10 reais. Faz um calor descomunal e tudo que quero depois de provar o Kopi Luwak é tomar uma cerveja bem gelada para tirar o gosto de merda da boca. Peço uma Bintang, a marca local, e quem me serve é Wayan, não o motorista, nem o…
3.
Foram oito dias em Ubud, mas confesso ao leitor viajante que três seriam o suficiente; ao menos que o leitor viajante faça parte do seleto clã paz & amor; este escritor viajante não faz.
Tem algo que talvez você não saiba sobre Bali: as praias são feias. A maioria delas, pelo menos; Uluwatu e Padang-Padang, as praias dos surfistas, se salvam.
Canggu é uma graça. Parece uma Praia do Rosa hipster – e com o mínimo de infraestrutura; exceto pelo seu trânsito caótico. Suas praias, no entanto, são feias. Areia preta, mar chocolatão estilo o litoral gaúcho e lixo; muito lixo.
O The Lawn é um desses beach clubs estilo Jurerê Internacional ou Cancún; piscina de borda infinita de frente para a praia, música eletrônica genérica nos alto-falantes e o clã de Jessicas, Amandas e Ashleys dançando com seus drinks coloridos em uma mão e seus celulares na outra.
Um amigo comenta que aos domingos costuma rolar uns showzinhos ao vivo. Deixo a moto no estacionamento do hotel e I. e eu caminhamos cerca de cinco minutos até o The Lawn. São pouco mais de 17h e o happy hour, que vai até às 19h, está apenas começando; dois drinks pelo preço de um; pedimos moscow mule.
Jessicas, Amandas e Ashleys dançam ao som dos hits mais recentes de reggaeton. O DJ Pen Drive também parece estar curtindo, uma vez que passa mais tempo olhando o movimento no beach club do que mexendo em sua aparelhagem.
– E aquela galera ali? – aponto para o curioso clã dos Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça que parece não pertencer ao ambiente.
– Eles parecem meio deslocados – I. observa.
A maioria deles está trajando camisetas do White Swan, a banda que se apresentará logo após o set do DJ Pen Drive.
4.
Sugeng Wisnusutha é um desses caras que não passa despercebido. Paletó vintage, camisa colorida por baixo, calça social também vintage e sapatos estilo Dr. Martens; não é fácil manter esse look de rockeiro dos anos 1960 no calor de Canggu. São pouco mais de 17h30 quando o vocalista do White Swan acomoda-se em um sofá com uma garrafa de vinho, o resto da banda – Reza Mahaputra (guitarra), Satriya Dana (baixo) e Maha Wahyu (bateria) – e suas groupies.
A vestimenta dos integrantes do White Swan é uma mistura de Cream, Jefferson Airplane e The Doors. Assim como os Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça, que agora pedem para tirar fotos com os ídolos, o clã do White Swan parece estar deslocado.
Assim que DJ Pen Drive encerra o seu set, Jessicas, Amandas e Ashleys vão embora do The Lawn. Os Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça espremem-se em frente ao palco, que fica de costas para a praia, em um visual que parece um protetor de tela do MacBook.
Sugeng é o último a subir no palco. Uma ópera toca nos alto-falantes enquanto os membros da banda ajeitam os instrumentos. Sugeng dá um último gole no vinho, acende o cigarro virado para a praia, puxa o fôlego e, quando canta o primeiro verso de Venturead, I. eu nos olhamos atônitos.
– Como esses caras não são famosos lá fora? – penso em voz alta.
– Né? Eles são mil vezes melhores que o Måneskin.
– É tipo o Greta Van Fleet, mas melhor.
Peço mais um moscow mule antes do fim do happy hour. O sol cai e o céu fica colorido. Luzes vermelhas são acesas no palco e constrastam com a fumaça do cigarro de Sugeng, que oferece vinho para a plateia.
Neste ponto da noite não sei mais a que clã pertenço, meu olhar não encontra nômades digitais trabalhando em seus laptops, Jessicas, Amandas e Ashleys já foram embora, me falta talento – e estilo – para estar no palco com o White Swan –, de modo que o que me resta é entrar na roda punk com os Jovens Adolescentes Indonésios Vestidos de Preto dos Pés à Cabeça.
Após quase levar um golpe de capoeira no rosto, vou para o lado do palco. Um simpático Jovem Adolescente Indonésio Vestido de Preto dos Pés à Cabeça abre um sorriso, aperta a minha mão e pergunta o meu nome.
– Matheus. E o seu?
– Wayan.
5.
Em 2014, após os Arctic Monkeys levarem o prêmio de Melhor Álbum do Ano no BRIT Awards, Alex Turner fez o seguinte discurso:
“Esse rock and roll, hein? Esse rock and roll, ele simplesmente não vai embora. Ele pode hibernar de tempos em tempos e mergulhar novamente no pântano. Eu acho que a natureza cíclica do universo em que ele existe demanda que ele siga algumas de suas regras. Mas ele sempre está esperando ali pertinho, virando a esquina. Pronto para fazer seu caminho de volta através da sujeira e detonar o teto de vidro, aparentando estar melhor do que nunca. É, esse rock and roll, às vezes parece que ele perdeu a graça, mas ele nunca irá morrer. E não há nada que você possa fazer a respeito”.
Eu não sei onde o rock and roll esteve de 2014 para cá, mas sentado em um sofá no beach club balinês, ainda em êxtase após o show do White Swan, tenho a impressão de que ele está melhor do que nunca.
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Um vlog situado entre Paris e Bangkok sobre escrever livros e tornar-se um YouTuber aos 35; mas não só.
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Que texto gostoso de ler!
Gostei demais, fui transportado mentalmente para o rolê. Nos meus fones de ouvido tocava Nirvana enquanto eu lia, então para mim eles estavam tocando Nirvana (kkk)