#124 – O tempo na cara
Uma exploração sobre o sentido da escrita, das viagens e da passagem do tempo.
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🎧 Para ler ouvindo1: Vento na Cara, por Terno Rei.
📍 Koh Phangan, Tailândia
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de Nômade Digital, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
Cinco anos. Cinco anos é muito tempo. Cinco anos é muito tempo mas passa rápido. Parece que foi ontem. A primeira vez que te vi foi há cinco anos; de dentro do ferry, nos primeiros meses da pandemia de Covid-19; a água azul turquesa, as palmeiras e coqueiros no horizonte, o píer de Thong Sala.
A primeira vez que dirigi uma moto foi nas tuas estradas que cortam a mata nativa; as palmeiras e coqueiros que vi do ferry; os raios solares que cruzam a vegetação, o céu sempre azul, o vento na cara. Muitas foram as tardes de 2020 em que, como se estivesse numa realidade paralela à la Ilha de Lost enquanto milhares de pessoas morriam diariamente ao redor do mundo por conta de um vírus filho da puta, dirigi a motinho para cima e para baixo só para sentir a tua beleza.
Os expatriados que te conheciam há mais tempo, no entanto, costumavam dizer, já em 2020, que tu não eras mais a mesma. Amigos e amigas que fiz na ilha e que jurei que seriam para a vida. Mas cinco anos é muito tempo. Cinco anos é muito tempo e passa rápido.
2.
Nestes cinco anos, voltei três vezes na esperança de reviver 2020.
Mas tu seguistes mudando; eu também.
3.
A melhor maneira de se locomover na Terra dos Sorrisos é sobre duas rodas. Segundo as leis tailandesas, os farangs não podem dirigir no país. Carteiras de motorista estrangeiras ou carteiras internacionais não são aceitas, nem mesmo no caso de turistas de passagem, mas o sujeitinho da locadora – que também funciona como restaurante, lavanderia e agência de turismo – não implicou comigo, de modo que assim que cheguei na ilha pude me juntar ao mar de motociclistas sem capacete indo em direção ao mercado de rua de Thong Sala. A polícia, apesar de na maioria das vezes fazer vista grossa, eventualmente aborda um ou outro farang, que é liberado mediante pagamento de propina.
Dirigir minha motoneta alugada sem rumo foi um grande prazer que adquiri em Koh Phanagn. Eu, que até então nunca havia pilotado nada com duas rodas mais potente do que um patinete elétrico, e que sequer tenho habilitação para tal, passei tardes e mais tardes zanzando pela ilha. Fones nos ouvidos, chinelos, bermuda, às vezes sem camisa, sempre sem capacete, cabelos ao vento, um selvagem, um fora da lei, sentindo a brisa que vinha do mar, pilotando uma motoneta que na minha cabeça era uma Harley Davidson, Jax Teller em Sons of Anarchy, tatuagens de caveiras e anéis nos dedos, saindo em grupo com outros nômades como se fosse Hunter S. Thompson com os Hell’s Angels, medo e delírio sobre duas rodas, Johnny Depp narrando a cena de forma pausada, luz baixa, fumaça de cigarro e garrafas vazias na sala de quem assiste a tudo isso do sofá, até estacionar no Pum Pui e ele, sorrindo, perguntar se quero o de sempre, eu confirmar que quero o de sempre, e me sentar de frente para o asfalto com a sensação de dever cumprido.
Enquanto meu pad thai com tofu é preparado, observo um tailandês magrelo com um macaco na garupa estacionar sua motoneta do outro lado da rua. O bicho, preso por uma longa corrente, sobe em uma árvore e volta com um coco. Ele repete o processo enquanto o tailandês magrelo fuma um cigarro. A Tailândia é o terceiro maior exportador mundial de coco e muitos produtores locais dependem da mão de obra de macacos. A People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), maior organização de direitos dos animais, conduziu uma investigação em 2019 para denunciar a forma como os animais são treinados para subir às árvores e colher cocos. Quando não estão trabalhando, como o macaco escravizado que vi em Koh Phangan, eles geralmente são mantidos acorrentados e transportados em jaulas minúsculas. Depois de a investigação da PETA ter sido publicada, algumas redes de supermercados decidiram boicotar produtos de empresas tailandesas que utilizam a mão de obra de macacos. O caso mais emblemático de boicote foi do time de futebol do Liverpool, que encerrou seu contrato de patrocínio com a Chaokoh, uma das empresas citadas na investigação da PETA, cujo jogador brasileiro Roberto Firmino era um dos garotos-propaganda. O tailandês magrelo percebe que estou de olho em seu funcionário e me encara como quem diz “isso não é problema seu, farang de merda”. Abro a notificação do celular e há um convite para uma live no Instagram. O tema, claro, é nomadismo digital.
Escrevi essas linhas em 2021, no México, com a nostalgia de quem romantiza o passado.
A locadora – que também funciona como restaurante, lavanderia e agência de turismo – ainda está lá, na saída do píer. Os negócios do Pum Pui vão bem; ele ampliou o espaço do restaurante e também entrou no segmento de aluguel de motos, mas não pergunta mais se “quero o de sempre”; o Pum Pui esqueceu meu rosto, diferente da senhora do restaurante na mesma rua que eu sempre ia em 2020 quando o Pum Pui estava muito cheio, fried rice with cashew nuts and tofu?2, ela pergunta quando me vê. Dessa vez não vi macacos; nem as árvores em frente ao restaurante do Pum Pui – elas deram lugar a uma casa de câmbio, umas casinhas para aluguel de temporada e uma 7-Eleven. Roberto Firmino não é jogador do Liverpool desde 2023; passou por Al-Ahli, da Arábia Saudita, e atualmente joga no Al-Sadd, do Qatar.
4.
Tenho visto muitas cobras3 desde que cheguei aqui.
Dizem que isso pode significar transformações – renascimento, cura, sabedoria e/ou força espiritual –, mas a realidade parece ser mais simples e menos tilelê: com o desmatamento que a ilha tem sofrido desde 2020 para a construção de casinhas para aluguel de temporada visando os dólares e euros de nômades digitais e outros expatriados, os bichos estão saindo a luz do dia para tomar o que é deles por direito; mais cedo vi um filhote de lagarto-monitor, réptil parente do dragão de Komodo que geralmente vive na encosta de rios, lagarteando no centrinho de Koh Phangan.
5.
Desde que Nômade Digital foi lançado respondo as mesmas perguntas semana sim e semana não – “o que é um nômade digital?”; “como você se tornou um nômade digital?”; “o que é preciso para se tornar um nômade digital?”; “em quantos países você já morou?”; “quanto de dinheiro é preciso para se tornar um nômade digital?”; “como é a sua rotina?”; “qualquer pessoa pode se tornar um nômade digital?”. Minha vida profissional se tornou uma espécie de performance, onde dou a mesma entrevista chata e repetida sobre viajar o mundo enquanto trabalho de forma remota. O livro não vendeu muito, mas foi finalista do Prêmio Jabuti e me deu alguma visibilidade, ajudando a vender cursos online de escrita criativa e fechar alguns freelas e publis nas redes sociais, mas eu não queria ficar rotulado para sempre como “o cara que é nômade digital”, como uma banda que lança um hit e é chamada de tempos em tempos em programas de auditório para tocar a mesma música.
Eu precisava fazer algo para interromper essa performance masturbatória. Um livro novo aproveitando o burburinho em cima do outro. Algo fora do mundinho de bandeiras dos países visitados na bio do Instagram e listas com x coisas para você fazer tal coisa ou o que eu aprendi fazendo isso ou aquilo. Cair na estrada para valer, escrever meu On the Road, mas sem ser o típico branco salvador como as lourinhas intercambistas que viajam para se encontrar na esperança de escrever o novo Comer, Rezar e Amar. Viajar para se perder, não para se encontrar – e escrever sobre isso.
Entre 2018 e 2022 viajei por mais de 20 países, a Itália ficou fora de duas Copas do Mundo, os Arctic Monkeys lançaram dois álbuns, o Father John Misty também, tivemos duas eleições presidenciais no Brasil, a OMS decretou uma pandemia mundial, o Flamengo jogou três finais de Libertadores. Passageiro é substantivo e adjetivo. Enquanto era transportado de um lugar para outro por um veículo (público ou particular), o tempo passava rapidamente. Momentos breves, passageiros, coincidências, eventos que se repetiram ou não.
Acho que Passageiro é sobre isso. Não é um guia de viagens onde você vai encontrar listas com monumentos históricos, melhores hotéis e restaurantes da moda – é mais fácil você achar dicas turísticas no Google –, tampouco é um livro de autoajuda onde o autor encontra iluminação divina – continuo ateu – e encerra com uma grande lição. Tudo nesta obra realmente aconteceu, para bem ou para o mal – “viagens não são sempre bonitas” –, talvez não da maneira exata como narrei – especialmente os episódios que envolvem karaokês –, ou talvez tenha acontecido apenas na minha cabeça após beber rum tailandês de qualidade duvidosa, mas de certa forma tudo que não aconteceu também aconteceu. E, por último, mas não menos importante, se você sonha em se tornar um nômade digital, leia meu livro anterior e não me encha mais o saco.
Escrevi essas linhas mal-humoradas em 2022, na Itália, como uma forma de justificar a existência de mais um livro com crônicas de viagens; será que precisamos de mais uma obra do tipo?, era meu questionamento. Relendo três anos depois, não gosto do tom; um misto de prepotência, arrogância e “olha como sou diferentão”.
Há tempos não sou chamado para lives ou entrevistas sobre nomadismo digital; não era o que eu queria?, pois é. Também há tempos não faço publis nas redes sociais. Percebi que nesse meio é mais fácil cair no ostracismo do que chegar ao topo – principalmente se você quer jogar o jogo de acordo com os seus próprios termos. Deveria ter cedido mais em algumas coisas?, hoje, mais velho, me questiono. Ainda há tempo?, não sei. Talvez.
Nômade Digital, meu único hit, vendeu incríveis e surreais 114.642 exemplares em sua versão digital apenas no último semestre graças a uma parceria com a Skeelo4. Minha versão que escreveu essas linhas mal-humoradas em 2022 deveria ter mais orgulho do seu trabalho.
2026 está logo ali: mais uma Copa do Mundo; novas eleições presidenciais – e supostamente mais um álbum dos Arctic Monkeys.
6.
Cinco anos é muito tempo. É difícil desapegar. Mas é hora de seguir em frente. Fui muito feliz contigo, mas não é saudável se apegar ao passado. É hora de criar novas memórias. Deixar 2020, 2022, 2023 e até 2025 no passado. É hora de pegar o ferry no píer de Thong Sala para talvez não voltar. É hora de viajar para um novo lugar sem ter um passado vinculado a este lugar. É hora de desbravar. É hora de reacender a chama. É hora de ir para a Índia.
🧑🎓 Programa de Aceleração para Artistas e Criativos
Essa é a hora que sem embaraço algum eu vendo o meu trabalho; não escrevo essa newsletter por hobby – ela é um meio para fazer meu nome e vender as minhas paradas.
Dito isso, tem novidade na Passageiro Academy que vai te ajudar a tirar suas ideias do papel e/ou aumentar sua presença como Creator – essa palavrinha em inglês para quem cria; para que tem algo a dizer.
Acabo de lançar oficialmente o Programa de Aceleração para Artistas e Criativos – encontros 1:1 feitos sob medida para que você, aí do outro lado da tela, não seja mais um na multidão.
🧑🎓 Cursos com inscrições abertas
✍️ Escrita Criativa
– Desenvolva seu processo criativo e rompa bloqueios mentais – sem o auxílio de inteligência artificial. (infos aqui)
🎒 Escrita de Viagem
– Faça seus leitores viajarem com você. (infos aqui)
🏴☠️ Faça (Você Mesmo)
– Monetize o seu conhecimento e crie um negócio sustentável de uma pessoa só; e sem surtar. (infos aqui)
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Sempre desconfio de livros hypados (diferentão ele, né?), mas felizmente comprei Coisa de rico: A vida dos endinheirados brasileiros, do antropólogo Michel Alcoforado. Tô curtindo bastante a leitura.
A ideia inicial dessa edição da news surgiu após eu assistir esse vídeo de Marina Abramović e Ulay – um contexto: o ex-casal de artistas não se via há 22 anos após uma despedida simbólica em 1989, caminhando em lados opostos da Muralha da China, e se reencontraram em 2010 durante uma exposição no MoMA, onde se emocionaram profundamente, sentando-se um em frente ao outro e, sem dizer uma palavra, deram as mãos. Numa dessas coincidências da vida, a escreveu sobre isso na edição mais recente da .
O pessoal do Substack é meio contrário aos conteúdos de negócios na plataforma, mas vocês (que escrevem; que criam) deveriam ler o ; aqui ele conta como criar conteúdo profundo durante 120 dias mudou profundamente a sua vida.
Finalmente assisti o documentário Vice Is Broke no MUBI; uma prova que, às vezes, tentar bancar o diferentão não é assim tão cool.
Mac DeMarco tocando três músicas de Guitar, seu álbum mais recente, na KCRW.
O que bateu diferente essa semana: Willoughby Tucker, I'll Always Love You, da Ethel Cain.
Você sabia que esta newsletter tem uma playlist no Spotify com todas as músicas indicadas aqui? Pois é. A Rádio Passageiro é atualizada semanalmente.
Arroz frito com castanha de caju e tofu. U-M-A D-E-L-Í-C-I-A.
Lá ele!
Não é publi, infelizmente.
A música ❤️ E Michel Alcoforado 🤌🏼 Vale ouvir o episódio que ele foi entrevistado no Bom dia Obvious esses dias, sensacional! Boa viagem ✨
também tô numa fase maratonando terno rei (o título/trocadilho da news com a música foi bom demais)