🎧 Para ler ouvindo1: The Ocean, por Richard Hawley.
📍 Koh Phangan, Tailândia
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de Nômade Digital, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
“Quando você começa uma longa jornada, árvores são árvores, água é água, e montanhas são montanhas. Depois de ter percorrido certa distância, árvores já não são árvores, água já não é água, montanhas já não são montanhas. Mas depois de ter viajado uma grande distância, árvores voltam a ser árvores, água volta a ser água, montanhas voltam a ser montanhas.”
(Provérbio Zen)
2.
É difícil decidir o que contar numa newsletter que não é exatamente um querido diário, mas que às vezes soa como um; pareço estar sempre em uma egotrip tentando provar algo.
Talvez essas linhas sirvam para provar – ainda que não tenham me pedido provas – que não importa o quanto você viaje, não importa o quão “bem-sucedido” você seja aos olhos dos outros, ninguém, absolutamente ninguém está livre do espelho que há no fundo do poço.
Quando tinha 20 e poucos, concluí que meus problemas estavam no Brasil; viajar o mundo seria a cura. Coloquei uma mochila nas costas e fui para longe de casa, uma chance de me reinventar, começar do zero. Eu queria, no final das contas, “me encontrar”, ainda que até hoje não saiba exatamente o que isso quer dizer.
Escrevendo as memórias das viagens que fiz durante meu período nômade entre 2017 e 2023 em Passageiro, não a newsletter, mas o livro, percebo que talvez a principal trava na construção deste projeto autobiográfico (autoficcional?) – estou tentando escrever o livro desde 2022 – tenha sido minhas próprias memórias; ao tentar não mexer no passado e não magoar o presente, bloqueei recordações, troquei “nós” por “eu”, apaguei a história de quem esteve comigo no começo; apaguei o que doía; não fui um narrador confiável.
3.
Após uma separação conturbada, dois escritores escrevem livros com as suas versões da história.
Em março de 2022, Hannah Pittard recebe um e-mail de seu agente com uma captura de tela de um site da indústria editorial anunciando que Andrew Ewell, seu ex-marido, havia escrito um romance que espelhava o passado do então casal.
A própria Hannah havia escrito um livro de memórias sobre o divórcio usando diálogos imaginados para contar como, em 2016, descobriu que Andrew a estava traindo com sua melhor amiga.
Andrew, por outro lado, pegou alguns dos mesmos eventos e os transformou em um romance satírico narrado por um aspirante a escritor que se ressente da carreira de sucesso da esposa como escritora de ficção, luta para produzir seu próprio trabalho e tem um caso com a melhor amiga dela. Em uma reviravolta metaficcional, quando a esposa do narrador anônimo descobre que ele a está traindo, ela escreve um livro autoficcional sobre o casamento e o divórcio deles; mais tarde, o narrador escreve um romance autoficcional próprio.
Ao ler sobre o fim nas palavras de L., penso que talvez seja a hora de fazer as pazes com o passado; e terminar Passageiro, o livro. Mas antes há o presente; é preciso seguir em frente.
4.
Durante o dia, num fuso cinco horas a frente de Paris, era mais fácil ser indiferente; às vezes ligava o ar-condicionado de manhã e desligava no fim do dia; entre os dois movimentos, nenhum evento digno de nota. À noite, no entanto, a indiferença tornava-se paranoia. Será que hoje você trabalhou de casa ou foi para o escritório? Saiu para beber com os nossos amigos? Ou os recebeu no apartamento da Pierre Fontaine que agora é só seu? De quem é aquele tênis que aparece em um story no seu Instagram? Conheceu um francês em algum aplicativo de relacionamentos? Que playlist é essa que você tem ouvido no Spotify?
Tinha vindo a Chiang Mai porque não havia nada que me prendesse a Paris; mas tinha atravessado o oceano até a Tailândia apenas para ligar o ar-condicionado pela manhã e desligá-lo no fim do dia. Por cinquenta dias e cinquenta noites.
5.
Fechava os olhos e fazia um tour pelo apartamento da Pierre Fontaine. Abria as janelas para que o sol de agosto iluminasse as plantas que sobreviveram ao inverno. Ajeitava as almofadas, pensava na capa do sofá que precisa ser trocada. Tocava os livros na estante. Os vinis no carrinho vermelho que compramos para acomodar a vitrola. Sentava-me na cadeira marrom do escritório. Olhava para a segunda tela. O pôster que eu trouxe de Bangkok que substituiu aquele dos Stooges que você detestava. A gaveta do armário que está caindo. A cozinha apertada. Lembrava de cada móvel, de cada objeto, de cada detalhe, das texturas. Por fim, lembrava de você.
Pensava em Paris. Pensava na ironia: no último ano meu maior desejo era deixar a cidade, ir para um lugar em que houvesse sol. Uma cidade do Sudeste Asiático. Nos dias em que brigávamos, não vou mentir, fantasiava em fazer isso sozinho, apenas eu, sem você, sentir-me novamente livre para fazer o que bem entendesse. E cá estou. Mas então por que o luto?
6.
Ainda em Chiang Mai, tento fazer amigos. “Mas você ganha dinheiro com a escrita? Escreve livros? Como é isso?”, as perguntas que costumo receber nas rodinhas de nômades digitais e que não tenho mais paciência para responder. Mas há uma certa insistência nestes tópicos, principalmente por parte dos mais novos, querem falar de monetização, de infoprodutos, de Substack, de modo que me bate com mais força a certeza de que já não tenho interesse no rótulo, Nômade Digital, e de que não sou mais jovem. Suporto essas interações sem que ninguém perceba minha falta de vontade, fico quieto, às vezes sorrio para demonstrar que estou acompanhando a conversa, engajo quando um destino que conheço é citado, mas por dentro é como olhar uma foto antiga de si próprio; não me reconheço mais; não sou mais a versão por quem eles têm interesse.
7.
Em Sempre Paris: Crônica de uma cidade, seus escritores e artistas, livro vencedor do Prêmio Jabuti em 2024, Rosa Freire d’Aguiar escreve que:
“Alguém avisou que não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz. Será que um dia eu saí de lá? Será que Paris comporta adeus? Paris é para sempre.”
Volto a Koh Phangan no mesmo ferry que nos levou ao continente quando nos mudamos para Paris; nossa última aventura com o rótulo; Nômades Digitais.
Aqui, fui feliz. Aqui, fomos felizes até não sermos mais.
🎞️ PassageiroTV
Qual o sentido da vida?
Perguntei para um monge tailandês.
A resposta? Juro que não é click bait, mas eu não esperava.
🧑🎓 Programa de Aceleração para Artistas e Criativos
Tem novidade na Passageiro Academy que vai te ajudar a tirar suas ideias do papel e/ou aumentar sua presença como Creator – essa palavrinha em inglês para quem cria; para que tem algo a dizer.
Acabo de lançar oficialmente o Programa de Aceleração para Artistas e Criativos – encontros 1:1 feitos sob medida para que você, aí do outro lado da tela, não seja mais um na multidão.
🧑🎓 Cursos com inscrições abertas
✍️ Escrita Criativa
– Desenvolva seu processo criativo e rompa bloqueios mentais – sem o auxílio de inteligência artificial. (infos aqui)
🎒 Escrita de Viagem
– Faça seus leitores viajarem com você. (infos aqui)
🏴☠️ Faça (Você Mesmo)
– Monetize o seu conhecimento e crie um negócio sustentável de uma pessoa só; e sem surtar. (infos aqui)
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Apego; por .
@henriqueodi (meu fotógrafo favorito!); siga ele no Instagram e no YouTube.
Esse vídeo do com o segredo que a Apple nunca contou.
Ainda não assisti, mas está na lista: o recém-lançado documentário da MUBI sobre a queda da Vice.
Tenho ouvido muito: Guitar, o novo do Mac DeMarco, Ego Death At A Bachelorette Party, o novo da Hayley Willians, e essa playlist com um monte de música triste pra ficar feliz (!).
Você sabia que esta newsletter tem uma playlist no Spotify com todas as músicas indicadas aqui? Pois é. A Rádio Passageiro é atualizada semanalmente.
admito que chorei um pouquinho com esse ❤️🩹
olha ele me mencionando, agradeço muito. vamos dar as mãos e dar uma choradinha. uma hora vai passar, mas será que a gente quer que passe? se precisar, tô aqui.