#126 – Fracassei como nômade digital em Bali; mas não só
Entre o hinduísmo e o hedonismo, a falta de equilíbrio; e de 'tolak angin'.
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🎧 Para ler ouvindo1: “Roller Coaster”, por Modjorido.
📍 Uluwatu, Bali, Indonésia
✍️ & 📷 por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
Ainda que tenha sido uma experiência transformadora, a viagem para a Índia2 me desgastou; mentalmente e fisicamente. Chego ao Darjeeling, no estado de Bengala Ocidental, pertinho das fronteiras com Tibete e Nepal, completamente nauseado. A senhorinha dona da pousada diz que pode ser por conta da altitude de 2.134 metros – vejo os Himalaias da janela – ou da própria subida até lá na carroceria de um jipe em uma estrada cheia de curvas fechadas após onze horas viajando de trem, mas estou convencido, no entanto, de que foi algo que comi na rua. Durante a noite, sinto febre, frio e alucinações. A Índia finalmente me pegou.
Na manhã seguinte, sem conseguir sair da cama para o café da manhã, sou acordado por H. batendo na porta.
“Ô, meu, a senhorinha falou pra tu comer essas frutas e tomar esse comprimido.” – ele diz com seu sotaque porto-alegrense.
Não faço ideia do que tomei ou comi, mas sinto-me melhor quase que instantaneamente.
No WhatsApp, conto para você sobre o ocorrido, menciono o medo de chegar em Bali doente, “chegando em Bali toma um jamu”, você diz, “ou tolak angin na farmácia, as avós dão para as crianças, cura qualquer coisa”, “até coração partido?”, pergunto, “Bali cura tudo”, você, em Nova York, responde.
2.
No trajeto do aeroporto Ngurah Rai até a acomodação que você recomendou, vejo um outdoor que diz: “qualquer dia ruim em Bali é melhor do que qualquer dia bom em qualquer outro lugar.”
3.
Eu tinha apenas3 27 anos quando me demiti do meu último emprego de carteira assinada, coloquei minhas coisas em duas mochilas e caí na estrada para viajar o mundo e trabalhar de forma remota. Isso foi na virada de 2016 para 2017.
Em 2019, já trintão, publiquei um simpático livrinho que mudaria a minha vida: “Nômade Digital”, finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte.
Perdoem a autocitação, mas no simpático livrinho escrevo num subcapítulo entitulado “Produtividade: conciliando trabalho, rotina, fusos, viagens e turismo” que:
“Meu maior desafio como nômade digital até aqui foi estar na Itália durante o verão europeu. Moramos um tempo em Puglia, região no sul da bota que é famosa por suas praias de águas cristalinas e é considerada um dos paraísos gastronômicos e enológicos do país.
Talvez agora você esteja se perguntando qual o desafio em morar numa região paradisíaca com boa comida e bons vinhos. “Que sacrifício, hein, Matheus?”. Pois bem, o desafio é exatamente esse. Como conseguir se concentrar no trabalho de posse dessas informações? Como entregar um projeto, mesmo amando o que você faz4, quando do outro lado da parede há uma praia incrível, frutos do mar fresquinhos e vinhos de qualidade? Como ter uma rotina quando o lazer é tão atraente?
O primeiro passo é ter consciência de que você não está de férias. Nômades digitais não são mochileiros; tampouco turistas. São profissionais que carregam seu trabalho na mochila enquanto praticam o que chamam lá (aqui) fora de slow travel. Viajar devagar, com calma. Viver de verdade em cada cidade; não apenas fazer um check-in no Facebook5 para mostrar que você esteve lá. Esse tipo de viagem entra naquele negócio de ‘viver como um local’. Ou seja, você tem que imprimir sua velha rotina dentro da sua nova cidade.”
4.
“Querida, eu te disse várias vezes antes. Eu não tenho um emprego dos sonhos, eu não sonho com trabalho”, diz uma voz supostamente atribuída ao escritor James Baldwin em um áudio que anda circulando no Instagram, o que me faz lembrar de um outro áudio, esse enunciado pelo filósofo Pitón, famoso personagem da internet de quem Karl Marx seria discípulo (?), que afirma eloquentemente que “tudo na vida é pra comer alguém”.6
“Você não estuda pra ter um emprego bom, pra juntar dinheiro, pra falar ‘ah, não sei o quê’, eu sou bem-sucedido”, brada o filósofo da internet, não, segundo ele, você faz tudo isso com o exclusivo objetivo de “comer alguém”.
Ainda que a sabedoria popular de Pitón seja exagerada – e me perdoem os puritanos pelo termo usado aqui, estamos falando evidentemente de um meme –, há algo de verdadeiro nessa corrente de pensamento; em Bali, o melhor e o pior lugar para um recém-solteiro – todo mundo é irritantemente bonito; todo mundo, incluindo os caras (!!!) –, me pego postando stories no Instagram numa frequência maior – nenhum deles de cunho profissional, coisa que eu deveria estar fazendo – e com a trilha sonora escolhida a dedo; o alcance e o engajamento dos meus conteúdos deixam de ter importância e a única métrica que passo a acompanhar é se você os visualizou.
5.
Imbituba, Santa Catarina, minha cidade natal, é famosa por suas ondas; assim como Uluwatu, Bali. Foi em Imbituba que aprendi a surfar. Não sou dos melhores, devo confessar, meus esportes da infância e adolescência sempre foram o futebol e o skate, mas acho que ainda sei ficar em pé numa prancha.
Com quantos anos você aprendeu a surfar?, me pergunto enquanto escrevo essas linhas – talvez eu te pergunte isso mais tarde no WhatsApp, ainda é cedo em Nova York. Eu tinha 16 para 17 anos quando fiquei em pé numa prancha pela primeira vez. Minha namoradinha da escola havia me trocado por um surfista, um surfista de verdade, de modo que decidi encarar as ondas da Praia da Vila.
6.
Eles estão juntos até hoje e tem uma filha.
7.
Sentado num café de frente para a praia de Balangan, observo os surfistas enquanto tento trabalhar em meu laptop calculando de tempos em tempos que horas são em Nova York, “será que ela já acordou?”. Cogito alugar uma prancha e me arriscar em uma das praias de Uluwatu, não por estar com uma vontade genuína de fazer isso, o lineup7 é disputado e não quero atrapalhar aqueles e aquelas que sabem surfar de verdade ou ouvir um “fora haole”, além disso realmente preciso trabalhar, “ela não deve ter acordado ainda”, mas penso que isso poderia gerar bons conteúdos para o meu Instagram – nenhum deles relacionados ao trabalho, evidentemente.
8.
O hinduísmo balinês é baseado na harmonia entre humanos e Deus, humanos e humanos e humanos e natureza. A prática diária de oferendas (canang sari8) e a busca pelo alinhamento físico, mental e espiritual (Usada Bali) são fundamentais para manter esse equilíbrio.
Ao fechar o laptop e descer para a praia com a autodesculpa de que posso trabalhar a noite, “ainda é cedo no Brasil, posso enviar a newsletter mais tarde e aproveitar o dia”, lembro dos meus próprios conselhos no tal livrinho simpático, “posso enviar a newsletter mais tarde, está tudo certo”, repito mentalmente.
9.
No caminho de volta encosto a motinho no acostamento para ler as informações de um outdoor sobre uma festa em que o Modjorido, uma das bandas que você me indicou, vai tocar, “já toquei guitarra com o vocalista”, você diz; decido ir, “não tem problema enviar a newsletter amanhã”, digo para mim mesmo.
10.
“Esses caras deveriam estar tocando em festivais na Europa, não aqui”, anuncia o novo proprietário do hotel mais antigo de Uluwatu, um estadunidense um pouco mais velho que eu, durante seu discurso.
“Sei que o pessoal tem falado muita besteira sobre a gente nas redes sociais, mas respeitamos muito os locais, por isso fizemos questão de chamar as bandas daqui pra tocar”, ele diz num tom de suspeita benevolência, como se não quisesse ser visto como parte do problema de gentrificação em Bali.
Como assim?, me pergunto, e decido investigar no dia seguinte. O dono do hotel também é sócio de uma empresa de aluguel de jet skis. Aparentemente, os surfistas locais ficaram putos porque, por mais de uma vez, os jet skis invadiram o lineup de uma das praias de Uluwatu. “Respeitem os locais ou voltem para a casa de vocês”, diz um dos posts. Lendo os comentários, descubro que em um dos jet skis estava o surfista brasileiro Gabriel Medina. O dono do hotel e sócio da empresa de aluguéis de jet ski tenta argumentar, “mas era o GABRIEL MEDINA” e é respondido por um surfista local com um “e daí?”.
Após ficar quase uma hora preso nos comentários da postagem no Instagram, lembro que preciso enviar a newsletter e que provavelmente essa fofoca não será útil para o texto.
11.
No show do Modjorido, entre uma Bintang9 e outra, não consigo tirar você da cabeça; talvez eu realmente precise de um tolak angin. Já amanheceu em Nova York.
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Vivi tanta coisa por lá que decidi dividir a viagem em um diário de três partes. A primeira foi publicada aqui.
Uso “apenas” propositalmente porque na época eu me achava velho para fazer isso – ou para tentar qualquer coisa diferente daquela que era minha rotina de bater ponto todos os dias no escritório. Estou com 36.
Nota do autor em 2025: eu achava que amava o que fazia. Hoje eu diria que tolero. Trabalho é trabalho.
O livro foi escrito em 2018 e publicado em 2019. Algumas coisas, como fazer check-in no Facebook – ou o próprio Facebook–, estão ficando datadas.
Ouça aqui. Inclui uma ou outra palavra de baixo calão – não ouça sem fones em lugares públicos. Lembre-se que é meme.
“Lineup” no surf significa a área fora da zona de rebentação (o “outside”) onde os surfistas esperam as ondas. É o local onde eles se posicionam, geralmente formando uma fila, para esperar o momento de pegar uma onda. O termo também pode se referir ao próprio alinhamento desses surfistas.
O fato de você ser fluente em indonésio ainda me deixa perplexo – ou perplecto, como diria o saudoso Gil Brother Away.
Marca da mais popular cerveja local.





Rindo de nervoso com essa leitura. Comecei a escrever algo parecido, esses dias. Participei de uma conferência sobre um filósofo do qual gosto muito, mas fui ao evento mais pela esperança de que uma pessoa específica visse meu story, e puxasse conversa sobre isso, um assunto em comum entre nós dois. Não sei quem eu teria me tornado sem todas as coisas que li, comprei, comi, escutei, só para chamar a atenção de outra pessoa. A gente leva alguma coisa, mesmo que não seja o que queríamos.
A inesperada citação ao filósofo Piton me pegou desprevenido hahahaha
Mais uma vez, excelente texto. Bom ver você novamente nas estradas!