#125 – Diários da Índia (parte 1/3)
Jaipur e Agra; viajar com a mente aberta; entrar em lojas sem compromisso.
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🎧 Para ler ouvindo1: “Jaago”, por Lifafa.

✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
📝 Nota do editor
Assistindo aos vlogs de viagem sobre a Índia – e os reacts do Casimiro aos vlogs –, tenho a impressão de que existe apenas uma Índia, a das comidas de rua em condições precárias de higiene, “sobrevivi às comidas de rua na Índia”, “as comidas de rua mais nojentas da Índia”, “comendo na Índia até passar mal”, de modo que, ao escolher não apenas meus destinos de interesse no país, decido também o tipo de história que quero contar tanto em passageiro.news quanto em passageiro.tv; mas não só; decido também o tipo de história que não quero contar sobre a Índia.
Devo confessar que, apesar de conhecer as Regras do Jogo & dos Algoritmos, de modo geral, não me importo muito com elas – ou mesmo com o que os leitores esperam de mim; é claro que fico feliz com os comentários e escrevo porque espero ser lido, sou muito grato por ter construído uma audiência fiel que me acompanha em diferentes redes, mas por outro lado jamais pautarei meu trabalho em o que performa bem em tal rede, em qual a melhor foto de capa, em qual o melhor título, em qual é a trend do momento; vocês nunca me verão perguntar “que tipo de conteúdo vocês gostariam de ver por aqui?” porque o tipo de conteúdo que crio é o conteúdo que eu gostaria de consumir; escrevo os textos que eu gostaria de ler; gravo os vídeos que eu gostaria de assistir; com sorte, encontro outras pessoas no meio do caminho que se identificam com aquilo que sai da minha cabeça.
Dito isso, não sou de ficar pedindo “compartilhe esse texto”, “deixe um comentário” ou coisas do tipo, mas especialmente com essa série da Índia (aqui e no YouTube), peço que você, aí do outro da tela, sempre que ouvir alguém falando como “a Índia é isso” ou como a “Índia é aquilo”, envie meus conteúdos sobre o país para tal pessoa; mais que isso: diga para tal pessoa ir ver a Índia com seus próprios olhos.

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.”
Amyr Klink
1.
Caminhar pelas ruas de Jaipur é uma explosão sensorial, um caleidoscópio vívido de cores; o açafrão vendido nas calçadas, os sáris das mulheres indianas, a pintura rosa2 dos prédios, as placas no idioma que não é meu, a luz do sol que parece brilhar diferente aqui do que brilha lá.
E aí tem o trânsito, esse espetáculo caótico e barulhento que, como num passe de mágica, funciona; todo mundo que não deveria se entender se entende: pedestres, ambulantes, motos, bicicletas, tuk-tuks, carros, carroças, ônibus, vacas, elefantes, camelos, macacos, cachorros, ratos. Com tantos estímulos há uma certa excitação em querer fotografar tudo, em querer parar o tempo para olhar com calma cada coisinha, cada detalhe do que acontece ao meu redor.
Não vou mentir, há também o cheiro: não apenas da apetitosa comida vendida nas ruas, mas de certa mistura de excrementos – humanos e animais. Com o tempo você se acostuma.
2.
Fazer turismo em países em desenvolvimento nessa parte do mundo é aceitar que, por ser homem branco do ocidente – ainda que estadunidenses e europeus não me considerem branco –, eventualmente acabo sendo visto como uma espécie de caixa eletrônico ambulante, de modo que infelizmente em minhas interações com os locais é difícil perceber o que é interesse genuíno e o que é interesse financeiro. Decido ignorar isso e manter a cabeça aberta durante a viagem. Se um indiano tentar me abordar na tentativa de um golpe financeiro ou mesmo para oferecer qualquer favor em troca de uma visita à sua loja, “você não precisa comprar nada, venha, venha, sem compromisso”, irei até o fim. Quero experimentar a Índia, quero conhecer as suas pessoas. “Estou procurando por extremos de emoção e experiência. Vou tentar qualquer coisa. Vou arriscar tudo. Não tenho nada a perder”, assim como Anthony Bourdain.
3.
H. e eu, dois branquelos com câmeras caras a tiracolo, chamamos mais atenção do que gostaríamos, mas não há medo da nossa parte, pelo contrário, apenas um leve constrangimento em ser o centro das atenções, dois animais de circo distribuindo “hellos” e respondendo a pergunta “where are you from, my friend?” a cada dois passos, “oh, Brazil! Nice! Neymar”, celebridades como Leopoldo Pisanello, o personagem de Roberto Benigni em “Para Roma com Amor” de Woody Allen, famosos da noite para o dia, perseguidos pelas ruas por indianos com ou sem segundas intenções monetárias.

4.
“Você é fotógrafo?” – um Indiano Bem Vestido e de Bigodinho Hipster pergunta para H. “Não preciso do dinheiro de vocês, eu também gosto de fotografar”, ele completa.
“Sou.” – H. responde.
“Seguindo nessa ruazinha, à esquerda, há um terraço com a melhor vista da cidade. Eu mostro para vocês.”
Ele disse que não precisa do nosso dinheiro, penso enquanto andamos pela ruazinha.
“Ali.” – o Indiano Bem Vestido e de Bigodinho Hipster aponta para uma escada enferrujada em caracol e despede-se com um caloroso aperto de mão; ele realmente não precisa do nosso dinheiro.
O prédio tem quatro andares e é composto, ao que parece, apenas por salas comerciais. Não somos os únicos no terraço. Um Indiano de Meia Idade com Cara e Jeito de Boa Gente e uma Bela Barriga Saliente fica surpreso ao ver os dois branquelos.
“O que vocês estão fazendo aqui em cima?” – ele pergunta seguido de uma gostosa risada de fumante.
“Só tirando umas fotos.” – respondo.
“Estão vendo aquela construção?” – ele aponta para o horizonte. “É o Jantar Mantar, Patrimônio da UNESCO, um observatório astronômico do século 18, vocês deveriam ir lá no final da tarde para fotografar o por do sol.”
“Obrigado pela dica.” – H. responde.
“O que você sugere fazermos até lá?” – pergunto.
“Vocês podem visitar uma fábrica de estampas. É algo tradicional aqui em Jaipur. Eles usam blocos de madeira para pintar os tecidos, não há nenhum processo químico envolvido. Conheço uma fábrica que fica a uns 20 minutos daqui de tuk-tuk. Se quiserem, posso falar com um motorista para levar vocês até lá. Se eu falar, ele faz o preço que faria para um indiano e não preço de turista.”
“Seria incrível. Muito obrigado.” – respondo.
“Antes, gostariam de olhar minha loja? Vendo prata. Anéis, colares, pulseiras, brincos, tudo. Prata original, com certificado. Posso mostrar a loja para vocês, sem compromisso.”
Nosso novo amigo nos serve massala chai e, sem compromisso, saio de lá com três anéis e uma pulseira.
5.
O motorista de tuk-tuk cumpre o acordo de 100 rúpias negociado pelo nosso amigo vendedor de prata, o Indiano de Meia Idade com Cara e Jeito de Boa Gente e uma Bela Barriga Saliente, e nos deixa na fábrica. Somos recepcionados pelo simpático gerente, um Indiano Boa Pinta e Brincalhão que nos explica, em detalhes, o processo de criação das estampas.
“Aqui na fábrica só trabalham homens, eles que fazem o trabalho braçal de pintura com os blocos de madeira. As mulheres trabalham em outra fábrica, a função delas é confeccionar os tecidos. Todo o processo é artesanal.”
O Indiano Boa Pinta e Brincalhão pede que um de seus funcionários faça uma demonstração.
“Vejam a minha camisa. Dá para acreditar que essa estampa não foi feita por uma máquina?” – ele pergunta. “Vocês brancos jamais saberiam a diferença.” – ele mesmo responde; e solta uma gargalhada. “Agora vamos para o andar de cima. Quero mostrar nossa loja. Aqui vendemos tudo a preço de custo. Vocês podem olhar sem compromisso.”
O Indiano Boa Pinta e Brincalhão nos mostra lençóis, colchas, capas de almofada, tapetes e cachecóis, tentamos explicar que não temos casa, que somos nômades e viajamos apenas com duas mochilas cada, que não há espaço, “nós podemos fazer um pacote compacto”, ele insiste, “quem sabe algo para a namorada de vocês”, “nossas namoradas nos deixaram”, a gente explica, “para a mãe de vocês, então, namoradas vêm e vão, mães só temos uma”, ele reflete, sem compromisso.
“Ok, vamos fazer o seguinte. As peças que gostarem mais respondam ‘Índia’ e meu assistente separa para vocês. As que não gostarem tanto assim, respondam ‘Paquistão’ e eu ponho de volta na prateleira.” – ele diz não se contendo e rindo da própria piada xenofóbica.
Após uma rodada de massala chai, entro na onda e, sem compromisso, digo “Índia” três vezes; saio da fábrica com uma colcha para uma cama que não tenho – que ficará linda na casa que também não tenho –, um cachecol para o inverno e outro para o verão.
6.
Sawai Jai Singh II (1688–1743), o maharajá de Amber, foi um dos príncipes rajaputes3 mais poderosos do Império Mogol durante o início do século 18; foi ele quem, em 1727, fundou Jaipur, uma das primeiras cidades planejadas da era moderna; ainda que seu trânsito caótico nos dê outra impressão, a cidade é dividida em quadras retangulares planejadas segundo os princípios do Vastu Shastra (antigo tratado hindu de arquitetura) e do Shilpa Shastra (ciência do design e construção); apaixonado por astronomia, matemática e engenharia, Sawai Jai Singh II também construiu cinco observatórios astronômicos, conhecidos como Jantar Mantars, localizados em Nova Delhi, Varanasi, Ujjain, Mathura (hoje em ruínas) e Jaipur – este último o mais famoso.
Os observatórios utilizavam instrumentos gigantes de pedra para medir o tempo, prever eclipses e calcular posições planetárias com precisão notável para a época, mas olhando tudo isso de perto, só consigo pensar que Sandro Dias, o Mineirinho, poderia usá-los como rampa.
7.
O Indiano de Meia Idade com Cara e Jeito de Boa Gente e uma Bela Barriga Saliente tinha razão: o por do sol no Jantar Mantar de Jaipur rende ótimas fotos.
“Vamos gravar um take nesse gramado, eu coloco a câmera meio longe, a gente senta perto daquela árvore e finge conversar algo.” – sugere H.
Estamos próximos à entrada do pequeno museu que conta a história do Jantar Mantar. Somos observados com certa curiosidade por uma excursão de estudantes. Entre risinhos e acenos tímidos de ambos os lados, peço para tirar uma foto.
Um dos rapazes caminha pelo gramado em nossa direção. Ele não veste o uniforme dos estudantes. A câmera registrando tudo4.
“Oi, posso sentar com vocês?” – ele pergunta.
“Claro!” – respondemos em uníssono.
Um outro rapaz faz o mesmo.
E depois mais um.
Eles são Três Irmãos.
E de repente cá estamos, sentados, H. e eu, com Três Irmãos indianos que nos contam sobre ser filhos do dono da escola, nos mostram as músicas que escutam, nos convidam para, numa próxima vez, ficarmos na casa deles. Somos apresentados aos estudantes como os “viajantes brasileiros”, “ele é fotógrafo, ele é escritor”, depois ao pai dos Três Irmãos, “parabéns pelos filhos”, digo ao receber um forte aperto de mão, “vocês querem perguntar algo pra eles?”, o Irmão Mais Velho interage com os estudantes, silêncio, “eles estão tímidos”, ele diz aos risos, mais apertos de mãos, “vamos nos seguir no Instagram”, o Irmão Mais Novo sugere, nos seguimos, posto a nossa foto e marco os Três Irmãos, eles repostam, ganho dezenas de novos seguidores indianos – e agora o algoritmo do Instagram deve pensar que comprei seguidores.
8.
Já em Agra, ao chegar no hotel após uma cansativa viagem de trem, penso no Indiano Bem Vestido e de Bigodinho Hipster que nos parou, H. e eu, para mostrar o terraço com a melhor vista da cidade. Ele não queria nosso dinheiro, não queria nada da gente, mas nos deu tudo; cada um desses eventos que se desencadearam a partir do nosso diálogo.
Às 23h50 de Agra, abro uma cerveja em sua homenagem. À minha frente, o Taj Mahal.
🎵 Uma playlist indie(ana) 🇮🇳
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Em 1876, o príncipe de Gales (futuro rei Eduardo VII) visitou Jaipur. Para recebê-lo, toda a cidade foi pintada de rosa, cor que simboliza hospitalidade. Desde então, Jaipur ficou conhecida como “Cidade Rosa”.
Membros de um dos clãs patrilineares do centro e do norte da Índia e de algumas partes do Paquistão. Os rajaputes são descendentes dos xátrias, uma das classes dominantes de grandes guerreiros do subcontinente indiano.
Em breve na PassageiroTV.







Eu não entendo as pessoas que te pedem livro novo todos os dias, com 125 edições gratuitas de Passageiro.
Ainda bem que eu não me incluo nesse grupo. Nunca cheguei nem perto de reclamar contigo “cadê seu próximo livro”, ou “não acredito que o novo livro ainda não saiu”.
Estou com a consciência tranquila!
Matheus, confesso que a Índia é um dos últimos destinos ao qual eu gostaria de ir, mas, como já é habitual, você consegue escrever lindamente sobre o não óbvio e a essência local/regional a partir do seu olhar “sem compromisso” (risos). Já ansiosa pelo próximo episódio. 👏🏼
P.S.: agora que cliquei na playlist indie(an), “sem compromisso”, o algoritmo do Spotify vai me indicar músicas que nada têm a ver com o meu gosto musical. 😆😅