[Passageiro #104] Um pouco de medo e algum delírio em Ayutthaya
Budas decepados, tatuagens sagradas e revólver na cintura; estive no 17º World Wai Khru Muay Thai; mas não só.
🎧 Para ler ouvindo1: Soul Lam Plearn, por The Petch Phin Thong Band.

✍️ Por Matheus de Souza
📍 Bangkok, Tailândia
Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
Dia desses, flanando sem rumo entre os canais do rio Chao Phraya, pertinho do Wat2 Arun, um imponente templo construído no século XVII quando o Reino de Ayutthaya era um dos mais importantes do mundo, encontro um exemplar em inglês de “Medo e delírio em Las Vegas” numa pequena livraria. Entendo aquilo como um sinal. Uso três notas de 100 bath3 com a imagem do rei Rama X e uma outra nota de 100 baht mais antiga com a imagem do rei Rama IX para efetuar o pagamento de 350 baht pelo livro e o vendedor, um velhinho tailandês sorridente como são os tailandeses, me dá o troco com duas notas de 20 baht – ambas com a imagem do rei Rama X – e uma moeda de 10 baht que usarei mais tarde em uma 7-Eleven para comprar uma garrafa d’água.
“Livro muito bom”, diz o vendedor em “tinglish”, o jeito bem específico que os tailandeses falam inglês4.
2.
Teria sido mais barato e confortável fazer os cerca de 80km do trajeto Bangkok-Ayutthaya de trem, mas deixo para comprar o bilhete em cima da hora e os únicos horários disponíveis são tarde da noite, de modo que decido ir até Ayutthaya numa mini van, 150 baht o bilhete no site 12Go5; 1h30min de viagem saindo do terminal de ônibus Mochit em Bangkok. Por 111 baht, no mesmo site, compro também a passagem de volta – desta vez de trem; 1h09min de viagem saindo da estação de Ayutthaya.
Locomover-se em Bangkok não é das tarefas mais fáceis, o trânsito é caótico e os engarrafamentos frequentes, são apenas duas linhas de metrô (MRT) e o skytrain (BTS), um trem elevado que serve como extensão do MRT – tipo o projeto de aerotrem do Levy Fidelix! –, cobre uma distância de apenas 37,9 quilômetros, de modo que o jeito mais rápido para ir do ponto A ao ponto B costuma ser o mototáxi que, apesar de não ser o meio de transporte mais seguro do mundo, cumpre bem a sua função numa cidade como essa – além de ser a opção mais barata.
Por 68 baht chamo um piloto de mototáxi no Grab6, uma espécie de Uber tailandês, mas com mais funcionalidades e sem taxas abusivas, e o piloto tailandês faz o que motoqueiros em cidades grandes fazem de melhor, corta o trânsito, flana entre os carros, faz retornos proibidos e me deixa no terminal de Mochit treze minutos antes do previsto.
Encontro o guichê indicado no bilhete comprado no site 12Go e a atendente, uma jovem tailandesa sorridente como são os tailandeses, sem falar uma palavra em inglês ou tinglish, utiliza a linguagem universal da mímica para explicar em qual plataforma a mini van estará me esperando.
Já fiz algumas viagens em mini vans pela Tailândia, elas costumam ser bem confortáveis, mas eu deveria ter desconfiado do preço.
Mostro o bilhete para o motorista e ele abre a porta do possante. Faz 36 graus em Bangkok, de modo que sinto certo alívio quando percebo que o ar condicionado está ligado no talo. Acomodo-me no único assento individual vago, na última fileira, e arrependo-me instantaneamente. Os assentos da última fileira são elevados, mal consigo encostar os pés no chão, a distância para o banco da frente é mínima e minha cabeça quase encosta no teto – e não sou necessariamente uma pessoa alta; tenho 1,74.
Seriam 1h30min de sofrimento e uma leve náusea.
3.
Ayutthaya foi fundada em 1350 e, até 1767, ano da invasão do exército birmanês, foi talvez a mais importante, mais bonita e mais poderosa cidade de todo o Sudeste Asiático – e capital do antigo Sião, hoje Tailândia.
Sua localização estratégica, na junção de três importantes rios – Chao Phraya, Lopburi e Pa Sak –, foi fundamental para seu estabelecimento como o principal canal de comércio da região. Estima-se que, durante o seu auge, Ayutthaya tenha ultrapassado a marca de 1 milhão de habitantes.
É estranho caminhar entre ruínas de outros tempos; Roma, Teotihuacan, Ayutthaya; antigos impérios que desapareceram.
O Reino de Ayutthaya caiu em 1767, há 258 anos. Penso em como será o mundo em 2283, penso se ainda haverá mundo em 2283; e o quê as futuras gerações pensarão da gente?; nossas ruínas serão também digitais; os vídeos, os textos7, os áudios; deixaremos muito a ser estudado.
Como explicar em 2283 que, em 2025, mesmo sabendo o que sabemos hoje, mesmo tendo estudado a História, mesmo tendo passado por Duas Grandes Guerras Mundiais, estamos perto de uma Terceira?
Como explicar em 2283 que, em 2025, mesmo sabendo o que sabemos hoje, Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos da América (pela segunda vez!) e que ele está seguindo os passos de Adolf Hitler? Como explicar Jair Bolsonaro no Brasil? Como explicar Marine Le Pen8 na França?
Não tenho como saber se em 2283 meus textos publicados no Substack ainda estarão disponíveis online, não tenho como saber se as pessoas em 2283 ainda saberão ler, não tenho como saber se vocês em 2283 conseguirão resgatar minhas palavras através do Wayback Machine ou outra ferramenta similar, mas gostaria de deixar registrado para as pessoas de 2283 que, apesar de sabermos tudo o que sabemos em 2025, que é muito mais do que as pessoas sabiam em 1767 ou 1945, nós, pessoas civis de 2025, fomos engolidos por um sistema capitalista que está destruindo o nosso Planeta; nós somos a nossa própria ruína.
4.
Ayutthaya é Patrimônio Mundial da UNESCO desde 1991. Entre suas ruínas, incrivelmente bem conservadas, choca a imagem de Budas decepados pelo exército birmanês; a crueldade birmanesa em Ayutthaya conseguiu ir além de saquear e destruir a cidade, conseguiu ir além de interromper vidas e sonhos; a crueldade birmanesa decepou o que o povo do Sião considera mais importante: a sua fé.
Olhando os Budas decepados em Ayutthaya lembro da França; a França país onde moro, a França país onde sou imigrante, a França país onde fiz uma cobertura literária dos Jogos Olímpicos de Paris, a França país que segue decepando a fé de suas mulheres muçulmanas9.
5.
Estou em Ayutthaya não apenas para escrever que estive em Ayutthaya, mas também para documentar em vídeo que estive em Ayutthaya; alô pessoal de 2283: criei um canal no YouTube, tenho tentado fazer uns vlogs aqui na Tailândia – mas ainda não publiquei nada.
O grande problema em tentar ser YouTuber aos 35 é que não tenho a menor noção do que estou fazendo – tenho dificuldades em falar com a câmera, tenho dificuldades em criar uma narrativa que faça sentido, tenho muitas dificuldades técnicas (principalmente com o áudio); foram cinco ou seis as vezes em que gravei longos monólogos com o microfone desligado; desanima, mas não quero aprender fazendo algum curso de YouTube que me ensinará o jeito daquele YouTuber; não quero contratar alguém para editar, não quero contratar alguém para cuidar do áudio; não quero nada disso, quero fazer as coisas do meu jeito.
E é por isso que ainda não tenho um vídeo completo para mostrar para vocês, mas segue um trechinho do Vlog 001 da PassageiroTV.
6.
Também estou em Ayutthaya por conta do 17º World Wai Khru Muay Thai, evento em que praticantes desse esporte, patrimônio nacional, prestam homenagens e referenciam seus mestres; “wai” significa “prestar respeito”; “khru” significa “professor”.
Gosto do muay thai não apenas pela luta em si, mas pelo ritual, por tudo que envolve uma luta.
O wai kru, esse ritual de prestar homenagens e referenciar os mestres, acontece através de uma espécie de dança antes do combate. Por meio do wai kru, o lutador de muay thai demonstra o quão bem treinado é e o quão preparado ele está para a luta, exibindo seu controle e estilo. Isso ajuda a criar uma espécie de pressão psicológica sobre o oponente; ajuda a alugar um triplex na cabeça do adversário.
Tem também as tatuagens.
Contei nesta mesma Passageiro quando, em 2023, recebi uma sak yant de um ex-monge budista. Isso aconteceu em Chiang Mai, norte da Tailândia.
As sak yant são tatuagens sagradas dentro da cultura tailandesa; elas não são apenas decorativas, mas carregam também um forte significado espiritual e protetor; são desenhadas à mão com agulhas ou bambu por monges ou ex-monges budistas que abençoam os tatuados com símbolos e mantras que trazem proteção, sorte e força. Muitos lutadores de muay thai recorrem às sak yant por acreditarem que as tatuagens podem oferecer proteção espiritual durante seus combates.
Durante o 17º World Wai Khru Muay Thai, passo mais tempo em um workshop de sak yant, observando atentamente monges e ex-monges tatuarem farangs10, do que assistindo os combates em si.
Talvez a minha própria sak yant quisesse me dizer algo.
6.
Ajarn Beer protegeu-me em 2023 com uma sak yant de cinco linhas.
A primeira linha evita punições injustas, limpa espíritos indesejados e protege a casa; a segunda repele o azar; a terceira protege contra a magia negra e as maldições; a quarta energiza a boa sorte; e a quinta promove o carisma e atrai o sexo oposto.
Não sei qual dessas linhas protegeu-me no que narro a seguir.
🚨 (AVISO DE GATILHO: VIOLÊNCIA CONTRA MULHER) 🚨
Terminado o 17º World Wai Khru Muay Thai, dou uma última volta pela cidade e procuro um restaurante para comer qualquer coisa.
Encontro um que parece promissor. Peço frango com cashew nuts e uma long neck da Chang, a cerveja local mais barata. Sentado à minha frente, na parte externa do restaurante, um tailandês ri sozinho; em sua mesa, cinco garrafas vazias de Chang; cinco litrões; ele pede a sexta.
Meu celular é velho de guerra, um iPhone 11 Pro comprado nesta mesma Tailândia em 2020, de modo que sua bateria não tem aguentado o tranco, o que me faz ter sempre um carregador a tiracolo.
Estou com 8% de bateria e pergunto para a simpática garçonete se há alguma tomada para que eu possa carregar o celular velho de guerra; ela me leva ao interior do restaurante; pago a conta e conecto o carregador.
Espero pacientemente que o iPhone chegue em pelo menos 80% de carregamento para que eu possa seguir meu rumo até Bangkok. O tailandês das Changs vazias aparece e fala comigo em tinglish.
“Há um banheiro aqui dentro.”
“Ah, ok, obrigado, mas estou de boa.”
“Só dizendo caso você precise.”
Simpático, penso.
Ele volta cinco minutos depois.
“Então, tem um banheiro aqui, fica naquela direção.”
Fico sem entender o porquê de ele seguir repetindo isso.
“Muito obrigado, muito obrigado mesmo, mas não preciso ir ao banheiro no momento.”
Ele pede um copo de gelo e uma garrafa de rum para a garçonete.
“Você quer rum? Senta lá comigo.”
“Ah, obrigado, mas não. Já estou indo embora. Tenho que voltar para Bangkok.”
Ele sai. Volta em seguida.
“Você sabe que ela”, ele aponta para a garçonete, “te quer, né"?”
Sorrio sem graça fingindo não entender o que ele diz.
“Ela te quer”, ele insiste aos risos. A garçonete não acha graça.
“Tenho que ir embora, cara, até mais”, chamo um piloto de mototáxi no Grab para ir até a estação de Ayutthaya. Agradeço a garçonete.
Estou na calçada, de costas para o restaurante enquanto espero meu piloto, quando escuto uma gritaria vindo do interior.
Olho para trás e vejo o bêbado, que agora suponho ser o marido da garçonete e provavelmente dono do restaurante, discutindo com a mulher. Ela grita com ele. Ele grita com ela. Percebo que ele olha para mim e desvio o olhar; atravesso a rua para esperar meu piloto.
Mais uma olhada. Ele está tentando pegar uma garrafa de cerveja da geladeira, ela tenta evitar, ele a segura pelos braços e bate nela. Empurrões, socos. Gritaria. Dentro do restaurante, além deles, há apenas um casal de clientes; um farang e uma tailandesa. Desvio o olhar novamente.
O piloto chega.
O tailandês bêbado sai do restaurante e começa a andar em direção ao outro lado da rua, onde estou subindo na moto. Num movimento involuntário de quem finge não ter visto o que viu e só quer ir embora, levanto o braço e aceno, me despedindo como quem agradece pela acolhida. Ele sorri, levanta a camiseta e mostra uma arma na cintura.
O piloto acelera.
Meu coração também.
Já na estrada, sentindo o vento na cara, olho para a minha sak yant. Lembro dos Budas decepados. Torço que esse bêbado agressor de mulheres tenha o mesmo fim.
🤔 Odeio explicar coisas que escrevo, mas aqui vão algumas hipóteses e esclarecimentos:
Pensei muito nos últimos dias a respeito do que aconteceu e me parece que:
– O tailandês bêbado é marido da garçonete;
– Ele provavelmente ficou com ciúmes da generosidade dela em carregar o meu celular;
– Ele provavelmente insistiu que eu fosse ao banheiro para me dar um pau; não acho que ele simplesmente me mataria;
– Por que eu não fiz nada quando ele agrediu a mulher? Poderia ser pior; para ambos;
– Ele provavelmente mostrou a arma para marcar território, para me assustar; um aviso;
– A Tailândia está longe, bem longe de ser um país violento ou perigoso.
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“Wat” significa “templo” em tailandês.
100 baht = R$ 16,81; 1 baht = R$ 0,17.
Não sou de ficar dando muitas dicas de viagem e indicando serviços – e evidentemente não estou sendo pago para tal –, mas esse site 12Go muito útil para viajantes na Ásia.
Mesma coisa do 12Go, mas o Grab atende especificamente os países do Sudeste Asiático; Tailândia, Singapura, Malásia, Indonésia, Vietnã, Filipinas, Mianmar, Camboja.
O WordPress, por exemplo, lançou o Plano de 100 Anos – uma assinatura para blogueiros que pretendem manter o seu legado online por mais um século após suas mortes. Custa US$ 38 mil.
Nem tudo está perdido: ouvi certa comemoração em Paris quando Jean-Marie Le Pen, pai de Marine e líder abertamente racista da extrema-direita na França, morreu no início do ano; a lamentar o fato que ele viveu 96 anos.
A lista é longa: “França proíbe uso de túnica muçulmana nas escolas”; “Comitê francês impede atleta de usar hijab na abertura das Olimpíadas”; “Especialistas da ONU pedem que França suspenda proibição do hijab no esporte”; “França debate proibição de roupas ‘aparentemente’ religiosas em competições desportivas”; e por aí vai.
“Farang” é o nome que os tailandeses dão para os “gringos”.
Eu também fiz minha sak yant em Chiang Mai em 2019 (no caso uma gao yard), mas nem de longe passei por um perrengue do tipo. Que bom que tudo terminou razoavelmente bem!
No Camboja eu visitei os templos sagrados de Angkhor e também haviam muitos - praticamente todos - budas decepados. No caso lá, o que o guia me explicou é que contrabandistas franceses - sim, sempre eles -, passaram décadas saqueando as imagens dos budas, que valeriam muito no mercado negro europeu de antiguidades. Como eram estátuas de pedra enormes e pesadíssimas, eles arrancavam as cabeças, que era mais fácil de traficar sem ser preso pelas autoridades coloniais.