Medo e Delírio #3 – A luta de Macron contra os coliformes fecais
Emmanuel Macron dissolveu a Assembleia Nacional em uma tentativa de conter a extrema-direita, mas a pergunta que não quer calar é: o presidente será capaz de eliminar os coliformes fecais do rio Sena?
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🎧 Para ler ouvindo2: People Are Strange, por The Doors.

✍️ Por Matheus de Souza3
11 de junho de 2024
PARIS, FRANÇA
1.
Meu rendez-vous4 na Préfecture de Police estava marcado para às 14h30. Chego cedo, por volta das 13h30, e observo uma fila dobrando o quarteirão. Mostro o papel da solicitação do meu titre de séjour5 para o rapaz que parece tentar estabelecer alguma ordem e explico que não falo francês. Ele diz não falar inglês, mas entende perfeitamente o que digo e me responde na língua de Shakespeare – estamos pertinho da Shakespeare and Company e isso não tem absolutamente nada a ver com o assunto, mas a newsletter felizmente é minha e eu escrevo o que bem entender, de modo que trago essa curiosidade irrelevante.
– Ok. Vá para o final da fila.
– Mas o meu rendez-vous é daqui a pouco.
– Não importa. Vá para o final da fila.
A fila é composta em sua maioria por imigrantes árabes e africanos. Sou um dos poucos brancos esperando a sua vez de ser humilhado por um oficial da lei francês. Lá pelas 15h, finalmente, chega a minha vez – de ser humilhado.
O oficial, um francês distinto na casa dos 40, pede os meus documentos. Entendo o que ele diz meio que por dedução e entrego meus papéis. E aí ele pergunta qualquer coisa que não entendo.
– Desculpe, eu não falo francês.
– Você não fala francês? Por que você não fala francês? Como você não fala francês? Estamos na França. Eu não falo inglês – diz ele. Em inglês.
Explico meu rolê de trabalhar remoto para o Brasil, explico que minha esposa é cidadã italiana e trabalha em Paris, explico que acabei de chegar no país e quero aprender o idioma, explico coisas que nem precisaria explicar; nessas horas a gente fica nervoso.
Ele pede as minhas digitais, dá mais uma olhada nos documentos, explica que em dois meses receberei um e-mail para um novo rendez-vous, dessa vez para pegar o meu titre de séjour, e pergunta mais uma vez, meio que incrédulo.
– Mas você não fala francês?
2.
A cena descrita acima aconteceu em agosto de 20236, meses antes da aprovação da nova lei de imigração, uma vitória parlamentar para Emmanuel Macron que gerou revolta entre os seus apoiadores por ter contado com o apoio da extrema-direita.
Entre outras inconstitucionalidades, como a restrição considerável do pagamento de benefícios sociais aos imigrantes, a nova lei de imigração impede, por exemplo, que um estrangeiro nascido em um país fora da União Europeia, ainda que cônjuge de alguém com passaporte europeu, possa morar no país sem falar o idioma – no meu caso, por exemplo, sou casado com uma cidadã italiana (uma área cinzenta na nova lei) que trabalha na França; nem ela nem eu usamos francês em nossos trabalhos – nem cometemos atos de delinquência (as principais reclamações dos conservadores – e de Macron7 – contra os imigrantes); nosso único crime é pagar impostos e movimentar a economia.
3.
No último domingo (09) aconteceram as eleições do Parlamento Europeu, órgão que é uma das duas câmaras legislativas da União Europeia e tem a responsabilidade de aprovar legislações e controlar o Orçamento do bloco. A extrema-direita, impulsionada não apenas por velhos burros, mas também por seus filhos, jovens do Tik Tok que desconhecem o termo “colonização” e bradam palavras de ordem contra imigrantes árabes e africanos, foi a grande vencedora da noite.
Aqui na França, a extrema e a ULTRA (A ULTRA!!!) direita passaram o rodo, de modo que Macron achou uma boa ideia dissolver a Assembleia Nacional – para comparação: é como se o presidente brasileiro dissolvesse o Congresso Nacional, como era o desejo do clã Bolsonaro, com a grande diferença de que essa manobra é amparada pela lei na França e no Brasil, de fato, seria um golpe de Estado.
Na França, onde dissolver a Assembleia Nacional não é golpe de Estado, isso já aconteceu outras cinco vezes desde a instauração da Quinta República, em 1958 – e nas tentativas anteriores a maioria presidencial foi confirmada em quatro delas.
O último a tentar tal manobra foi Jacques Chirac, presidente conservador que, em 1996, dissolveu a Assembleia Nacional e abriu uma brecha para que os socialistas voltassem ao poder.
"A dissolução nunca foi feita por conveniência do presidente, mas para resolver uma crise política", disse em 1996 o então presidente francês Chirac.
No sistema semi-presidencialista da França, o presidente depende de um primeiro-ministro indicado pelo parlamento para assegurar a governabilidade. Macron foi reeleito para a presidência em abril de 2022, mas acabou perdendo sua maioria parlamentar no pleito legislativo de junho do mesmo ano.
Desde então, ele tem enfrentado dificuldades para aprovar leis (menos a nova lei da imigração, uma vez que a extrema-direita adorou) e projetos na Assembleia Nacional, tendo que recorrer a mecanismos controversos no meio político francês, como decretos e ordens executivas, para superar a falta de uma maioria.
Com pouco menos de três anos de mandato presidencial pela frente, o prazo para que Macron tentasse romper esse impasse vinha ficando cada vez mais estreito.
No caso de Chirac, a dissolução acabou se revelando um desastre para seu grupo político, pois a oposição de esquerda venceu o pleito. Isolado, o conservador Chirac teve que conviver com um primeiro-ministro socialista, numa situação chamada "coabitação" na França, quando os chefes de Estado e de governo são de grupos rivais.
Também foi Chirac, em 1988, na época prefeito de Paris, o último a prometer a limpeza do rio Sena – ele afirmou que as águas do rio mais famoso da França estariam limpas até 1994 e que ele próprio seria o primeiro a nadar nelas; Chirac morreu em 2019 com o rio Sena ainda poluído.
4.
Paris investiu (ou gastou?) 1.4 bilhão de euros (euros!!!) na limpeza do Sena, rio onde é proibido nadar desde 1923 – sob risco de multa (15 euros) além de uma grande possibilidade de contrair gastroenterite, micose e/ou até mesmo leptospirose (vocês sabem que o Ratatouille é daqui, né?). Tamanho investimento só foi possível graças aos Jogos Olímpicos que acontecem em menos de 50 dias na capital francesa – as provas de maratona aquática e a natação do triatlo serão disputadas no rio Sena (ele estando próprio para banho ou não).
Ninguém, ninguém mesmo, tem botado fé na limpeza do rio Sena – especialistas provaram que, de fato, o rio ainda está sujo –, de modo que a prefeita da cidade, Anne Hidalgo, deu uma declaração esses tempos afirmando que irá nadar no rio para provar que ele está em condições de receber parte das provas8. Ela deu até uma data: 23 de junho. E mais: convidou o Macron. Que aceitou!
Isso foi antes da dissolução da Assembleia Nacional – o primeiro turno das eleições foi marcado para o dia 30 de junho e o segundo para 07 de julho – poucos dias antes da abertura das Olimpíadas (26 de julho) e entre o mergulho da dupla de políticos (o que deixou a prefeita Hidalgo de cara com o Macron).
Ainda não sabemos se depois dessa presepada toda o convite de Hidalgo se mantém de pé, mas sabemos que os franceses são criativos quando o assunto é protestar contra o governo (nem só de carro queimado eles vivem): uma parte considerável do esgoto da cidade deságua no Sena (será que o do meu prédio também?) e parisienses muito criativos criaram um site e um algoritmo que calcula o tempo que o nosso cocô leva para chegar até o Sena.
O site faz o cálculo de quando a pessoa deve defecar em casa para que o cocô chegue ao Sena exatamente no dia 23 de junho, ao meio-dia, data em que os políticos franceses supostamente provarão que o rio está limpo.
Ao que parece, a luta de Macron contra os coliformes fecais terá um novo capítulo.
5.
– Você já sofreu xenofobia na França? – pergunta um amigo brasileiro que vive em Portugal e está preocupado com o ódio de uma parcela dos portugueses – vocês sabem qual parcela – contra os brasileiros.
– Cara, nunca. Nunca mesmo. E tem um motivo bem claro para isso – lembro da fila do titre de séjour na Préfecture de Police.
A edição regular desta terça-feira de Passageiro dá lugar a um boletim extraordinário de Medo e Delírio nas Olimpíadas de Paris em face aos últimos acontecimentos na capital francesa.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Além de contar suas histórias na internet (ou “produzir conteúdo”, como o pessoal gosta de chamar), nosso intrépido correspondente é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e pós-graduado em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – tem também um MBA em Gestão de Negócios pela UNISUL, mas isso não vem ao acaso; ele só quis se aparecer. Atualmente, vive perto (uns 5km) da renomada Universidade de Sorbonne, porém, nunca pisou lá – apenas passou na frente.
Agendamento/reunião/encontro.
O documento de identidade dos estrangeiros na França; uma espécie de visto de residência.
E adivinha só? Apenas em 1º de julho, quase um ano depois, terei o tal rendez-vous para pegar o meu titre de séjour – com meus papéis provisórios posso (e devo) pagar impostos, mas para Macron e a extrema-direita sou apenas um potencial delinquente.
No ano anterior à aprovação da lei, Macron havia dito em entrevista que “não tem como não notar que a metade, pelo menos, dos delinquentes e dos atos de delinquência que observamos, vem de pessoas que são estrangeiras, seja em situação irregular, seja esperando documentos de permanência”. Ele não apresentou dados a respeito, mas a declaração foi suficiente para inflamar ainda mais o discurso xenófobo da extrema-direita francesa.
Isso me lembrou um governador indiano que bebeu água de um rio “sagrado” da Índia para provar que ela não estava contaminada e foi parar no hospital.
Lembro que nas olimpíadas tem corrida com obstáculos, agora, natação com obstáculos é novidade. Macron vem pra inovar.
Meu caro Matheus, virei francesa alguns dias antes das eleições e votei domingo. Lendo seu texto, me lembrei de todos os anos de xenofobia. Só quem teve que pegar uma fila de titre de séjour sabe o que você está realmente tendo que passar! Desejo a você muita paciência! ❤️