[🏴☠️ Medo e Delírio #4] O mais literário dos esportes
Quando escritores decidem golpear não apenas suas máquinas de escrever.
🗣 Oferecimento:
A 4ª edição de 🏴☠️ Medo e Delírio é um oferecimento de Scrivener, o software que orgulhosamente utilizo para escrever meus livros ✍️.
🎧 Para ler ouvindo1: Hurricane, por Bob Dylan.
✍️ Por Matheus de Souza
26 de julho de 2024
PARIS, FRANÇA
1.
Durante a minha pré-adolescência, época esquisita da vida em que não nos sentimos mais crianças mas ao mesmo tempo ainda não somos adolescentes, meus colegas de classe me chamavam carinhosamente de Anão; e vez ou outra de Anão Cabeçudo – além de baixinho eu era franzino, o que fazia minha cabeça parecer desproporcional ao resto do corpo (juro que era isso).
Meu passado como Anão fez com que eu nunca me interessasse por lutas, tinha aquele medinho de apanhar – e certamente apanharia –, achava tudo muito sem graça e violento, de modo que por muitos anos esporte para mim foi sinônimo de futebol e Flamengo.
2.
Pouco antes do meu aniversário de 35, em maio deste ano, comecei a treinar boxe. Nos últimos anos, devido ao meu então estilo de vida nômade e a falta de disciplina (“quem quer dá um jeito!”), tornei-me uma pessoa sedentária, daquelas que sente-se ofegante ao subir um lance de escadas. Algo precisava ser feito para que comentários como “Ele era tão novo!” ou “Uma pena! Eu adorava a newsletter dele” não inundassem meu perfil no Instagram.
Nessa fase da vida, em que os 20 são apenas uma memória distante e os 40 já batem na porta, um esporte individual parecia a melhor escolha, uma vez que conforme vamos envelhecendo fica ainda mais difícil juntar uma turma para jogar futebol – e não tenho mais idade e paciência para jogadores reclamões; “Vai tomar no c*!!! Eu estava livre!!! Por que você não tocou?! Arrombado do caral**!!!” –, de modo que em um primeiro momento pensei em jogar tênis, mas desisti rapidamente da ideia porque não queria nada que envolvesse bolas, até que fui digitalmente influenciado por uma produtora de conteúdo que também mora em Paris e faz aulas de boxe com um professor brasileiro.
Exceto por uma ou outra luta do Popó e o embate histórico de 1997 entre Evander Holyfield e Mike Tyson – por anos o protetor de tela do meu 486 com Windows 95 foi uma animação de uma orelha e uma boca lutando boxe –, devo dizer que essa nobre arte nunca esteve presente na minha vida.
3.
Três meses após a primeira aula perco aquele sentimento de acho que isso não é para mim, os golpes agora saem de forma automática, não preciso pensar no que é um jab, um direto, um cruzado ou um upper, tenho confiança e um recém-adquirido condicionamento físico que me permite acertar uma sequência de seis, oito, até dez golpes sem parar, movimentado-me de um lado para o outro do ringue – o coreto da Place Dupleix no 15º arrondissement de Paris –, a guarda sempre alta. A defesa ainda precisa ser melhorada. Consigo bloquear e até antever alguns socos, mas tenho dificuldade com a esquiva e com golpes no corpo – por instinto acabo tentando defender com um tapa, quando na verdade deveria usar mais os cotovelos; a cabeça sabe disso, mas o corpo ainda não aprendeu; uma hora vai.
4.
As Regras do Marquês de Queensberry, elaboradas em 1865 e publicadas em 1867 por John Graham Chambers, um esportista e grande entusiasta do boxe amigo de John Douglas, o 9º Marquês de Queensberry, deram início à base do que hoje se chama de pugilismo moderno.
A 4ª Regra diz o seguinte:
“Caso um pugilista seja derrubado, será aberto uma contagem de 10 segundos, para que ele possa se reerguer, sem nenhum auxílio de outra pessoa. Enquanto isso, o outro pugilista deverá aguardar em seu canto, até que seu adversário esteja novamente de pé e apto a continuar o combate. Caso o pugilista caído não consiga se levantar dentro dos 10 segundos, caberá ao árbitro encerrar a luta e dar a vitória ao pugilista que aplicou o nocaute.”
Em 14 de setembro de 1923, o campeão mundial dos pesos-pesados, o estadunidense Jack Dempsey, desafiou o enorme argentino Luis Ángel Firpo, “El Toro de las Pampas”, no antigo estádio de beisebol Polo Grounds, em Nova York.
El Toro foi derrubado sete vezes por Dempsey antes de, em uma sequência de golpes, ejetar o estadunidense para fora do ringue com um cruzado de direita. Dempsey, que foi ajudado a voltar ao ringue, contrariando as Regras do Marquês de Queensberry, acabaria nocauteando El Toro no segundo assalto, para a enorme comoção dos argentinos que ouviam a luta no rádio, dentre eles um garotinho chamado Julio Cortázar, que anos mais tarde diria que aquela “foi a nossa noite triste; eu, com os meus nove anos, chorei abraçado ao meu tio e a vários vizinhos ultrajados em seu patriotismo”.
Em uma de suas palestras, já consagrado como o autor de O jogo da amarelinha, Cortázar faria uma comparação entre a literatura e o boxe:
“É verdade, na medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua, desde as primeiras páginas. Não se entenda isso demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto, e muitos dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, estão minando já as resistências mais sólidas do adversário. (…) O contista sabe que não pode agir acumulativamente, que não tem o tempo por aliado.”
5.
Cortázar não é o único grande nome da literatura que adorava boxe; Jack London, Ernest Hemingway e Norman Mailer também eram fãs da nobre arte; e inclusive subiram ao ringue algumas vezes.
Mailer tenha sido talvez o autor do melhor livro já escrito sobre o tema.
Em 30 de outubro de 1974, Muhammad Ali enfrentou George Foreman em Kinshasa, no Zaire (atual República Democrática do Congo), em um duelo que ficou conhecido como “a luta do século”.
Em A luta, obra que tornaria Mailer um dos expoentes do jornalismo literário, o autor narra o clima dos bastidores, acompanha os treinos de Ali e Foreman, as impressões dos treinadores, as entrevistas, todo o ambiente da luta em uma reportagem que até hoje é considerada como uma das melhores já escritas sobre o mundo esportivo.
Quem também esteve por lá e poderia ter escrito algo histórico sobre essa aventura no coração das trevas2 foi Hunter S. Thompson, o pai do jornalismo gonzo que, ao ser enviado ao Zaire pela revista Rolling Stone para cobrir a luta, preferiu ficar fumando uma tal erva ilegal na piscina do hotel e não assistiu o embate – provavelmente uma tentativa de replicar Medo e delírio em Las Vegas que, dessa vez, não foi bem sucedida3.
6.
Além da saúde, tenho um outro bom motivo para ter começado a treinar boxe: a cobertura das Olimpíadas de Paris.
A newsletter Passageiro é um veículo de uma pessoa só4, de modo que tive que escolher minhas lutas (não resisti!), ou seja, na prática isso significa que sozinho não consigo cobrir todos os esportes.
O boxe parece estar de volta aos holofotes principalmente por conta de influenciadores como Jake Paul e Whindersson Nunes que tem desafiado figurões do esporte – o estadunidense vai enfrentar Mike Tyson no final do ano e o piauiense levou uma coça do Popó. E foi Whindersson, inclusive, que abriu meus olhos para algo.
Em uma entrevista para um podcast, Lil Whind conta que não tem a pretensão de tornar-se um pugilista profissional, mas que o fato de lutar boxe tem lhe ajudado a ser um artista melhor; ele diz, por exemplo, que não precisaria de um dublê para interpretar um boxeador no cinema.
Com a escrita funciona igual. A luta, de Mailer, é considerada até hoje como uma das melhores reportagens já escritas sobre o mundo esportivo não apenas pelo talento de Mailer com as palavras, mas porque Mailer era um escritor que lutava boxe; ele sabia sobre o quê estava escrevendo; as mesmas mãos que datilografavam o texto eram capazes de acertar uma sequência de jab, direto, cruzado e upper; seis, oito ou até dez vezes sem parar; e com a guarda sempre alta.
🥊 Boxe nas Olimpíadas
Paris 2024 pode ser a despedida do boxe das Olimpíadas – que quase ficou fora dessa edição. A Federação Internacional de Boxe está afundada em polêmicas e casos de corrupção e, por ora, o esporte está fora de Los Angeles 2028 – ainda que a decisão possa ser revertida.
Para se diferenciar do boxe tradicional, o boxe olímpico é disputado apenas por pugilistas amadores e segue regras específicas para garantir a integridade dos atletas. É obrigatório, por exemplo, o uso de equipamentos de proteção, como protetores bucais e genitais. Confira as regras e as diferenças aqui.
O boxe foi o carro chefe do Brasil nas Olimpíadas de Tóquio e nossos(as) atletas chegam em Paris com grandes chances de medalhas. Beatriz Ferreira é favorita ao ouro na categoria até 60kg.
Muhammad Ali, na época ainda conhecido como Cassius Clay, levou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Roma em 1960.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Referência ao livro de Joseph Conrad que, inspirou, entre outros, nosso grande Anthony Bourdain.
A matéria de Hunter S. Thompson sobre “a luta do século” nunca foi publicada, mas anos depois ele se redimiria ao entrevistar Muhammad Ali em um quarto de hotel em Nova York. Leia aqui (em inglês).
Inspirado principalmente pela CazéTV e pelo Podpah, tenho pensado muito em formas de crescer a newsletter para, quem sabe, um dia contratar colunistas; contratar mesmo, quero pagar pelo trabalho de escritores; e bem mais do que R$ 100 por texto…
Eu amo jogar tênis, mas, assim como você, identifiquei a necessidade de começar a praticar um esporte que dependa apenas de mim. Sendo assim, em fevereiro desse ano, fui pra rua correr.
Semanas atrás consegui fazer minha primeira corrida de 10km. Foi realmente um momento de superação e alegria. Admito que fiquei orgulhoso de mim. Três dias depois fui fazer um treino de 5km e uma partezinha safada da minha mente pensava "depois de 10km, os 5 de hoje serão moleza". No segundo quilômetro eu já estava morrendo.
Um dos grandes aprendizados do esporte é que ele nos coloca em nosso lugar. Nada ensina tanta humildade quanto estar sofrendo pra completar um treino de corrida. Faz lembrar que cada passo importa, seja para 100 metros ou para uma maratona.
Creio que isso valha para a escrita. Deve ser lindo completar um belo romance de 1000 páginas, mas nocautear o leitor com 5 laudas é uma tarefa tão difícil quanto.
Forte abraço, Matheus.
Muito legal a edição, e fiquei genuinamente feliz qdo vi o oferecimento do Scrivener! Sucesso, Matheus!