[Passageiro #103] O distante perde distância quando se vai lá
Os lugares mais longínquos são aqueles onde nunca se esteve.
🎧 Para ler ouvindo1: Back in the Game, por Mark Pritchard (feat. Thom Yorke).

✍️ Por Matheus de Souza
📍 Bangkok, Tailândia
Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
“Logo a partir das primeiras páginas escritas, comecei a sentir que deveria regressar à Tailândia”, escreve o português José Luís Peixoto n’O caminho imperfeito, obra que inicia na leitura de uma estranha notícia de um jornal tailandês: a tentativa de envio de partes de corpos humanos pelo correio – a cabeça de um bebê, o pé direito de uma criança, pedaços de pele tatuada e o coração de um adulto.
O romance que estou escrevendo, motivo principal de meu regresso à Tailândia, também inicia na leitura de uma estranha notícia de jornal um tailandês: o corpo de uma viajante belga é encontrado em Koh Tao parcialmente comido por lagartos-monitores2; isso aconteceu em 2017, mas só fui saber da história em 2020; foi em 2020, mais precisamente em 11 de abril de 2020, que comprei O caminho imperfeito3 em meu Kindle.
Eu estava na Tailândia em 11 de abril de 2020. Talvez Há algo de podre no reino da Tailândia, o meu romance, tenha iniciado aí; ou em 2017, não quando o corpo da viajante belga parcialmente comido por lagartos-monitores foi encontrado, isso como vocês sabem agora eu só saberia depois, mas 2017 na primeira vez em que estive na Tailândia; se não tivesse viajado para o país em 2017 e gostado tanto do que vi, não retornaria em 2020, provavelmente não compraria O caminho imperfeito em 11 de abril de 2020, não teria a ideia do romance, não estaria escrevendo essas linhas; não estaria, mais uma vez – a quinta –, na Tailândia.
2.
Peixoto continua:
“Era como se as palavras possuíssem magnetismo, atraíam aquilo a que se referiam. Eu escrevia ‘tom kha kai’ e sentia vontade de encher uma colher de caldo de tom kha kai – o cheiro a coco, o sabor branco do picante –; escrevia ‘trânsito’ e mergulhava a cabeça na Silom Road – a temperatura, os ruídos, os tamanhos dos dias –; escrevia ‘rio’, ‘mercado’, ‘templo’: escrevia ‘Phra Maha Suwan Phuttha Patimakon’; escrevia ‘Bangkok’ e enlouquecia por segundos.
Talvez esse magnetismo fosse uma desculpa, um engano dos sentidos. Em comparação com a sala nua onde estava fechado, a Tailândia era açúcar.”
Os lagartos-monitores, assim como o primo famoso, o dragão-de- komodo, são répteis necrófagos, ou seja, alimentam-se de restos orgânicos; foi o cheiro da carne em decomposição da viajante belga que atraiu os lagartos-monitores.
A cada vez que escrevia “lagarto-monitor” ou pensava em um lagarto-monitor, lembrava do coração acelerado nas vezes que avistei um bicho da espécie, lembrava das vezes em que, a bordo de uma motinho envenenada, tive que desviar de um dos grandes que costumava descansar numa ruazinha que dava acesso ao Airbnb da época em Koh Phangan. A cada vez que escrevia “lagarto-monitor”, perguntava-me se o réptil necrófago cruzaria mais uma vez o meu caminho; relembrava o olhar intimidador, a pele grossa e escamosa, as garras longas, a língua bifurcada.
3.
Na cultura tailandesa, acredita-se que os lagartos-monitores trazem má sorte4. A presença desses répteis necrófagos em cemitérios, onde vez ou outra desenterram corpos recém-enterrados para comer, seria o principal motivo da antipatia – os tailandeses acreditam que, ao fazer isso, os lagartos-monitores desrespeitam os espíritos.
Para este escritor, no entanto, encontrar um lagarto-monitor significa sorte; significa estar na Tailândia.
4.
É perto do meio-dia quando saio da casa-museu de Jim Thompson5, um complexo com seis antigas estruturas de teca localizado na beira de um dos vários canais de Bangkok. Procurando meus próximos passos no Google Maps, encontro uma feirinha. Preciso comprar frutas e verduras. O aplicativo traça uma rota a pé e indica que em 11 minutos estarei no meu destino.
Não boto muita fé no caminho traçado pelo Google Maps, um emaranhado de becos estreitos cercados de concreto, algo parece estar errado, mas sigo, sigo pelas entranhas de uma Bangkok que desconheço, que poucos turistas devem ter conhecido.
Chego a uma outra parte do canal e avisto uma estrutura do que parece ser uma pequena palafita. Um grupo de mulheres de diferentes gerações conversa e ri alto. Fico mais tranquilo ao avistar essas mulheres. Uma delas, a que aparenta ser a mais velha, me dá “oi” em inglês – respondo em tailandês (“sawadee krap”) para ganhar a simpatia do grupo.
“Onde você está indo?”
“Na feira.” – tento pronunciar o nome do local.
“Venha até aqui.” – a mulher aponta para uma pequena ponte que atravessa o canal.
Mostro meu celular à ela.
“Ahh, é para o outro lado. Vem comigo, vou te mostrar o caminho.”
“De onde você é?”– uma das adolescentes pergunta.
“Do Brasil.”
“Ohh, Brasil? Você está bem longe de casa.”
“O distante perde distância quando se vai lá. Os lugares mais longínquos são aqueles onde nunca se esteve.
Quando já se foi a um lugar, mesmo que seja preciso atravessar o planeta, fica a saber-se que é possível fazer esse caminho. Deixa de pertencer ao desconhecido sem detalhes, ganha formas imprevistas. Há vida lá como há vida aqui.”
José Luís Peixoto em O caminho imperfeito.
5.
Encontro a feira. Compro o que preciso. Bananas, maçãs, brócolis, milho, cenouras.
Sem nenhum compromisso em vista pelas próximas horas, perco-me propositalmente entre os canais, tento encontrar histórias, tento fotografar; vejo um farang6 grafitando um muro, um barco passa em alta velocidade e espirra água em minhas pernas, um tailandês surge pilotando uma motinho no que claramente não é uma estrada.
Entro num beco longo e enxergo no horizonte o que parece ser uma avenida. Decido seguir. Vejo um cachorro de rua, porte médio. Ele me vê e mostra os dentes. Ergue as orelhas. “Vai me atacar”, penso. Olho para trás. Estou na metade do caminho entre o ponto de onde vim e a avenida. Correr seria imprudente. Dou as costas e tento voltar calmamente, como se não o tivesse visto. Escuto o cachorro correndo. Escuto o latido de um segundo cachorro. “Eles me farão em pedacinhos, morrerei atacado por cachorros num beco em Bangkok”, é o que penso, os cachorros se aproximam, ofereço minhas sacolas para eles cheirarem numa tentativa de selar a paz, eles parecem se acalmar, olham para frente, levantam as orelhas, um deles solta um gritinho, quase um choro.
Os cachorros batem em retirada. Aliviado, olho ao redor e vejo um enorme lagarto-monitor vindo em minha direção.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
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Estou lendo Especulações cinematográficas, livro de Quentin Tarantino sobre cinema, filmes que marcaram sua juventude e memórias pessoais do aclamado diretor.
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Você sabia que a newsletter Passageiro tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
No romance que estou escrevendo, esse evento aparece de forma ficcionalizada; tenho compartilhado o processo criativo de Há algo de podre no reino da Tailândia com os assinantes pagos da newsletter; conheça os planos.
Na primeira edição desta Passageiro, publicada em 28 de outubro de 2022, já com um exemplar físico e autografado de O caminho imperfeito em mãos, conto como roubei o formato de Passageiro (o livro; um dia sai) e da própria newsletter da obra de Peixoto; aparentemente, meu romance tailandês não é a primeira vez em que me inspiro no autor português.
“Hia” (“เหี้ย”), a palavra tailandesa para “lagarto-monitor”, é considerada uma ofensa. Das pesadas.
Ex-militar estadunidense que tornou-se o Rei da Seda Tailandesa e sumiu misteriosamente nas montanhas da Malásia em 1967 – e merece uma edição da newsletter só pra ele.
“Farang” é o nome que os tailandeses dão para os “gringos”.
quem foi que disse que lagarto-monitor dá azar mesmo?
Te ler é um passeio, Matheus. O livro vai brilhar!