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Para ler ouvindo2: Clandestino, por Manu Chao.
1.
"Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.”
Amyr Klink em Mar sem fim.
2.
Em Israel não carimbam seu passaporte. Te dão um cartãozinho azul que você deve guardar e apresentar na imigração quando for embora. O motivo é que muitas nações árabes e muçulmanas não mantém relações diplomáticas com o país, o que poderia dificultar a vida de viajantes estrangeiros com o carimbo israelense em seus passaportes. Com meu cartãozinho azul em mãos, peço um Uber no Aeroporto Internacional Ben Gurion com destino ao número 13 da rua Ha-Yarden em Tel Aviv.
O motorista pergunta se estou de férias. Não estou. Pergunta se estou na cidade a trabalho. Também não; não do jeito tradicional, pelo menos. Pergunta se conheço alguém em Tel Aviv. Nope. Pergunta o que faço da vida. Sinto vontade de enforcá-lo com o cinto de segurança, mas talvez ele seja praticante de krav maga e as coisas acabem mal para mim. Respondo que sou escritor. Ele quer saber sobre o quê escrevo. Me vejo obrigado a entrar em um papo chato sobre nomadismo digital e LinkedIn. Ele gosta. Me conta que investe em criptomoedas e que está em busca da the next big thing. Todos estamos, penso. Fala sobre como Tel Aviv será o novo Vale do Silício. Olho novamente para o cinto de segurança. “Você chegou ao seu destino”.
3.
Os guias sobre escrever bem pregam que devemos cortar os adjetivos, mas são vários os que tenho para Tel Aviv: vibrante, cosmopolita, moderna, colorida, apaixonante. Os mesmos guias também incentivam o uso de metáforas: sua orla é um coração que não para de bater (ok, essa não foi muito boa). Vamos tentar uma analogia: em Tel Aviv o meme “um pouco de salada, um pouco de droga” é levado a sério; locais seguem uma alimentação kosher, mas usam haxixe (acho que isso não foi bem uma analogia, mas ok, a newsletter é minha).
A vida na praia é parte vital da cidade; são cerca de 300 dias de sol por ano e 14km de areia branca e água azul. As praias são para todos os tipos: tem a praia dos esportes, a LGBTQIA+, a dos cachorros (Tel Aviv tem o maior número de cachorros per capita do mundo) e a das mulheres religiosas de burkinis.
Após ser convidado por um jovem loiro de olhos azuis para completar um dos times em uma partida de vôlei (estou indo para Jerusalém, quem sabe amanhã), um outro jovem loiro de olhos azuis do grupo me ofere haxixe (não, obrigado). Um pouco de salada, um pouco de droga.
4.
No porto de Jaffa vejo pescadores tirando os peixes de suas redes. Lembro do meu avô, pai da minha mãe. Ele era pescador. Na loteria dos CEPs, foi pescador em Imbituba, Santa Catarina. Se, por um acaso, tivesse nascido em Tel Aviv, seria um pescador israelense; minha mãe seria uma professora de escola pública israelense; eu seria um escritor israelense.
Meu avô não era nascido quando Tel Aviv foi fundada, em 1909, mas seu pai sim; talvez meu bisavô pudesse ter nascido aqui. Na ocasião da fundação da cidade, um sistema de loteria foi utilizado para dividir a terra entre 66 famílias judias; ou seja, praticamente uma loteria de CEPs. A família Custódio (que sequer carrego o sobrenome) não é judia, mas poderia ter sido.
Tel Aviv é uma cidade jovem; Jaffa nem tanto.
A história do porto de Jaffa remete a vários milênios atrás; é tão velho que há uma menção no Antigo Testamento da Bíblia; o porto teria sido fundado pelo filho de Noé após o Dilúvio. A partir de 1950, Jaffa, chamada de Yafo em hebraico, foi incorporada a Tel Aviv; por isso até hoje o nome oficial da cidade é Tel Aviv-Yafo.
5.
Pego o ônibus para Jerusalém e publico nos stories do Instagram uma foto contando dos meus planos de viagens.
“Você não se sente mal por estar em um país que faz o que faz com os palestinos?”, uma agora ex-leitora pergunta nas DMs.
Lembro do filme Uma garrafa no mar de Gaza, baseado no livro de mesmo título da autora francesa Valérie Zenatti.
“Fale-me sobre a França”, diz Naim, um jovem palestino que se esquiva de mísseis israelenses em Gaza. “Isso vai me fazer sonhar”.
Naim, que tem 20 anos, está em uma lan house trocando e-mails com Tal, uma garota de 17 nascida na França, mas que vive em Jerusalém desde criança; eles nunca se conheceram pessoalmente e passaram a se comunicar por e-mail depois que Naim encontrou uma carta de Tal dentro de uma garrafa na praia de Gaza; a partir daí, percebem que tem muito mais em comum do que imaginam.
O jovem palestino sonha com a França, mas no dia a dia não há muito com o que sonhar; ele precisa conviver com os bloqueios de Israel, a eletricidade que vem e vai, a mãe viúva que trabalha longas horas em um hospital lotado e uma cidade que é uma prisão a céu aberto.
Naim e Tal são jovens como outros jovens do mundo, como os jovens de Imbituba ou de São Paulo, com os mesmos sonhos, mas nasceram em CEPs diferentes na loteria da vida; e por isso foram ensinados a se odiar; embora nunca tenham visto o outro lado dos seus muros.
6.
“A mala então é aberta (procuram material proibido, como bebidas alcoólicas) e o passaporte é retido até que um fixer chegue com uma autorização previamente protocolada no Ministério do Interior. Sem a autorização, assinada pelo governo do Hamas, a entrada em Gaza é impossível”.
em Qualquer lugar menos agora, livro com crônicas de viagens em que o autor nos conta como entrar (e sair) de Gaza.
Não me preparei para uma viagem à Gaza, assim como não me preparei para uma viagem à Coreia do Norte quando estive na do Sul. Em outros territórios palestinos, como Belém, cidade onde supostamente nasceu Jesus, o acesso é facilitado; embora não recomendado sem um guia turístico. E aí tem Jerusalém.
Além de outras complexas questões muito bem explicadas pela BBC Brasil sobre o confronto entre israelenses e palestinos que já dura sete décadas, uma das diferenças irreconciliáveis entre os dois povos é Jerusalém: Israel reivindica a soberania sobre a cidade (sagrada para judeus, muçulmanos e cristãos) após tomar a parte Oriental em 1967 e afirma que essa é a sua capital; o que não é reconhecido internacionalmente. Os palestinos, por outro lado, afirmam que Jerusalém Oriental, onde está o Muro das Lamentações – lugar de peregrinação mais importante para os judeus – é, na verdade, a capital da Palestina; que não é reconhecida oficialmente como Estado por todas as nações do globo.
Alheio ao complexo confronto, ando a esmo por Jerusalém Oriental. Vejo o estúdio de tatuagem mais antigo do mundo, da Família Razzouk, aberto desde 1300 (você não leu errado, eles estão na 27ª geração de tatuadores; poderia ser a família Custódio, mas meus antepassados nasceram todos em Imbituba), subo até o Monte do Templo, me perco pelas Muralhas da Cidade Velha.
Na parte Ocidental, me sento em uma lanchonete qualquer para comer um kebab. Na mesa ao lado, um casal recém-saído da adolescência divide uma refeição. O rapaz usa roupas de skatista, bermuda larga, camiseta da Trasher; a garota está fardada com o uniforme das Forças de Defesa de Israel e seu fuzil descansa apoiado na parede. São crianças.
7.
“Na manhã de uma quinta-feira de Ramadã, chego ao bairro de Shujaiyeh. Nas ruas empoeiradas vejo dezenas de crianças brincando entre destroços em ruas de terra batida. Não parece que estamos sitiados, e sim num conto de fadas distópico. O fixer diz: ´Vê quantas crianças? É gente demais pra eles apagarem.’ Um milhão e oitocentas mil pessoas numa tripa de quarenta quilômetros de comprimento, pra ser mais exato.
J.P. Cuenca em Qualquer lugar menos agora.
J.P. Cuenca escreveu essa crônica em julho de 2015. Hoje são mais de 2 milhões de pessoas vivendo na Faixa de Gaza, onde a média de idade da população é de 17 anos; um pouco mais novos que a garota fardada que vi em 2019 em Jerusalém Ocidental, mas da mesma idade de Tal, a personagem fictícia de Uma garrafa no mar de Gaza que teve a sorte de nascer do outro lado do muro.
Minha opinião sobre a guerra?
Que, como todo guerra, ela não faz sentido. Apenas torço que acabe logo e que as novas gerações de palestinos e israelenses não nasçam se odiando porque os mais velhos não conseguem resolver as suas diferenças através do diálogo.
O contexto era outro, mas foi mais ou menos isso que respondi para a ex-leitora em 2019; ela não quis dialogar.
8.
Quando li que os procedimentos burocráticos para sair de Israel demoravam mais do que a própria entrada, achei que era papo furado; um blog de viagens recomendava que os viajantes chegassem ao Aeroporto Internacional Ben Gurion com pelo menos 4 horas de antecedência quando fossem deixar o país; felizmente segui a dica.
Antes mesmo do raio-x, sou colocado em uma fila com outros viajantes suspeitos; eu viajava sozinho na época, isso não ajuda muito. Uma funcionária do aeroporto me diz, de forma extremamente educada, que fará algumas perguntas para a minha própria segurança. Ela quer saber se eu mesmo fiz minha mala, se tenho amigos em Israel, se tenho amigos árabes, se estive em território palestino. Jerusalém conta?, penso, mas não digo. Mostro meu cartãozinho azul (informação extremamente útil para viajantes: nem pense em perder esse cartãozinho azul) e passo por uma revista até finalmente ser liberado para seguir viagem. Um homem precisa viajar.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
Precisamos ter opinião sobre tudo?, pergunta o The Summer Hunter no Instagram.
Anthony Bourdain esteve em Jerusalém e em Gaza no primeiro episódio da segunda temporada de Parts Unknown; assista o episódio na íntegra no YouTube com legendas geradas automaticamente em português.
Conversei com o ESTADÃO sobre o período em que vivi uma vida nômade (2017-2023) e concluí o óbvio: você não precisa viajar o mundo para ser feliz; embora eu tenha sido muito feliz fazendo isso. Caso você não seja assinante do jornal (imagino que não seja, né?), pode ler sem paywall no Terra.
Também no Terra você pode ler esse meu texto com 10 curiosidades sobre a Macedônia do Norte.
E, falando em Macedônia do Norte, sempre que assisto esse vídeo do Gogol Bordello tocando Pala Tute no Sziget Festival, tenho vontade de colocar uma mochila nas costas e viajar pelo Leste Europeu (aí eu lembro que já fiz isso mais de uma vez).
O álbum Clandestino do Manu Chao me dá vontade de viajar de carona pela América Latina e gastar o meu espanhol (isso eu nunca fiz, mas aí eu olho para o meu sofá…).
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✍️ Notas de rodapé
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Estava acompanhando um fotógrafo palestino, chamado Motaz Azaiza. Inclusive, a conta dele foi derrubada. Mas vendo aquelas imagens da guerra me senti constrangida de estar viva na minha casa. É um sofrimento e uma violência absurda.
muitas guerras sem sentido, puxa imagine uma populacao na media de 17 anos de idade! Loucura nascer para morrer desse jeito... que seja possivel o dialogo e a conciliação... Espero um dia poder visitar Israel e que seja mais livre do que nunca <3