[Passageiro #53] O fim do nomadismo digital?
Passagens aéreas e hospedagens cada vez mais caras, profissionais obrigados a voltar para o escritório, vagas remotas escassas; o sonho acabou?
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Para ler ouvindo2: Dripping Sun, por Kikagaku Moyo.
1.
Eu estava em Chiang Mai, norte da Tailândia, sentado na traseira de um songthaew, uma camionete vermelha adaptada que funciona como táxi, quando ouvi falar pela primeira vez em Koh Phangan.
— Estamos indo para essa ilha perto de Koh Samui. — o casal de australianos mostra a localização no Google Maps, como se aquele fosse o mapa quase secreto do personagem de Leonardo DiCaprio na adaptação cinematográfica do livro The Beach.
— E como eu chego lá?
— O jeito mais barato saindo de Chiang Mai é pegar um ônibus até Hua Hin e de lá o ferry até o píer de Thong Sala. — mas não fale sobre a ilha para outros viajantes ou em breve Koh Phangan estará como Phuket ou Pattaya3.
Hoje eu percebo a ironia na fala do casal de australianos; isso foi em 2017.
2.
A trilha hippie (hippie/hippy trail, no inglês) foi uma rota popular entre jovens ocidentais nas décadas de 1960 e 1970 que, atraídos pela espiritualidade oriental e influenciados pelos Beatles, buscavam um escapismo das restrições sociais e políticas de seus países de origem em viagens de carona, ônibus ou trem regadas a drogas psicoativas.
A rota dos viajantes variava, mas, geralmente, começava na Europa Ocidental, muitas vezes na Inglaterra, e passava por países como Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia e Nepal, tendo como última parada a Tailândia, onde muita gente acabou fincando raízes.
A Revolução Iraniana e a invasão soviética no Afeganistão no final dos anos 1970 marcaram o fim do sonho hippie. Além dos conflitos, a instabilidade política na região fez com que países como Síria, Iraque e Líbano impusessem regras rigorosas para concessão de vistos, limitando as opções para os ocidentais que desejavam viajar até o Sudeste Asiático por terra.
3.
Joe Cummings, estadunidense que viajou pela trilha hippie nos anos 1970 e vive em Bangkok desde então, foi responsável pelo primeiro guia Lonely Planet sobre a Tailândia, publicado no início dos anos 1980. Ele esteve em Koh Phangan pela primeira vez em 1981, numa época em que a ilha ainda era desconhecida pelos turistas e o píer de Thong Sala, mencionado pelo casal de australianos em Chiang Mai, sequer havia sido construído.
“Lembro-me de ir para Chaweng. Havia apenas um punhado de lugares para ficar, construções simples de madeira e bambu com telhado de palha. Quando voltei, fiquei em Bophut por algumas noites e, na verdade, havia mais lugares para ficar. Havia meia dúzia em Chaweng e talvez uns dez em torno de Bophut, o grande centro”.
Cummings em entrevista para Brian Gruber, autor de Full Moon over Koh Phangan.
4.
O Lonely Planet, criado em 1973 pela irlandesa Maureen Wheeler e seu parceiro australiano Tony Wheeler, casal que havia se mudado para Sydney com apenas 27 centavos de dólar na conta após ter cruzado a trilha hippie até a Austrália, foi, ainda que sem querer, um dos grandes responsáveis pela criação do turismo em massa como conhecemos hoje. Na mesma entrevista citada acima, Cummings discorre sobre a imagem do Lonely Planet para os viajantes já nos anos 1990.
“Naquela época, o pessoal já estava cansado do Lonely Planet. (…) por mais aventureiro que eu fosse, havia muitas pessoas mais aventureiras e experientes. Eu estava sempre tentando descobrir os lugares mais novos e o pessoal dizia: ‘Ah, as pessoas estão te seguindo’. Eu estava tipo: na verdade, não. Estou seguindo a vanguarda, pessoas que nem vêm mais para a Tailândia. A vanguarda não vem mais aqui, esqueça. Eles foram para o Vietnã por um tempo, mas também não vão mais para lá.”
Cummings ainda jura de pés juntos que Alex Garland, o autor do clássico cult The Beach, teria tido a ideia para o livro na metade dos anos 1990 quando estava hospedado no The Sanctuary, um resort de difícil acesso criado por – adivinhem? – ex-viajantes da trilha hippie que fincaram suas raízes em Koh Phangan nos anos 1980.
“Um dos subenredos do livro é: ‘precisamos manter este lugar para nós mesmos, essa praia especial, sem mapas, sem guias’. Há várias referências a ‘isso não pode acabar no Lonely Planet’. Eu vi isso como uma reação ao Lonely Planet expondo demais o mundo. Portanto, precisamos manter os melhores lugares para nós mesmos, não deixando o Lonely Planet entrar. E é baseado em uma história real. Tenho uma lembrança vaga de estar no The Sanctuary no início dos anos 1990 e alguém da equipe me dizer que eles não queriam ser mencionados no Lonely Planet.
(…)
Quando li o livro The Beach, imediatamente pensei: Garland conhece essa história. Foi simplesmente inacreditável. Escrevi sobre isso no Lonely Planet. Eu soube imediatamente que aquilo era sobre o The Sanctuary, ainda que ele tenha exagerado, dramatizado e relocado a ilha geograficamente.”
5.
Estive em Koh Phangan em 2020, durante o início da pandemia, em 2022, durante a reabertura das fronteiras internacionais, e em 2023, já com a retomada da economia e as promessas de liberdade geográfica para trabalhadores remotos.
Como escrevi na Folha de S.Paulo em 2022, não me preocupando em esconder a ilha do resto do mundo, Koh Phangan tornou-se um dos destinos queridinhos dos nômades digitais.
Escrevi na época que:
É possível encontrar bangalôs na beira de paraísos idílicos com diárias a partir de R$ 80.
De volta à ilha exatamente um ano depois, me pergunto: onde foram parar esses tais bangalôs na beira da praia com diárias a partir de R$ 80?
A mata nativa de Koh Phangan tem sido derrubada dia sim e dia também para que novas acomodações possam ser construídas e disponibilizadas em plataformas como Airbnb e Agoda, mas os preços das diárias não param de subir.
O que os locais, os donos da terra, pensam? Estão felizes da vida. O turismo em massa, impulsionado pelos nômades digitais e por retiros de ioga e massagens tântricas, finalmente chegou em Koh Phangan que, como o casal de australianos previu em 2017, em breve será mais uma Phuket ou uma Pattaya.
6.
O aumento nos preços das acomodações não é exclusividade de Koh Phangan; viajantes (e moradores locais) têm sofrido com a bolha imobiliária em lugares antes considerados de baixo custo como Cidade do México, Buenos Aires e Istambul; em Lisboa houve até protesto contra os nômades digitais.
Muitos nômades brasileiros, aqueles que conseguiram manter os seus trabalhos remotos no pós-pandemia, têm trocado as viagens internacionais por destinos dentro do Brasil, mas aí chegamos em um novo problema: o preço médio das passagens aéreas em viagens nacionais entre janeiro e março deste ano foi o maior em um primeiro trimestre em mais de uma década: R$ 592,95.
Nas redes sociais, a impressão é a de que o nomadismo digital tornou-se uma pirâmide financeira: influenciadores fazendo o papel do Lonely Planet e dando dicas de viagens para vender seus cursos para pessoas que em breve farão elas mesmas o papel do Lonely Planet e darão suas próprias dicas de viagens para vender seus próprios cursos em um loop que aparentemente só encerrará quando os nômades tiverem povoado todas as acomodações disponíveis no Airbnb; da Cidade do México à Koh Phangan.
7.
— Ué, não foi você que escreveu um livro com o pretensioso título Nômade Digital: um guia para você viver e trabalhar como e onde quiser? Quanta hipocrisia.
Sim. E eu faria tudo de novo.
As viagens, o livro, os conteúdos nas redes sociais. Mas não sei se, hoje, o Matheus de 2017 teria condições financeiras para tornar-se um nômade digital.
O mundo agora é outro; e nunca esteve tão caro.
Hipocrisia é achar que não somos parte do problema e continuar nessa busca incessante por outros paraísos idílicos fora do alcance do turismo em massa que, em breve, serão reféns da própria fama; e se tornarão outra Koh Phangan; e outra Phuket; e outra Pattaya.
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Perdeu o workshop de ontem do Clube Passageiro sobre Como não desanimar e manter a constância em seus projetos?
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Novembro/2023: dia 30, 18h 🇧🇷, workshop Como criar uma newsletter de sucesso 💌;
Dezembro/2023: dia 14, 18h 🇧🇷, workshop LinkedIn para criadores 💼;
Janeiro/2024: dia 25, 18h 🇧🇷, workshop O processo de escrita de um livro de não ficção ✍️.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
Em 2022, contei no LinkedIn como Maya Bay, praia na Tailândia que serviu de locação para o filme The Beach, foi fechada por conta do excesso de turistas; que destruíram o ecossistema local.
Depois de Outras vidas que não a minha e Ioga, estou lendo O reino, de Emmanuel Carrère; o parisiense filho da put* é um gênio.
The Serpent, na Netflix, mostra a história real de Charles Sobhraj, serial killer responsável pelo assassinato de pelo menos 12 viajantes na trilha hippie nos anos 1970. Recentemente, Sobhraj foi solto.
Soco no estômago, também na Netflix, é uma série documental que mostra os crimes e a corrupção do conturbado submundo do muay thai.
Eu adoro o canal do
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🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Os nômades digitais são os novos hippies?
✍️ Notas de rodapé
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em bate-papos via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Assine com 30% de desconto para participar dos próximos workshops e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram.
Você sabia que a newsletter tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
Phuket e Pattaya seriam o equivalente a Cancún, no México; cidades de praia na Tailândia que foram absorvidas pelo turismo em massa e perderam a sua identidade local.
Faz tempo que não consigo parar para te ler com atenção. Hoje, com esse título super chamativo, não teve como: preciso voltar a ler sua newsletter religiosamente. Tenho pensado em virar nômade digital nesse 2023-quase 2024, mas começaria dentro do Brasil mesmo com passagens de ônibus e muitos sonhos. Como ser um jovem adulto pós-pandemia é caro, meu deus do céu. Nem tem conclusão nesse comentário, só reclamações mesmo. E acredito sim que nômades digitais são os novos hippies, com ainda mais força quando eles ganham em dólar/euro e o dinheiro deles vale MUITO fora dos países de origem. Um abraço pra você e Isadora :)
Fiz a leitura com a música indicada e viajei no seu texto. Fui passeando por todos esses cantos da Tailândia que você citou. O assunto em si, apesar de ser completamente fora da minha realidade, me fez sonhar acordada. Parabéns, Matheus. Você escreve muito bem!