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Para ler ouvindo2: Still, por Volcano Choir.
1.
Nos últimos cinco – ou talvez seis ou sete – anos, mas principalmente desde que meu livro Nômade Digital foi lançado, tenho sido convidado por jornais, podcasts e outras mídias para falar sobre esse tipo de vida em que supostamente se larga tudo para viajar o mundo enquanto se trabalha de forma remota.
É muito fácil falar sobre os prós do nomadismo digital; conhecer outras culturas; experimentar novos sabores; viver vidas que você jamais viveria se não fosse a internet; você não precisa ser rico para ser nômade digital, eu costumava repetir.
E aí, eventualmente, lá pro final dessas entrevistas, me perguntam sobre os contras.
Sempre escapei da questão de forma escorregadia, como uma cobra que se enfia no mato, quase que por uma espécie de vergonha de não ter um contra, porra, eu viajo pelo mundo trabalhando de forma remota, como pode ter um lado ruim nisso, de modo que ensaiei ao longo dos anos uma resposta sobre quem sente mais é quem fica, sobre aniversários e casamentos de amigos que costumo perder, sobre não criar raízes.
2.
Nenhum livro que li nos últimos anos me tocou mais do que O que é meu, de José Henrique Bortoluci.
“Neste ensaio biográfico de rara sensibilidade, que já teve os direitos vendidos para dez editoras estrangeiras, o sociólogo e professor José Henrique Bortoluci parte de entrevistas realizadas com seu pai, que durante cinquenta anos foi motorista de caminhão, para retraçar a história recente do país e da própria família. Por meio de uma prosa elegante e afetuosa ― que combina depoimentos e anedotas do pai e seus colegas com referências literárias e reflexões sobre o Brasil ―, capítulos marcantes de nosso passado e de nosso presente se revelam pelos olhos de um cidadão comum, que vivenciou a ditadura militar e seus delírios megalomaníacos, como a construção da Rodovia Transamazônica e as marcas violentas da chegada do suposto “progresso” ao interior do país”.
3.
Meu pai, que faz 75 anos em 2024, foi caminhoneiro por boa parte da sua vida.
Quando minha avó, mãe da minha mãe, morreu prematuramente em 1999 aos 60 e pouquinhos com as suas artérias entupidas pelo capitalismo tardio – doces e salgados que seus antepassados nunca experimentaram –, meu avô, o seu Arduino, o vô Dino, como apenas eu o chamava, passou a ser o companheiro de estrada do meu pai; uma espécie de Pedro & Bino; sogro e genro viajando juntos pelo Brasil a bordo de um caminhão.
4.
Vô Dino não era estudado, parou na quarta série para trabalhar na roça, nunca leu Kerouac ou Hemingway, mas como muitos homens da sua geração, uma geração sem internet, sem a porra do celular, cresceu um homem funcional; ergueu sua própria casa; moldou a sua canoa; o seu rancho; as suas tarrafas.
Agricultor, pescador, funcionário orgulhoso da Indústria Cerâmica de Imbituba – não sei como ele escreveria a sua bio no LinkedIn, mas acredito que seria por aí; hard ou soft skills?; para o vô Dino pouco importava; ele dava um jeito.
5.
Eu deveria ter uns dez anos, talvez menos, quando o vô Dino fez a minha primeira tarrafa.
6.
Em O que é meu, José Henrique Bortoluci faz algo meio raro na literatura: a biografia de um homem comum; seu Didi, o seu pai, é um homem comum como o meu pai, como o vô Dino; homens cujas histórias não costumam ser contadas em livros.
Eu gostava quando o vô Dino contava suas histórias da época de pescador – geralmente enquanto comíamos pirão com carne ensopada, sua especialidade. Essas histórias certamente dariam um livro; faltou alguém, talvez um neto escritor, entrevistá-lo.
Teve uma vez que, lá pelas 3h da manhã, segundo ele contava, na lagoa da Ibiraquera (ou do Mirim?), o vô Dino avistou labaredas no meio da água. Ele não sabia se era espírito, se era um monstro ou o quê, mas era real.
E tinha também as histórias sobre cobras; ele tinha pavor e evitava sequer chamá-las pelo nome.
7.
Quando eu tinha uns três ou quatro anos, escapei do ataque de uma cobra coral.
Eu estava brincando em frente à casa do vô Dino quando um negócio colorido passou por cima dos meus pés e seguiu seu caminho.
Dia desses sonhei com a mesma cena. O negócio colorido, no entanto, tinha o tamanho de um Gyarados. Lembro de ter ficado assustado, mas, assim como na infância, o bicho apenas seguiu o seu caminho.
– As cobras nunca mais vão te assustar. – alguém sussurrou.
8.
– Tem alguém que o senhor gostaria de ver que ainda não veio lhe visitar? – pergunta a enfermeira no leito de morte do vô Dino.
– Sim, mas mora muito longe. – ele responde.
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Que texto bonito. Final primoroso 💔
Era com orgulho que contava aos amigos e familiares que o visitavam. "Eu tenho um neto que só viaja para fora do Brasil." "Trabalha no computador." "Já escreveu um livro."
Ele amava demais os netos! Os bons momentos serão guardados na memória e no coração. Ele já descansa em paz!🙏🏻