[Passageiro #63] Memórias afetivas culinárias
Comida também é afeto; é memória; é identidade.
A newsletter Passageiro é gratuita e enviada sempre às terças-feiras, porém, ao assinar o Clube Passageiro1 você tem direito a benefícios exclusivos – incluindo workshops mensais e uma comunidade no Telegram para fazer networking e trocar ideia com outros produtores de conteúdo.
Para ler ouvindo2: Papikra, por Japanese Breakfast.
1.
“Desde que minha mãe morreu, eu choro no mercado H Mart”, escreve Michelle Zauner logo na primeira linha de Aos prantos no mercado, o livro de memórias da vocalista do Japanese Breakfast que ficou 56 semanas entre os mais vendidos do jornal The New York Times.
“Não é preciso conhecer nada de gastronomia para saber que a comida é uma das bases de nossa educação sentimental. Os ingredientes, os modos de preparo, a combinação de aromas, cores e sabores com as quais aprendemos a nos familiarizar compõem o repertório íntimo de cada um de nós. E é justamente esse poder de mobilizar o afeto que é evocado desde o primeiro parágrafo de Aos prantos no mercado. Nele, vemos a protagonista, que atravessa o luto pela morte precoce da mãe, liberando o pranto represado ao percorrer as prateleiras do mercado coreano H Mart em Nova York.
(…)
Nessas memórias, a autora relembra a culinária afetiva a fim de não se perder de si ao atravessar o luto. Ela passa horas assistindo aos vídeos de uma youtuber, compenetrada em reproduzir a alquimia das receitas coreanas. Isso atenua a angústia íntima de que seus traços caucasianos vão apagar a origem coreana, antes legitimada pela existência da mãe. E entre os expedientes da vida adulta, a protagonista descobre que o luto, a festa e a criação artística podem conviver intimamente na difícil tarefa de encontrar um lugar no mundo.”
2.
Não encontrei o vídeo, de modo que o que narro a seguir é uma memória provavelmente de 2011 – eu ainda morava com os meus pais –, mas lembro de certa vez ter assistido uma entrevista do ex-jogador Obina, aquele que era melhor que o Eto’o e foi ídolo do Flamengo, comentando sobre suas dificuldades alimentares após ter se mudado para a China; o baiano de Vera Cruz sentia falta principalmente da farinha de mandioca – e sempre que um familiar ou amigo o visitava no país asiático, pedia que trouxesse alguns quilos de farinha (o que sempre pode ser um problema em aeroportos internacionais justamente pela semelhança com outro tipo de farinha).
3.
A primeira vez que experimentei comida chinesa foi em Split, na Croácia. Hoje, sempre que como um yakisoba ou um rolinho primavera e tomo uma Tsingtao, lembro disso; e por extensão lembro do interior do restaurante de Split, da atendente chinesa mal humorada que costumava me atender, de pensar em como aqueles chineses tinham ido parar na Croácia, do caminho do meu Airbnb até o restaurante, do caminho do restaurante até a praia, do caminho de volta da praia até o meu Airbnb; do mercadinho do lado direto do meu Airbnb; da sede da torcida organizada do Hajduk Split do lado esquerdo do meu Airbnb; da vez em que tomei várias Karlovačko com os membros da torcida organizada do Hajduk Split no bar localizado entre a sede da Torcida (que realmente é o nome dela, assim em português; leia sobre aqui), o meu Airbnb e o mercadinho; do calor que fazia; era o verão europeu de 2019.
4.
Minha sogra passou um mês aqui em casa (para quem chegou agora na newsletter – foram algumas centenas de novas pessoas em janeiro –, o “aqui” é Paris).
– Minha mãe perguntou se tu queres que ela traga algo do Brasil. – diz I. com seu sotaque gaúcho.
– Farofa da Yoki e farinha de mandioca. É só o que eu quero.
– Tá bom. Também vou pedir umas trufas da Cacau Show.
Quem não chegou agora na newsletter já deve estar cansado de ler que entre 2017 e 2023 vivi uma vida nômade, que viajei por 30 países enquanto trabalhava de forma remota, aquela coisa toda, mas após decidir o tema da edição de hoje e escrever os primeiros parágrafos me toquei de duas coisas: 1) eu nunca fiquei tanto tempo longe do Brasil; saímos de São Paulo em novembro de 2022 logo após eu ter palestrado em um TEDx (cujo vídeo nunca foi ao ar e sempre levo ghosting quando cobro os organizadores; “vou checar o que houve”, me prometem vez ou outra; também me toquei disso agora) e 2) mesmo viajando pelo mundo enquanto não tinha uma residência fixa, sozinho ou na companhia de I., eu costumava passar alguns meses no Brasil todos os anos; 2023 foi o único ano da minha vida em que não passei um dia sequer no Brasil.
5.
Comida também é afeto; é memória; é identidade.
Desde 2017, quando estive na Tailândia pela primeira vez – voltei em 2020, 2022 e 2023; as quatro vezes somadas chegam a quase 12 meses no país –, decidi que a culinária tailandesa é a minha favorita no mundo.
Dia desses, comendo um pad thai de camarão em Paris, que por mais que o restaurante seja bom nunca será a mesma experiência de comer o mesmo prato na Tailândia, não senti saudades do camarão do Pum Pui, o meu restaurante favorito em Koh Phangan – que chego a citar no TEDx que infelizmente vocês ainda não podem assistir –, mas do camarão pescado pelo vô Dino e feito à milanesa pela Janete; a minha mãe; a filha dele.
Escrevo isso não aos prantos, como Michelle Zauner no H Mart, mas com um sorriso no rosto; e água na boca.
6.
“Comida é tudo o que somos. É uma extensão da sua história pessoal, da sua região, do seu bairro, da sua tribo, da sua avó. A comida é inseparável dessas coisas desde o princípio.” (Anthony Bourdain)
Há duas semanas recebi a notícia da morte do vô Dino.
Grande parte das lembranças que carrego dele envolvem comida; a carne ensopada com batata, a tainha – eu adorava a moela e a ova –, o pirão (d’água ou de feijão).
Ainda que eu não tenha tido a oportunidade de me despedir fisicamente do vô Dino, fico feliz em ter pedido farinha de mandioca para a minha sogra; meu pirão não ficou tão bom quanto o dele, mas, ainda que por um breve momento, a mistura da farinha brasileira com o feijão francês me levou de volta para os almoços em Imbituba.
🧳 Clube Passageiro
Perdeu o workshop de janeiro do Clube Passageiro sobre O processo de escrita de um livro de não ficção?
Sem problemas. A gravação ficará disponível até 29 de fevereiro de 2024.
Bastar assinar qualquer um dos planos do Clube Passageiro para assistir o papo e fazer parte da nossa comunidade no Telegram.
👨🎓 Cursos com inscrições abertas
✍️ Escrita Criativa
(apenas 12x de R$ 58,16)
Aulas gravadas; acesso vitalício. Informações aqui.
🎒 Escrita de Viagem
(apenas 12x de R$ 39,62)
Aulas gravadas; acesso vitalício. Informações aqui.
💼 Marketing Pessoal e Produção de Conteúdo no LinkedIn
(apenas 12x de R$ 89,52)
Aulas gravadas; acesso vitalício. Informações aqui.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Vale conferir essa entrevista que a Michelle Zauner concedeu para a Folha de S.Paulo sobre Aos prantos no mercado.
Aqui tem uns trechos do livro.
Também liberei uns trechos do meu livro novo para os assinantes pagos da newsletter – estão lá na comunidade do Telegram.
Como um escritor ganha dinheiro em 2024? Leia no LinkedIn.
Já escrevi sobre a saudade da comida brasileira na 47ª edição dessa newsletter.
Viagem de turismo tem sempre algo de ridículo e ilusório; gostei desse texto da Marilene Felinto na Revista Gama.
Quem participou do último encontro do Clube Passageiro sabe o quão obcecado fiquei com o livro O que é meu, do José Henrique Bortoluci. Muita gente me enviou o link do episódio da Rádio Novelo com o autor (que é ótimo), mas recomendo também esse do Histórias Diversas.
Um indiano abençoado colocou no YouTube todos os episódios de Parts Unknown, do Anthony Bourdain.
Pelo trailer achei que Irmãos Sun, da Netflix, era uma série estilo qualquer filme de artes marciais do Jackie Chan, mas eu estava bem enganado; que bom que apertei play. Uma dramédia viciante com Michelle Yeoh, vencedora do Oscar de Melhor Atriz em 2023 com Tudo em todo o lado ao mesmo tempo.
O Khruangbin está de volta e lançou um clipe lindo gravado na Tailândia (“khruangbin” significa “avião” em tailandês) para A Love International, primeiro single de A LA SALA, álbum a ser lançado em 05 de abril.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Qual a sua principal memória afetiva culinária?
✍️ Notas de rodapé
O Clube Passageiro é uma comunidade que se encontra uma vez por mês para papear sobre escrita, produção de conteúdo, monetização, livros e viagens – em bate-papos via Google Meet com duas ou mais horas de duração. Assine para participar dos próximos workshops e ter acesso ao nosso grupo fechado no Telegram.
Oi Matheus!
Comprei o seu livro recentemente e assinei a sua newsletter, tenho gostado muito dos seus textos.
Fiz uma viagem sabática ano passado e a Tailândia realmente tem o meu coração. Ler o seu texto e relembrar os pratos da culinária tailandesa me trazem uma enorme memória afetiva, assim como os de outros países que estive. A comida diz muito sobre os lugares mesmo.
Quanto ao seu avô, sinto muito! Sou de Santa Catarina e minha avó também mora em Imbituba, então esses seus últimos textos também me trouxeram memórias da infância na cidade.
Abraços!
Tive a oportunidade de participar do workshop de Escrita Criativa do Alberto Brandão - outro que eu chamaria de foodie, embora não sei se ele concordaria com a alcunha - e logo no primeiro exercício eu acabei por refletir muito sobre comida e seu significado.
Deixo aqui o texto porque acho que responde bem à pergunta.
Um dia eu descobri que tinha dois pais.
Aconteceu depois, ou talvez durante, a corrida eleitoral brasileira de 2018 - sim, aquela - quando eu percebi que, depois de mais ou menos 50 anos, o meu pai não parecia mais o meu pai.
O meu pai era, e ainda é, sob muitos olhares, um cara bacana. Foi meu primeiro exemplo de paternidade presente, antes que isto felizmente se tornasse uma tendência. E foi ele o meu cuidador principal por muitos anos, quando encontrou-se desempregado enquanto minha mãe segurava a barra.
Foi com ele que eu andei de metrô pela primeira vez. Que eu aprendi a teoria das cores e que o vermelho com amarelo virava laranja - e alguns anos depois, que ele tinha daltonismo.
Era ele também que preparava para nós dois, em uma churrasqueira elétrica improvisada de uma cozinha de apartamento, generosas peças de carne.
Um churrasco de envergonhar qualquer gaúcho, é verdade - mas que fez com que, sempre que eu provasse uma picanha, eu lembrasse do meu pai. Mesmo anos depois, desde que ele se tornou vegetariano e passou a limitar seu repertório churrasqueiro a abobrinhas e berinjelas.
Faço um churrasco sempre que quero me lembrar do meu primeiro pai.