[Passageiro #66] O uso da terceira pessoa
Autorretratos e autobiografias impessoais; e a eterna busca por identidade.
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Para ler ouvindo2: Tuareg, por Gal Costa.
1.
Em duas fotografias de corpo inteiro, uma feita às 15h44 e a outra às 15h45 do dia 15 de março de 2020, de acordo com o rolo de câmera do iPhone 11 Pro que comprou dias antes em Chiang Mai, ele aparece sozinho em um cruzamento de uma das principais avenidas de Bangkok. O asfalto molhado sugere que choveu mais cedo.
Na primeira imagem, ele está com a cabeça levemente apontada para baixo, os longos fios de cabelo cobrindo parte da face, o olhar no vazio. Na segunda, seu rosto está virado para a câmera e os fios de cabelo que antes cobriam parte da face agora estão acomodados atrás da orelha; podemos ver também sua barba desgrenhada e um olhar vazio; ele parece estar de ressaca. Está vestindo uma calça preta de poliéster com estampa de elefantes, dessas que são vendidas em qualquer loja de souvenirs da Tailândia – ele comprou a dele em uma feirinha em Chiang Mai –, uma camisa de linho branca com as mangas dobradas até os cotovelos e um tênis Vans Old Skool preto surrado. Quatro dias antes dessas fotografias terem sido feitas em um cruzamento de uma das principais avenidas de Bangkok, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia do novo coronavírus.
2.
Vagando pelos corredores do Petit Palais em Paris, encontro uma série de autorretratos de um rosto que não é me estranho. Presto atenção na forma da assinatura e resolvo o mistério: Gustave Courbet é o mesmo autor do quadro Homem desesperado (1843-1845) que citei na 33ª edição dessa newsletter.
Autorretrato com o cachorro preto (1842-1844), o quadro à minha frente, foi a primeira obra de Coubert a ser aceita por uma exposição. Nos anos seguintes, ainda pouco conhecido na França, Coubert seguiu com os autorretratos; ele ao lado de uma mulher; ele de perfil; ele de frente; ele de frente desesperado; ele fumando; uma forma de egocentrismo que parece testemunhar não um umbigo, mas uma busca de identidade.
“De um retrato para outro afirma-se a personalidade do jovem artista que constrói seu eu pela busca autobiográfica, bem como pelas viagens, pelas férias em Ornans e pela formação parisiense que se impõe no trabalho do estúdio e nas visitas aos museus”, diz um dos textinhos explicativos no Petit Palais.
3.
Quando esteve em São Petersburgo, em 2019, ele lembrou da capa da edição de bolso da L&PM de O retrato, o conto de Nikolai Gogol que traz o Homem desesperado de Coubert na capa.
Sempre que tem a oportunidade, ele diz que “São Petersburgo é a cidade mais bonita que já visitou”, fala dos palácios dos Romanov, da casa de Dostoiévski, do rio Neva e do Museu Hermitage, que “é um dos maiores museus de arte do mundo”.
Quando esteve na Rússia, ele usou um espelho do salão de festas de um dos palácios do complexo do Hermitage para fazer um autorretrato às 17h09 do dia 10 outubro de 2019. Seu rosto está escondido por um boné trucker que hoje ele se arrepende ter comprado, os fios de cabelo que aparecem por baixo do boné estão bem mais curtos do que aqueles das fotos de 15 de março de 2020 em Bangkok, o rosto está mais magro, ossudo, a barba está feita, seu iPhone é o 8, está usando fones de ouvido, provavelmente ouvindo Scott Walker, o artista que ele mais ouvia na época. Ele está vestindo uma blusa de lã (a jaqueta de frio ficou na chapelaria), uma calça skinny preta e um tênis Vans, não o Old Skool preto, mas um Authentic azul marinho, também surrado.
“Uma pena a guerra”, ele sempre comenta com a esposa quando relembra a viagem para São Petersburgo.
4.
Estou lendo Os anos, de Annie Ernaux, a “autobiografia impessoal” da vencedora do Nobel de Literatura em 2022.
O livro começa com uma frase forte (“Todas as imagens vão desaparecer”) e, a partir daí, costura descrições de fotografias e filmagens de Ernaux ao longo da vida, trazendo não apenas as experiências e o ponto de vista pessoal da autora, mas também o contexto histórico; algo que Joan Didion sempre fez muito bem em ensaios que capturaram o espírito da época; a diferença aqui, além de estilística, talvez esteja no uso dos pronomes – a narrativa de Ernaux nunca trata do “eu”, mas sempre do “ela” ou do “nós”; o último para se referir à sua geração; uma geração nova demais para se lembrar da Segunda Guerra Mundial e velha demais para protagonizar Maio de 68.
Ainda estou na metade da leitura e não li entrevistas da autora sobre a obra, mas me parece certo dizer que a opção pela terceira pessoa (do singular e do plural) passa não por uma busca de identidade, como nos autorretratos do seu conterrâneo Coubert, mas por um afastamento de quem ela, Ernaux, já foi.
5.
Hoje faz nove meses que me mudei para Paris. Mais do que a mudança, do que a nova vida como imigrante e tudo o que isso por si só carrega, ter fixado residência na França marcou o fim de um período de seis anos ininterruptos em que viajei pelo mundo trabalhando de forma remota sem ter um lugar para voltar.
O rótulo de “nômade digital”, de certa forma, definiu a minha identidade durante esse período; tanto no pessoal quanto no profissional; ô louco, bicho! Fiz amizades por causa do nomadismo; ganhei e gastei dinheiro por causa do nomadismo.
Conversando dia desses com um mentorado da Mentoria Monetize (ainda tenho uma vaga para esse semestre) que está construindo a sua linha editorial nas redes sociais para, em breve, monetizar o seu conhecimento, comentei que estou justamente reconstruindo a minha – chega de falar sobre nomadismo digital – e que, de certa forma, isso tem sido uma espécie de desenvolvimento pessoal; estou aprendendo a preencher o vazio que se foi com o rótulo.
6.
Comprei uma impressora usada em um grupo de WhatsApp de brasileiros em Paris; 20 euros, uma pechincha.
Ter uma impressora é o tipo de coisa que eu não podia fazer quando era nômade. Desde que comecei a escrever Passageiro, o livro, queria ter uma para imprimir o meu progresso semanal e ler o texto em voz alta para ir rabiscando aquilo que possa estar fora do lugar.
Relendo as primeiras 50 páginas do livro, percebo que o que mais tem me incomodado nessas memórias fragmentadas dos anos na estrada não é o texto em si, mas o uso dos pronomes; são eles, os pronomes, que parecem estar fora do lugar.
A cada parágrafo que leio tenho vontade de fazer como Annie Ernaux e trocar os “eus” por “ele”. Não reconheço o rapaz no cruzamento de uma das principais avenidas de Bangkok ou aquele outro tirando uma selfie em um espelho no Heritage; sei que esses outros “eus” nômades me trouxeram até aqui, mas não lembro (ou talvez não queira lembrar) deles. Talvez seja hora de começar a escrever uma nova história; em primeira pessoa; no presente.
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🐢 “Ele” é o Tiago e será o convidado especial em um workshop sobre Ferramentas para sair do bloqueio criativo exclusivo para os assinantes pagos da newsletter Passageiro. O bate-papo acontecerá na próxima quinta-feira (29), às 18h do Brasil – e ficará gravado.
“Eu crio reflexões visuais que ajudam pessoas a tirarem suas ideias do papel sem pirar durante o processo. Nem ‘vai lá e faz’, nem frases motivacionais: acredito em processos criativos que ajudam a gente botar a mão na massa – mas com empatia pelo que sentimos.”
Tiago por Tiago.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
O lugar é, até segunda ordem, o meu livro favorito da Annie Ernaux.
Li essa semana no Substack e gostei: O melhor sorvete da sua vida [por
], O carnaval de todos nós [por ] e Sobre a passagem do tempo (quando você mora fora) [por ].Expatriadas, série da Prime Video com Nicole Kidman que se passa em Hong Kong, é bem interessante.
Tô obcecado com a banda Glass Beams. É tipo Khruangbin, mas ainda mais misterioso. Vale ver/ouvir esse vídeo deles tocando a recém-lançada MAHAL.
Falando em Khruangbin, eles liberaram mais uma música de A LA SALA, álbum do trio texano que sai dia 5 de abril. Ouça May Ninth aqui.
🗣 Enquete aleatória para gerar engajamento
✍️ Notas de rodapé
Excepcionalmente hoje (não sei se ainda posso usar “excepcionalmente” porque em fevereiro todas as edições falharam com o cronograma), dessa vez por motivos de saúde (pensei que era Covid, mas está tudo bem), a newsletter está sendo enviada em uma sexta-feira.
Essa questão dos pronomes é um problema até em textos técnicos... claro que não se usa o "eu", mas há alguns que preferem a terceira pessoa simples (Fizemos em tal data....) e outros, a voz passiva (Foram feitos em tal data...). Dependendo da situação, ambos ficam bem estranhos no contexto... Creio que você terá muitas dúvidas com isso (eu teria) e talvez, terá que fazer uma escolha por um ou outro em algum momento. Sem olhar pra trás depois...rsrsrs
Lembrei de um colega que dizia ficar muito incomodado com o Pelé, pois ele sempre se referia a ele mesmo na primeira pessoa do plural. O que, convenhamos, lembra muito os reis franceses (Luises diversos) que se referiam a si mesmos como "nós"... será que em outros idiomas soa tão estranho assim?
1. dia 15 de março é meu aniversário 👀 sempre gosto quando aparece em um filme / série (aniversário do michael scott no the office) e, agora, newsletter
2. são petersburgo é linda demais mesmo! histórias boas do mês que passei por lá
3. pensar em celulares como forma de se guiar no tempo é um conceito engraçado para marcar temporadas da vida
4. pechincha é uma palavra excelente
5. vai ser um prazer trocar ideias com o pessoal do clube passageiro no dia 29!