[Passageiro #69] Jack Keroauc ainda merece ser celebrado
A velhice é inevitável; a morte também; um dia todos estaremos datados.
Para ler ouvindo1: Summertime, por Charlie Parker.
1.
14 de abril de 2013.
Depois de seis dias de temperaturas geladas na Alemanha, minha próxima parada será em Praga, na República Tcheca. Chego cedo à Estação Central de Dresden, observo os trens de carga carregando carvão e me pego pensando sobre o Brasil insistir no transporte rodoviário. Falta pouco mais de meia hora para o embarque. Compro uma cerveja qualquer e tiro da mochila On the Road, de Jack Kerouac, meu companheiro de viagem nas próximas duas horas até a capital tcheca.
O trem, que tem como destino final Bratislava, na Eslováquia, está praticamente vazio. Sento em uma cabine qualquer, dou um gole em minha Pilsner Urquell e fico deslumbrado com o visual. É primavera, mas ainda há neve no cume das montanhas e o verde da vegetação dá lugar a um amarelo quase marrom, proporcionando um clima de outono. A temperatura é agradável. Pela primeira vez desde que desembarquei no aeroporto de Frankfurt não uso luvas e cachecol. Às margens da ferrovia, o Rio Elba mostra a sua imponência. Vez ou outra avisto uma casinha. Em certo ponto vejo ruínas de um castelo medieval.
2.
O trecho acima, esquecido por anos em meus arquivos digitais, narra o início da minha jornada como escritor e viajante. Foi escrito em 28 de setembro de 2013 como uma espécie de entrada de um diário – que não mantive durante a viagem, mas que tentei escrever meses depois. São as primeiras linhas que escrevi após ter contato com o trabalho de Jack Kerouac; os dois primeiros parágrafos após eu ter colocado na cabeça que me tornaria escritor.
É estranho revisitar algo que escrevi há mais de uma década. O estilo era outro. Eu era outro. Ainda não havia sido contaminado por algoritmos, pelo Instagram e pelo Tik Tok, pelas trends, pelo SEO e suas palavras-chaves, o H1, o H2, as meta-descrições. Os parágrafos eram mais longos, as frases mais idílicas. Não havia público-alvo, gatilhos mentais ou funis de venda. O texto era cru. Ingênuo, mas honesto. O ranking do Google não era uma preocupação. O formato que eu deveria divulgá-lo no Instagram (carrossel?) ainda não importava. O LinkedIn não passava de um banco de currículos.
3.
Não fui o primeiro nem serei o último a ter a vida mudada por On the Road. Bob Dylan fugiu de casa. Jim Morrison fundou o The Doors.
Inspirado pelo jazz de Charlie Parker, muito café e benzedrina, Kerouac escreveu a primeira versão do seu livro mais famoso em abril de 1951, mas só ganharia notoriedade em 1957 quando foi resenhado pelo The New York Times. Para o gaúcho e gremista fanático Eduardo Bueno, o Peninha, tradutor da versão brasileira de On the Road (um dos poucos livros físicos que carreguei comigo durante meu tempo na estrada; e que hoje repousa em uma estante parisiense), “nenhum livro do século XX terá deflagrado uma revolução comportamental maior do que a obra de Kerouac”.
Se hoje aspirantes a escritores se preocupam mais com qual ferramenta utilizar para organizar suas ideias (Notion?) ou com qual o melhor software para projetos literários (Scrivener?) do que com a escrita em si, Kerouac, que escreveu On the Road em três semanas num rolo de telex de 36 metros e 22 centímetros de largura, datilografava como um alucinado 12 mil palavras por dia, movido por aquilo que o poeta Lawrence Ferlinghetti certa vez bem definiu como uma “febre onívora de observação”.
Kerouac nos deixou cedo, em 1969, aos 47, após perder uma longa batalha contra o álcool. Morando com a mãe, uma católica fervorosa, em nada lembrava o espírito aventureiro de On the Road em seus últimos anos de vida. Morreu solitário, amargurado e reacionário, negando o movimento literário do qual foi o principal expoente – certamente seria um apoiador de Donald Trump hoje em dia.
Mas isso pouco importa. Quando li On the Road pela primeira vez, naquele abril de 2013, foi como se o próprio Kerouac me abraçasse forte, me obrigasse a correr uma maratona e me golpeasse com um chute no estômago. Senti falta de ar a cada parágrafo sem vírgulas escrito em ritmo de jazz. A estrada ganhou um novo significado. De mero turista espectador, transformei-me num flâneur que invade a cidade em busca de novas e boas histórias.
4.
O mundo em que Jean-Louis Lebris de Kerouac, mais conhecido como Jack Kerouac, nasceu em 12 de março de 1922 em Lowell, Massachusetts, nos Estados Unidos, não existe mais.
Ao folhear minha edição brasileira de On the Road, aquela traduzida por Eduardo Bueno, percebo que a sua estrada também; ela ficou datada, mas isso tampouco importa; um dia todos estaremos datados; e mortos.
5.
On the Road termina após a melancólica separação dos personagens numa noite gélida de Nova York.
"Eu me lembro de Dean Moriarty, eu me lembro do pai que nós nunca encontramos, eu me lembro de Dean Moriarty.”
Hoje – e sempre – eu me lembro de Jack Kerouac. Feliz aniversário, estradeiro.
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🧠 Para ler, assistir e ouvir
Como contei na última edição, cobrirei aqui na newsletter as Olimpíadas de Paris. E aqui vai um spoiler: estarei nas finais do boxe; masculino e feminino. Estou tentando aprender o máximo sobre o esporte e caí num documentário aleatório sobre o Jake Paul (o YouTuber) que é bem legalzinho.
Falando em boxe, eu amo essa matéria da VICE sobre o anti-herói do boxe brasileiro que não liga para o que você acha dele.
O que fazer quando estamos começando? É o que pergunta o
.Menos é mais no mundo dos negócios? É o que pergunta a
.Quando uma leitura prescreve? É o que pergunta o
.American Fiction, o filme, é das melhores coisas que assisti em muitos anos. Ainda quero escrever sobre, mas não será hoje. Assista no Prime Video.
Essa playlist de jazz japonês para relaxar é puro ouro.
🗣 Call to action aleatória para gerar engajamento
Tem algum(a) artista (de qualquer segmento) que você ama, mas sente que ficou datado? – e por “datado” não falo necessariamente sobre cancelamento por conta de comportamentos antes aceitáveis dentro do contexto da época.
eu sei que SEO importa, todo mundo precisa pagar as contas, mas gostei desses dois primeiros parágrafos de escrita pela escrita. Faça mais vezes.
estou treinando boxe desde 2020 e amando, não imagino minhas manhãs sem ele, recomendo o esporte para todas as pessoas. E espero q o Tyson acabe coma farra desse Jake Paul rsrs. boa semana, Matheus :)