[Passageiro #72] Uma tarde na casa de José Saramago nas Ilhas Canárias 🇪🇸
Visitei a casa do primeiro – e único – autor em língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura.
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🎧 Para ler ouvindo1: Nuevo Mundo, por Hermanos Gutiérrez.
1.
Em 1º de setembro de 1730, o solo de Lanzarote se entreabriu de repente, dando origem a uma montanha que emergiu do chão cuspindo chamas ardentes do seu topo. Durante os seis anos seguintes, uma área de 200 km² foi atingida, mudando para sempre a geografia da ilha. Da janela do avião, a impressão que aterrissamos em Marte.
2.
Chegar à Laguna de Los Clicos é reaprender o que entendemos por geografia. No entorno de um vulcão há uma lagoa verde, um verde kryptonita que me lembra a Lagoa da Bomba em Imbituba, com a diferença de que a Lagoa da Bomba tem essa coloração por conta da poluição, enquanto a de Los Clicos apenas é o que é; a areia (?) da praia é preta, ainda mais preta que o carvão do solo de Capivari de Baixo ou Criciúma; é preta porque é lava vulcânica seca. O mar, bom, o mar parece a única coisa que meu cérebro consegue associar com coisas antes vistas; ainda que seu azul seja mais claro que o azul da Praia da Vila; o Oceano é o mesmo, o Atlântico; apesar de as Ilhas Canárias pertencerem a Espanha, o arquipélago fica na costa da África, pertinho do Marrocos.
E aí tem o céu. Faz sol, está calor, mas há uma névoa, não aquela de um tempo fechado, mas uma espécie de poeira espacial – o que deixa tudo com ainda mais cara de Marte. Ao chegar em nossa casa temporária na orla de Punta Mujeres e abrir o Último caderno de Lanzarote, José Saramago, que aqui viveu os últimos 17 anos de sua vida, me explica:
“Já estávamos perto quando o comandante do avião informou os passageiros de que o Aeroporto de Lanzarote estava fechado por efeito da calima, essa névoa parda que não é composta de umidade, mas de minúsculas areias do deserto sariano que viajam pelos ares e com deplorável frequência vêm turvar o céu das ilhas orientais das Canárias.”
Calima. Poeira do deserto do Saara. Eu jamais saberia. Um lembrete de que, apesar de falarmos espanhol por aqui, estamos na África.
3.
Em 1992, voltando de uma conferência em Las Palmas, José Saramago e sua esposa Pilar del Río fizeram uma visita de menos de dois dias a Lanzarote, onde morava (e ainda mora) uma das irmãs da jornalista espanhola. Ficaram impressionados. De volta a Lisboa, onde viviam, decidiram construir uma casa na ilha, para onde mudariam-se meses depois. Em Portugal, José Saramago havia sido censurado pelo governo ao ter O Evangelho segundo Jesus Cristo proibido de representar o país no Prêmio Literário Europeu.
4.
No escritório de José Saramago há alguns retratos seus – sozinho ou acompanhado da esposa Pilar del Río – feitos pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Em quase todas as imagens, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998 aparece com os cabelos desgrenhados tal qual um pinheiro canário. Venta muito em Lanzarote.
5.
“(…) A força da ventania não tinha esmorecido, bem pelo contrário, sacudia com injusta ferocidade os ramos das árvores, sobretudo os da acácia, que com uma simples e bonançosa aragem se deixam mover. As duas oliveiras e as duas alfarrobeiras, novas ainda, pelejavam bravamente, opondo aos esticões do malvado a elasticidade da suas fibras juvenis. E as palmeiras, essas, já se sabe, nem um tufão as consegue arrancar. Com os cactos também não valia a pena preocupar-me, resistem a tudo, chegam a dar impressão de que o vento faz um rodeio quando os vê, passa por eles de largo, com medo de se espetar nos espinhos. Ao longo do muro, os pinheiros canários, em fila, mais desgrenhados que de costume, cumpriam o dever de quem foi colocado na linha de frente: aguentar os primeiros choques.” José Saramago no Último caderno de Lanzarote.
6.
Sentado na varanda da casa de José Saramago, observo que, apesar da força da ventania, todos permanecem no jardim; a acácia, as duas oliveiras, as duas alfarrobeiras, as palmeiras, os cactos e os pinheiros canários.
7.
No tempo em que viveu em Lanzarote, José Saramago escreveu seis diários (cinco publicados em vida; um póstumo).
“Como todo o diário (como toda a escrita), os Cadernos de Lanzarote são um exercício narcisista, mas, contra o que geralmente se crê, Narciso nem sempre gosta do que vê no espelho em que se contempla…”
Ele também manteve um blog; e não consigo deixar de imaginar que, se estivesse vivo e fosse mais moço, teria também uma newsletter no Substack.
8.
Na confortável sala da casa de José Saramago, cuja janela enquadra o mar como em uma pintura, há uma televisão antiga – mas que em 2010, ano da sua morte, ainda era nova. Pergunto-me que tipo de coisa um Nobel de Literatura assiste na televisão. Os serviços de streaming eram praticamente inexistentes em 2010; Casamento às cegas teria a sua primeira temporada exibida apenas em 2020.
Em 26 de janeiro de 1998, José Saramago escreve no Último caderno de Lanzarote:
“O Milagre em Milão de Vittorio de Sica passou na televisão”.
9.
José Saramago foi bastante produtivo em seu autoexílio na ilha vulcânica. Além dos diários/cadernos, publicou outros três livros de ficção – e deixou um inacabado. Duas coisas me chamam atenção em sua estação de trabalho: 1) os pés da mesa roídos pelos seus cachorros (Pepe, Greta e Camões; o último, seu xodó, ganhou esse nome porque apareceu no dia em que José Saramago foi agraciado com o Prêmio Camões em 1995); e 2) uma mantinha apoiada na cadeira (também há uma na cadeira do escritório da biblioteca particular do casal – que fica em um prédio na esquina em frente à casa e possui um acervo com mais de 16 mil títulos; incluindo exemplares com dedicatórias de Gabriel García Márquez e… José Sarney; este último deve ter sido um presente…).
10.
O sol ainda não nasceu em Lanzarote. Não há uma viva alma na orla de Punta Mujeres. Os únicos barulhos que escuto são o chiado do vento e as ondas do mar quebrando nas rochas vulcânicas. Acho que eu também poderia ser produtivo por aqui. Pela primeira vez em anos viajo sem o meu laptop na mochila, de modo que essas linhas que você agora lê foram escritas em um caderninho que comprei em um ponto turístico qualquer. À minha frente, o mesmo mar, os mesmos sons da natureza que tantas vezes José Saramago deve ter contemplado; penso no apartamento da Rue Pierre Fontaine em Paris; penso nas janelas do apartamento da Rue Pierre Fontaine em Paris; penso que raramente abro as janelas do apartamento da Rue Pierre Fontaine em Paris por conta do barulho; carros, motos, buzinas, sirenes, obras, turistas estadunidenses deslumbradas (Oh my God! So crazy!); penso na mantinha do escritório do apartamento da Rue Pierre Fontaine em Paris – está fazendo falta.
11.
“Neste quarto, morreu José a 18 de junho de 2010. Eram 11 e meia da manhã de um dia em que tudo parecia normal. Tomou o pequeno-almoço e quis descansar um pouco. Às 10 e meia tinha uma consulta médica. Não foi preciso ir. A essa hora, sem agonia, sem dor, sem lamentos nem prantos, com a mesma naturalidade com que havia vivido, trabalhado e amado, com a simplicidade que sempre teve, fechou os olhos e deixou que a vida o fosse deixando. Ou foi ele que se foi deixando ir da vida; rodeado, querido, ouvindo dizer o seu nome.
– José! José! Está todo bien.
(Transcrição do audioguia da casa de José Saramago).
Sentado nos degraus da casa de José Saramago, fecho os olhos e sinto o vento. Ao abri-los novamente, vejo que a calima dissipou-se. Está todo bien.
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O que eu mais acho fascinante não apenas nessa edição 72, mas na news em geral, é como todo texto não poderia ser escrito por mais ninguém além de você. Seja em Paris, Espanha ou Tailândia, o Matheus ainda é um menino de Imbituba, que sempre traz fragmentos do litoral catarinense nessa jornada pelo mundo. Até porque, se não fosse assim, não seria você. Gosto de como as memórias novas se misturam às antigas e de como surge algo tão genuíno desse processo. Adorei a escolha de trilha pra leitura e mais um destino que sequer conhecia agora entrou no meu roteirinho de viagens futuras...
Me diverti imaginando que se fosse nos tempos de hoje, Saramago poderia ter mantido uma newsletter como essa. Imagina só! Que prazer seria acompanhar um escritor como ele tão de perto.
Obs.: passei um tempo sem acompanhar sua news, mas estou de volta e tenho que dizer que a logo está linda! E combina muito com o seu trabalho por aqui.