#120 – Tomando combustível de foguete com um ex-monge
Uma história que estará em 'Passageiro', o livro.
🎧 Para ler ouvindo1: Phua Kao, por Khun Narin.
📍 Chiang Mai, Tailândia
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de Nômade Digital, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
Antes de ser professor de culinária, Son foi monge budista por oito anos. No caminho entre o mercado fedendo a morte e sua propriedade, onde produz alimentos orgânicos no quintal e ensina pratos típicos do norte tailandês para turistas estrangeiros em uma cozinha estilo industrial, ele conta que foi no monastério que aprendeu a falar inglês.
A Tailândia não tem uma religião oficial, no entanto, cerca de 95% da população segue a interpretação tailandesa do budismo theravada, uma versão um pouco diferente das praticadas em outros países do Sudeste Asiático como Sri Lanka e Mianmar. Assim que completam a maioridade, aos 20 anos, os homens tailandeses de família budista devem, se possível, tornarem-se monges por um período indeterminado – o mais comum é que passem três meses nos monastérios durante a época das monções. Comento ter visto algumas crianças com as cabeças e as sobrancelhas raspadas e vestindo túnicas alaranjadas no Wat Doi Suthep, o Templo da Montanha, e Son explica que são noviços, garotos que são enviados por suas famílias aos templos para terem acesso à uma boa educação e fazer mérito.
A ideia de fazer mérito no budismo tailandês está ligada ao karma. Faça coisas boas e boas coisas acontecem. Ter um filho monge é o maior mérito para um casal, a garantia de uma vida feliz para a família na próxima encarnação. Aqueles que não tem um filho homem – uma lei de 1928 impede que mulheres dediquem-se à atividade monástica – podem patrocinar um candidato à ordenação, garantindo assim méritos, um bom karma e um lugarzinho no céu.
2.
Todos os dias, às 6h da manhã, milhares de monges e noviços tailandeses deixam os mais de 40 mil templos espalhados pelo país carregando seus alguidares de metal para pedir comida para o café da manhã, uma tradição que remonta aos tempos de Buda, há mais de 2.500 anos. É dever da população budista alimentá-los. Acordo antes de o sol nascer para fazer mérito e garantir o meu lugarzinho no céu. Son me aconselha a comprar frutas e água. Há uma epidemia de obesidade entre os monges que, de acordo com a tradição budista, devem aceitar todas as oferendas.
Supostamente para ganhar mais méritos, muitos tailandeses têm trocado alimentos baratos e nutritivos como frutas e legumes por porcarias industrializadas made in USA que custam uns trocados a mais. Nos supermercados, há prateleiras inteiras dedicadas ao café da manhã dos monges, com cestas amarelas cheias de saquinhos de batatas chips e outros snacks. As oferendas muito calóricas, repletas de sal ou açúcar, têm sido apontadas como responsáveis pelo aumento do número de casos de hipertensão e diabetes entre o clero budista tailandês. O Ministério da Saúde da Tailândia tem tentado conscientizar os monges sobre a importância de uma dieta mais saudável. Em Bangkok, em um hospital voltado para monges, um cartaz na recepção diz: "a água é a melhor bebida". Há um outro que mostra uma lista das bebidas açucaradas mais vendidas e o correspondente em açúcar contido nelas. "Devem consumir menos de seis colheres de açúcar por dia”. Além de serem obrigados a aceitar todas as oferendas, os monges não podem praticar esportes, o que tem dificultado a ação do Ministério.
Sabendo de tudo isso e não querendo entupir as veias dos monges tailandeses, deposito três bananas, duas maçãs e uma garrafa plástica com 500ml de água no alguidar de metal de um Jovem e Esguio Monge. Imagino que ele esteja há pouco tempo no monastério. O Jovem e Esguio Monge faz algumas preces em tailandês, kop khun krap, agradeço em tailandês juntando as palmas das mãos e inclinando o corpo para frente, da maneira como fui ensinado por Son, e ele segue o seu caminho até ser parado por uma senhorinha que lhe oferece um pacote de batata Lay’s e uma latinha de Coca-Cola.
3.
“No Brasil, vocês gostam de Coca-Cola?”
“Sim. Mas temos o nosso próprio refrigerante, o Guaraná, feito à base de uma planta típica da Amazônia.”
“Gua-ra-naaah?”
“Isso. Perfeito.”
“No Brasil, vocês gostam de uísque?”
“Meu pai gosta muito. Meu avô também gostava. Eu gosto, mas bebo lá uma vez ou outra. A bebida típica do Brasil é a cachaça. Meu outro avô, que é pescador, gosta muito de cachaça. Você já ouviu falar em kai-pee-reen-ya?” – falo de um jeito americanizado. “É um drinque feito com cachaça.”
“Não. Como é? Ka-shah-saaah?”
“Isso. É um destilado.”
“Espera um pouco.”
Enquanto preparo meu tom yum goong, uma sopa de camarões ácida e picante, Son volta com uma garrafa de lao khao, um uísque de arroz muito apreciado entre a população rural devido ao seu baixo custo e o forte teor alcoólico. Uma garrafa grande custa menos de dez reais. Ele serve duas doses. Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield olham curiosas, Son aponta para a garrafa e pergunta se elas querem experimentar e a Mãe, como interlocutora da dupla, responde educadamente que não.
“Isso é combustível de foguete. Toma.”
“Como se brinda em tailandês?”
“Chon gaew, que significa literalmente bater os copos, ou chai yooooo” – Son exagera no “o” –, “que significa o mesmo que cheers”.
“Gostei mais do segundo. Chai yooooo!”
Jogo a bebida no fundo da garganta em uma tentativa de não sentir o gosto forte do lao khao, mas é impossível. Ele desce queimando. Meus lábios adormecem e sou acometido por uma espécie de descarga elétrica no estômago. Logo todo o meu rosto está dormente. Son serve mais duas doses.
“Mais uma. Toma.” – diz com um sorriso no rosto e os olhos semicerrados.
“Chai yooooo!”
Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield riem alto.
“Você vai ficar bêbado.” – a Mãe constata o óbvio.
Fico bêbado. Sinto a língua enrolada, o suor escorrendo, os cabelos grudados na nuca e na testa. Viajo com a música que está tocando nos alto-falantes da cozinha, um funk psicodélico tailandês dos anos 1970 que certamente deve ter influenciado o Khruangbin. Volto a mim e peço ajuda com a tigela de tom yum goong, não antes de Son servir mais uma dose. Fico constrangido em recusar.
“No Brasil, vocês gostam de pimenta?”
“Sim.” – nessa altura já sinto dificuldade em responder algo mais elaborado em inglês.
“Vou pegar uma especial na horta. Espera um pouco. Toma.” – ele serve outra dose.
Analiso a situação e fico com um sorriso bobo no canto do rosto. Estou em um vilarejo nos arredores de Chiang Mai, no norte da Tailândia, bebendo combustível de foguete com um ex-monge fã de Ronaldinho durante uma aula de culinária tailandesa na companhia de Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield, cidade dos Arctic Monkeys, a minha banda favorita. Sonhei tanto com momentos como este, não exatamente este momento devido à sua evidente aleatoriedade, mas momentos de descoberta de novos cheiros e sabores em culturas distantes, de compartilhamento de experiências com pessoas que nasceram em uma realidade completamente diferente da minha. Li o Almanaque Abril 1998 vezes suficientes para saber que o mundo era maior que Imbituba, que havia muito a ser visto fora da minha bolha, mas eu queria ver isso com os meus próprios olhos, olhos curiosos de criança, e cá estou, virando mais uma dose de combustível de foguete, agora já acostumado com o gosto agridoce, sentindo o cheiro de camarões cozinhando na wok, não os camarões pescados pelo meu avô na lagoa da Ibiraquera, mas camarões pescados por algum tailandês em algum lugar da Tailândia, será que eles utilizam tarrafa por aqui?, imerso na trilha sonora que sai dos alto-falantes da cozinha, Phua Kao, primeira faixa do álbum II do coletivo psicodélico Khun Narin, segundo o Shazam, enquanto Son me mostra orgulhoso a pimenta verde que acabara de colher em sua horta.
“Para o seu tom yum goong. Tome cuidado no preparo porque ela é muito forte. Ela é apenas para dar um gosto no caldo, você não deve comê-la. Coloque metade na wok.”
4.
Estamos reunidos em uma mesa no jardim. Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield sentadas de um lado, Son e eu do outro.
Em minha defesa, ainda que essa esteja longe de ser uma boa defesa, minha bancada estava bagunçada e eu estava bêbado de uísque de arroz, de modo que, sem querer, coloquei a pimenta verde inteira na wok, sem cortá-la, junto com o capim-limão.
Ao provar o meu tom yum goong, já sem conseguir distinguir o quê era o quê, coloco a pimenta inteira na boca e mastigo. É difícil descrever o que senti. Eu adoro pimenta. O sabor ardente, as sensações físicas provocadas após a sua ingestão, a produção de endorfina. Mas isso é diferente. Isso eu nunca havia sentido. Mastigo a pimenta inteira pensando ser um vegetal qualquer, talvez o capim-limão, e imediatamente meu nariz começa a escorrer, um fluxo intenso, como se eu estivesse mijando pelas narinas, os lábios inflamam, os globos oculares incham até ficarem do tamanho de duas bolas de golfe, ou pelo menos essa é a sensação, lágrimas escorrem e misturam-se ao ranho, formando uma gosma nojenta que gruda em minha camisa já ensopada de suor. Incrédulo com a cena que acabara de presenciar, Son corre para pegar um copo de leite na cozinha enquanto Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield me oferecem um lenço e Coca-Cola. Dou um gole na bebida açucarada, lembro que “a água é a melhor bebida” e uso o lenço para secar o rosto. O incidente parece ter cortado o efeito do álcool.
“Você pode ficar com ele.” – diz a Mãe.
Son surge como uma aparição e me entrega um copo de leite.
“Toma. Eu avisei para ter cuidado.”
5.
A Tailândia é um ataque aos sentidos: os aromas e odores das barraquinhas de rua; o barulho dos tuk-tuks; o calor fumegante; o uísque de arroz que deixa o rosto dormente; a pimenta verde que te faz mijar pelo nariz; os painéis de neon que cegam os olhos – e que sempre escondem algo. Um país de extremos, dos super ricos que frequentam o Siam Paragon em Bangkok, um mega complexo de aço e vidro que abriga centenas de lojas de marcas de luxo, aos trabalhadores rurais nos arredores de Chiang Mai, que vivem das suas plantações de arroz e oferecem diariamente o pouco que tem aos monges budistas.
Eu nunca dei importância para a culinária em si até pisar na Tailândia. Para mim, até então, comer era uma atividade banal como outra qualquer do dia a dia; escovar os dentes, tomar banho ou trocar de roupa. Coisas que você faz no automático. Comer na Tailândia, no entanto, é uma experiência sensorial, uma exploração de uma cultura rica e multifacetada de sabores, temperos e molhos que misturam o doce, o azedo e o picante, um acúmulo gradual de dor e prazer, uma inundação de endorfina. Esqueça aquela imagem estereotipada da Khao San Road, a rua dos mochileiros em Bangkok, com turistas bobalhões comendo espetinhos de escorpião ou outros insetos – sim, eu já fui um desses turistas bobalhões; aos curiosos, o espetinho de escorpião tem gosto de Doritos. A culinária tailandesa em nada tem a ver com isso.
Após o que ficou conhecido como O Incidente do Tom Yum Goong, Son nos avisa que Tien, sua esposa, está preparando khao soi, prato tradicional da culinária do norte da Tailândia.
“Uma recompensa ao esforço de vocês na cozinha. Pedi para Tien colocar só um molho de pimenta, nada de pimenta verde.” – diz, arrancando risinhos de Mãe e Filha Inglesas da Cidade de Sheffield.
“Obrigado pela gentileza, Son.” – respondo constrangido.
“No Brasil, vocês têm religião?”
“A maioria da população é católica. Minha família é católica, mas hoje em dia me considero agnóstico.” – fico com vergonha de dizer que sou ateu. “Não sigo uma religião, mas acredito em algo maior. Quer dizer, espero que haja algo maior.”
“Você já ouviu falar no monk chat? É um bate-papo com os monges nos templos. Sem compromisso. Só troca de experiências entre os turistas estrangeiros e os monges. Foi assim que aprendi a falar inglês.”
“Posso perguntar coisas do tipo qual o sentido da vida?”
Tien serve o khao soi cơm molho de pimenta.
“Pode. Mas você também pode falar sobre futebol.”
✍️ Nota do editor
O texto acima é um trecho de Passageiro, o livro, e foi adaptado para Passageiro, a newsletter.
Estou de volta em Chiang Mai e, devido a alguns dos meses mais turbulentos dos últimos anos, ainda não escrevi nada novo; mas lembrei dessa história perdida no meu HD – desisti de dar prazos, mas espero que Passageiro, o livro, saia do papel (ou melhor: entre no papel!) em 2026.
Ah, e agora também temos Passageiro, o canal no YouTube.
Você já se inscreveu?
✌️
🧳 Clube Passageiro
A newsletter Passageiro é um veículo independente e gratuito cujo conteúdo é escrito de maneira orgânica por um único humano – sem a ajuda de outras “inteligências”. Os textos aqui publicados têm como público-alvo pessoas reais – e não mecanismos de busca ou algoritmos –, de modo que, caso você seja um outro humano, talvez se identifique com o que é escrito neste espaço.
Considere assinar um dos planos pagos para ter acesso a textos exclusivos e outros bônus – incluindo encontros mensais com convidados (humanos) do mais alto calibre (já passaram pelo Clube Passageiro nomes como Carol Bensimon, J.P. Cuenca, Pe Lu, Tira do Papel, Arthur Miller, entre outros).
Amanhã (31), 19h de Brasília, recebo Bruno Clozel para um papo sobre carreira internacional como escritor – Bruno é brasileiro, mora em Portugal, mas escreve em inglês; seus livros (três publicados e um no forno) são vendidos de forma independente nas Américas, Europa, Ásia e Oceania.
Clube #26 – Carreira internacional como escritor (feat. Bruno Clozel)
Amanhã (31), 19h de Brasília. Evento online e exclusivo para assinantes pagos da newsletter Passageiro.
🧠 Para ler, assistir e ouvir
Estou lendo Ouça a canção do vento & Pinball, os primeiros escritos do japonês Haruki Murakami.
O que é ser autêntico hoje em dia?; essa provocação do .
Pra que escolher entre arte e dinheiro?; essa provocação da
.
O , meu YouTube favorito que recentemente bateu 100 mil inscritos, vai lançar um curso de Storytelling para Creators. A pré-venda começa dia 06 de agosto e as vagas são limitadas – uma será minha. Confira as informações aqui. Importante: não é publi.
Vou falar para vocês que, como criança dos anos 1990 (nasci em 1989), adorei Happy Gilmore 2. Tem na Netflix.
Kevinho Parker, o Tame Impala, está de volta com o single End of Summer. O clipe é lindíssimo.
async, do saudoso Ryuichi Sakamoto. Escuta naquele dia que você precisa de foco.
Você sabia que esta newsletter tem uma playlist no Spotify com todas as músicas indicadas aqui? Pois é. A Rádio Passageiro é atualizada semanalmente.
Matheus, que delícia de relato. Você capturou aquela magia caótica das viagens que nos transformam sem pedir licença , entre doses de uísque de arroz e pimentas assassinas.
Esse momento em que você mastiga a pimenta inteira deveria estar em um museu: a perfeita metáfora do viajante que mergulha de cabeça (e de língua) no desconhecido. E como dói, e como vale a pena.
Matheus, que história boa! caceta! eu me vi exatamente ali com vocês, cozinhando e ficando bêbada de whisky de arroz. poderia dizer que “queria ter visto a cena”, mas aqui na minha mente, eu vi!