[Passageiro #107] Não tenho interesse em deixar um legado
Em Auvers-sur-Oise, visito o túmulo de Vincent Van Gogh, um dos maiores pintores de todos os tempos – que morreu pobre e desnutrido aos 37.
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🎧 Para ler ouvindo1: Aftermath, por Tricky (feat. Martina Topley-Bird).
📍 Paris, França.
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
No quinto andar do Musée d'Orsay, em Paris, turistas amontoam-se em frente ao mais famoso dos autorretratos de Vincent Van Gogh. É 30 de março de 2025, aniversário de 152 do nascimento do pintor holandês. Sinto certa dificuldade em encontrar um cantinho para admirar a obra; meu espaço pessoal é invadido por braços que seguram celulares; braços que procuram o melhor ângulo para uma selfie que será publicada nas redes sociais.
Um dos textos mais lidos desta Passageiro é justamente sobre largar a por** do celular, uma reflexão sobre se estamos capturando memórias ou perdendo momentos?, de modo que não quero soar repetitivo, não quero soar ainda mais amargo do que da outra vez, mas um dos objetivos desta newsletter é justamente documentar a passagem do tempo, ser um cronista dos nossos dias, escrever sobre aquilo que vejo em minhas andanças pelo mundo; e o que vi no Musée d'Orsay durante os cerca de cinco minutos em que decidi observar as pessoas ao meu redor, especificamente no cantinho em frente ao mais famoso dos autorretratos de Vincent Van Gogh, foi um bocado de turistas com seus celulares tirando selfies sem olhar diretamente para o quadro – antes, durante ou após – o registro fotográfico.
Entendo que, morando em Paris, ainda que me sinta um turista em tempo integral, minha relação com esse tipo de experiência seja diferente do que a de uma pessoa que economizou anos para visitar a cidade e quer dar “check” em todas as atividades turísticas durante sua estadia e registrar os momentos – no meu caso sempre posso voltar ao Musée d'Orsay2 para admirar o mais famoso dos autorretratos de Vincent Van Gogh –, mas ainda assim não consigo deixar de pensar que, justamente por tratar-se de um evento extraordinário, estes momentos únicos não deveriam ser vistos através de telas de celulares.
O francês Guy Debord escreveu em 1967 que vivemos em uma “sociedade do espetáculo”.
“A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o “ter” efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, diretamente dependente do poderio social, por ele moldada. Somente nisto em que ela não é, lhe é permitido aparecer.”
Vou além na reflexão do texto anterior desta Passageiro sobre celulares: estamos vivendo para nós ou para os outros?
2.
Após os cerca de cinco minutos em que decido observar as pessoas ao meu redor, passo cerca de cinco novos minutos observando o mais famoso dos autorretratos de Vincent Van Gogh. Faço uma foto do quadro. Publico em um story no Instagram.
3.
Talvez eu só esteja ficando velho.
Faço 36 no próximo mês. Vincent Van Gogh viveu até os 37.
4.
Pensativo sobre esse negócio das selfies no Musée d'Orsay e a sociedade do espetáculo de Guy Debord, levanto cedo num sábado e pego um trem na Gare du Nord em direção à Auvers-sur-Oise, uma das 38 cidades em que Vincent Van Gogh viveu durante seus 37 anos de vida; Vincent Van Gogh foi, veja só, um nômade.
Logo na saída da estação, já em Auvers-sur-Oise, uma grata surpresa: uma livraria localizada num vagão de trem desativado. Perco-me entre edições centenárias de livros e revistas. Compro uma segunda edição de um livro de Voltaire datada de 1785 (!), uma edição de 1989 do “Assassinato no Expresso-Oriente” de Agatha Christie, uma edição de 15 de abril de 1933 da revista “L’Illustration” e outra de 11 de agosto de 1934 sobre a morte do Marechal Lyautey (1854-1934) – eu descobriria mais tarde, ao folhear a revista já em casa, que um certo Adolf Hitler esteve no enterro.
5.
Não vou entrar nos detalhes sobre a história da orelha, o vício em absinto, a saúde mental e a maneira como Vincent Van Gogh morreu; tudo isso é de conhecimento público e não há nada de novo a ser escrito a respeito dessas questões.
Vincent Van Gogh viveu em Auvers-sur-Oise entre 20 de maio e 29 de julho de 1890, período mais produtivo da sua carreira; em 70 dias, produziu 72 pinturas, 33 desenhos e uma gravura.
Atento-me para um detalhe: entre 20 de maio e 29 de julho faz sol na França.
6.
Caminho entre os mesmos campos de trigo que Vincent Van Gogh costumava caminhar carregando suas telas e pincéis para pintar as paisagens de Auvers-sur-Oise. Ele está enterrado pertinho de onde pintou “Campo de Trigo com Corvos” (1890), um de seus quadros mais famosos.
7.
Vincent Van Gogh, um dos pintores mais famosos do mundo, morreu pobre e desnutrido aos 37 anos. Em vida, vendeu apenas um quadro. No cemitério de Auvers-sur-Oise, olhando para o túmulo onde repousa ao lado do irmão Theo, o único pensamento que me passa na cabeça é: que merda.
8.
Muito se fala no meio artístico em “deixar um legado” – e eu sempre suspeito de quem diz ou escreve isso; geralmente são artistas que já estão com a vida ganha; o mesmo vale para livros sobre criatividade como o do Rick Rubin ou o do Nick Cave – adoro os caras, mas na moral? Não tem hack melhor de criatividade do que uma conta bancária bem gorda.
O legado de Vincent Van Gogh é inegável, mas como alguém com pretensões literárias, me dói saber que o pintor nunca tenha tido a chance de desfrutar do seu enorme sucesso.
9.
Num episódio da série “Doctor Who”, Vincent Van Gogh viaja no tempo e visita o Musée d'Orsay, onde fica surpreso e se emociona ao ouvir o Sr. Black, um curador de arte, dizer que ele foi “o maior pintor de todos” e “um dos maiores homens que já existiram”.
(Não encontrei o vídeo com legendas em português; eu não chorei, você que chorou…).
Enquanto não inventam a máquina do tempo, que tal celebrarmos e apoiarmos nossos artistas em vida?
A economia global está colapsando e talvez não sobre um trocado no fim do mês para comprar um livro, um quadro, uma cerâmica, um curso, mas existem outras formas de apoio que são gratuitas: curtir, compartilhar e comentar os conteúdos que nós, artistas, somos obrigados a criar gratuitamente nas redes sociais dentro dessa sociedade do espetáculo; isso nos ajuda a, de passinho em passinho, construir não um legado, mas uma conta bancária um pouquinho mais gorda e um nome limpo no Serasa.
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Tô lendo “O mapa e o território”, do Michel Houellebecq.
Tô curtindo bastante a série “O Estúdio”, com o Seth Rogen, da AppleTV+.
Trilha sonora instrumental para um dia criativo de trabalho: o recém-lançado “IC-02 Bogotá”, álbum do Unknown Mortal Orchestra com influências e participações de músicos colombianos; nessa mesma pegada, também vale ouvir o “IC-01 Hanoi”, de 2018 – mesmo conceito, mas numa versão vietnamita.
Você sabia que a newsletter Passageiro tem uma playlist com todas as músicas indicadas aqui? Ela é atualizada semanalmente.
A entrada da grande maioria dos museus de Paris é gratuita no primeiro domingo de cada mês; no caso d'Orsay, é preciso se programar: as entradas são limitadas e disponibilizadas online sempre na primeira segunda-feira de cada mês – no caso, você reserva a sua entrada em um mês e faz a visita no outro.
No fim do ano passado, estive em Amsterdã e fui ao Museu do Van Gogh. Eu não sabia, mas aparentemente existe uma moda de fazer um retrato de costas, "como se estivesse olhando", usando um grande laço no cabelo. Um menina superarrumada tirou não sei quantas fotos e o que ela parava pra olhar era como a foto tinha saído. Ela olhou cada detalhe da foto, reptiu troucentas vezes e nem por um minuto ela contemplou o quadro. Aquilo me deu um aperto no peito, uma angústia... como você disse, é tão extraordinário ter a oportunidade de ver um Van Gogh ao vivo que não dá pra entender quem não para para olhar. O problema não é nem fazer a tal foto e postar. O problema é SÓ tirar a foto. Triste demais
Van Gogh não ganhou dinheiro em vida com a sua arte, mas provavelmente algum bilionário vai quando bombar a trend "transforme essa foto em uma pintura estilo Van Gogh".
Distopias à parte, mais um grande texto, Matheus. Abraço!