#109 – Escreveram um romance sobre nômades digitais
Livro 'As perfeições' traz reflexões sobre (mais) uma geração que tentou ser contracultura e acabou engolida pelo capitalismo; e pela gentrificação; mas não só.
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📍 Paris, França.
✍️ Por Matheus de Souza
Escritor e viajante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.
1.
Interessei-me pelo livro “As perfeições” (2025), do italiano Vincenzo Latronico (1984), por conta de uma resenha pouco elogiosa da “Quatro cinco um” assinada por Paulo Roberto Pires (1967)3.
Geralmente, uma resenha do tipo causaria o efeito oposto, mas um trecho em especial me chamou a atenção:
“(…) Tom e Anna, protagonistas de ‘As perfeições’, são ‘nômades digitais’ (aspas necessárias) que trocaram a Itália por Berlim e ralam dia e noite em seus laptops.”
“Aspas necessárias.”
Senti-me na obrigação de ler o livro para tentar entender a ironia de Paulo.
2.
Na virada de 2016 para 2017, Matheus de Souza (1989) fez algo absurdo para os olhares da época: o “então” (aspas necessárias) jovem catarinense pediu as contas do seu emprego – como assistente de marketing em uma faculdade onde ganhava mensalmente a bolada de R$ 1.632,00 – para viajar o mundo e trabalhar de forma remota (!). Sem herança (!). Sem mesada (!). Sem privilégios de classe (!). Um qualquerzinho vindo do interior de Santa Catarina. Uma afronta!
Paulo Guedes teria ficado enojado.
“Um qualquerzinho desse viajando pelo mundo? Aeroporto virou rodoviária mesmo.”
Matheus fez o que fez porque, além da falta de juízo, o contexto da época permitia; o capitalismo ainda não havia transformado o nomadismo digital em um mercado extremamente lucrativo (falaremos disso adiante).
3.
Ok, chega de terceira pessoa – escrevi dessa maneira pomposa porque vai que o texto chega no apartamento de algum crítico cultural; tenho que demostrar pelo menos certo estilo; ainda que não acadêmico.
Escrever o livro “Nômade Digital” (2019) mudou a minha vida. De 31 de julho de 2019 para cá, data de seu lançamento, foram mais de 6 mil exemplares vendidos – um número altíssimo tratando-se de Brasil; tratando-se de uma estreia literária de um qualquerzinho.
E o que mais me deixa feliz com essa obra tanto tempo depois são comentários como esse feito pelo Patrick Matsudo em 14 de abril de 2025 (popular “semana passada”):
Um pouco de contexto: escrevi esse livro em 2018; ele foi publicado em 2019; finalista do Prêmio Jabuti em 2020; minha vida virou de cabeça pra baixo entre os 29 e os 31.
Eu era jovem. O livro foi escrito antes da pandemia; escrito antes do trabalho remoto ser algo entendível pela Janete de Souza (1966), minha mãe; antes do nomadismo digital tornar-se algo tão grande ao ponto de vários países criarem vistos específicos para esse tipo de viajante/profissional.
O único modo para um qualquerzinho viver algo do tipo é (era?) justamente da maneira como o Patrick descreve na avaliação da Amazon: “(…) se você não é herdeiro, tem que viver ali no simples, não pode ser apegado a bens materiais, tem que trabalhar muito, se você ganha em real, é de se refletir viver em países que se gasta em libra(…)”
4.
Corta para 2025: faço 36 em 1 mês, criei certo apego aos bens materiais e moro em Paris – trabalhando remoto, mas ganhando em real e gastando em euro.
5.
Antes que alguém pergunte: moro em Paris porque o trabalho da minha companheira é aqui; e porque quando decidimos ter um comprovante de residência (ainda que alugado) em nosso nome, escolhemos a Europa como base; a companheira tem passaporte italiano – meu visto é de cônjuge; não posso te ajudar com nenhum detalhe ou conselho burocrático; não faço a menor ideia de como você pode conseguir um emprego aqui além de ser muito bom no que faz.
6.
Quando reforço que “eu era jovem” quando escrevi “Nômade Digital”, quero dizer que muito do esforço que fiz para explicar o nomadismo digital como conceito e filosofia de vida no primeiro capítulo do livro (o meu capítulo favorito; leia gratuitamente aqui – das melhores coisas que já escrevi; um sopro da ingenuidade dos 20 e poucos) veio de um lugar completamente idealista: o jovem do interior que tem o sonho utópico de viajar o mundo, lê uns livros (“Walden” de Henry David Thoreau; “On the road” de Jack Kerouac) e, de uma forma até ingênua – para não dizer tonta –, acredita que faz parte de uma contracultura do século XXI (escrevi isso no livro!) e decide viver deliberadamente; vender ou doar aquilo que não precisa e colocar a sua vida e o seu trabalho em duas mochilas. Foi assim que vivi entre 2017 e 2023. Seis anos e meio vivendo como um nômade digital na forma mais literal do termo: sem um comprovante de residência em meu nome, trabalhando de forma remota, vivendo de Airbnb em Airbnb; sem passaporte europeu; sem herança; sem mesada; sem qualquer privilégio econômico ou social: apenas o meu trabalho.
Foi assim que, agora falando (ainda mais) sério e com lágrimas nos olhos, esse qualquerzinho olha para trás e percebe que inspirou outros qualquerzinhos e outras qualquerzinhas a cair no mundo; esse meu primeiro livro, um patinho feio dentro do projeto literário que pretendo seguir, teve (e ainda tem) esse papel: fazer com que você, principalmente você que nasceu fora do eixo Rio-São Paulo, saiba que é possível ver o mundo com os seus próprios olhos; independentemente da Negação de Pedro (ou Paulo).
Isso não tem preço. De verdade. Mesmo mesmo mesmo.
7.
“Digite #wanderlust no menu de buscas do Instagram e você encontrará mais de 70 milhões de publicações. A palavra, que virou febre nas redes sociais – e inspiração de tatuagem para muito millennial por aí –, tem origem na língua alemã: wander (caminhar/vagar) + lust (desejo).
Numa tradução quase que literal para a língua portuguesa, podemos dizer que é o desejo de viajar. Numa tradução quase que filosófica, podemos dizer que é o desejo incontrolável de explorar o mundo, de caminhar rumo ao desconhecido, uma espécie de saudosismo idílico por lugares nunca antes visitados que, de algum modo, fazem parte de uma busca por si mesmo.
Todo esse hype em torno do termo wanderlust expõe, ainda que de forma figurativa, uma certa insatisfação mundial dos mais jovens com a relação que a sociedade tem com o trabalho. Aquele negócio de bater ponto às 9h e depois novamente às 18h semana atrás de semana. Viver a mesma rotina de segunda a sexta-feira, durante anos, enquanto você vê sua vida passar pela janela de um escritório – ou de um automóvel, enquanto está preso num engarrafamento no caminho para a labuta. Você envelhece e acumula coisas que não consegue usufruir por falta de tempo. Se apega, então, ao que lhe resta: uma promessa distante e vazia de uma aposentadoria que, magicamente, resolverá todos os seus problemas. Isso, claro, se você não morrer de infarto aos 40 anos por problemas no miocárdio relacionados ao estresse no trabalho.
Os mais velhos, muitos dos que conheço, pelo menos, costumam chamar os millennials de mimados por buscarem essa liberdade na equação vida pessoal x vida profissional. Repetem frases de efeito sobre trabalho duro, bradam sobre como eram as coisas no tempo em que eram jovens, mas, a verdade é que não há mérito algum em ser um workaholic. Pelo contrário. Pergunte sobre isso para o filho que teve uma mãe ausente por causa do excesso de trabalho de sua progenitora ou para a viúva do executivo que enfartou depois que o mesmo passou meses trabalhando doze ou mais horas por dia.
Na verdade, ao apontar seus dedos para quem tenta viver uma vida diferente daquela imposta pela sociedade, ou melhor, para quem tenta, de fato, viver, estas pessoas apenas despejam suas frustrações, suas horas desperdiçadas em cubículos, suas reuniões familiares que foram trocadas por reuniões com aquele chefe sem noção, seus relacionamentos que deixaram de existir por conta das horas extras no escritório.”
Os primeiros parágrafos de “Nômade Digital”.
Percebem como cada geração tem o costume de atacar a anterior? Agora os millennials são atacados pelos Z; que em breve serão atacados pelos alpha.
8.
Por que deixei de ser nômade digital?
Aí que entra “As perfeições” do Vincenzo – e porque gostei tanto do livro; diferente de Paulo.
Viajar o mundo sempre foi o meu sonho. Não sei de onde isso surgiu, mas de certa forma parecia que minha vida só seria completa se eu fizesse isso. E fiz. Fiz bastante. Mais de 30 países. Tem um único porém nisso tudo: eu só consegui viajar o mundo justamente porque nunca construí nada; ou seja, nunca consegui guardar dinheiro, nunca consegui ter investimentos, nunca comprei um terreno, um apartamento, um carro, nada; e não é como se eu não tenha feito um dinheiro legal ao longo dos anos – eu sei ganhar dinheiro; e sei melhor ainda como gastar: viajando por aí; o resto eu desperdicei – e aqui estamos falando apenas da parte financeira; eu nunca tive filhos. MAS VIAJEI A PORRA DO MUNDO. E foi massa demais. Não me arrependo.
Sou um qualquerzinho, lembra?
9.
A crítica de Paulo sobre “As perfeições”, e não apenas a dele, mas a maioria das que li, foca muito na parte literária – em ser uma cópia (assumida pelo autor; essa crítica estava bem fácil de fazer, o Vincenzo só levantou a bola para quem é preguiçoso ou escreve qualquer coisa sem conhecimento de causa) de “As coisas” (1965) do francês Georges Perec (1936-1982); e eu entendo, quando damos opinião sobre algo – deixando o caráter literário de lado – é baseado em nossas vivências; Paulo nunca foi nômade digital; nem eu um “crítico cultural” – aspas necessárias. Minha opinião sobre como o livro de Vincenzo me tocou vem muito mais do lado nômade do que do lado escritor; ainda que eu saiba que “As perfeições” tenha sido escrito de um ponto de vista eurocêntrico – o que inclui vários privilégios –, eu me conecto com o que li; me conecto com a empolgação inicial, me conecto com viver o sonho, me conecto com a decepção quando percebemos que não há um pote de ouro no final do arco-íris; me conecto quando percebo que Paris é apenas uma… cidade como qualquer outra? – talvez mais fedida.
10.
Certa vez participei de um painel de uma universidade prestigiada em que um dos convidados era um professor acadêmico, sujeito boa gente, na casa dos 50, vocabulário rebuscado, o tema era nomadismo digital.
Ele não falou absolutamente nada com nada. Cuspiu conhecimentos aleatórios sobre imigração, trouxe algum conhecimento igualmente aleatório sobre antropologia (ou sociologia?) enquanto todo mundo fazia cara de paisagem; ele claramente não fazia a menor ideia do que se tratava nomadismo digital; aspas desnecessárias.
11.
Vamos ao nomadismo digital em 2025.
Eu brinco com a minha companheira que ela não teve a chance de conhecer a Era de Ouro do Nomadismo Digital – eu e ela nos conhecemos em 2020; comecei a viajar em 2017.
Passagem saindo de Floripa para Seul por R$ 1.500 (ida e volta).
Airbnb em Roma por R$ 2.500 o mês. Na Tailândia? R$ 1.500 nas ilhas, R$ 1.000 em Bangkok.
E o lance hoje em dia, numa comparação, nem é apenas o real cada vez mais desvalorizado; tem a ver com quase ninguém naquela época perceber o valor econômico desse tipo de viajante; o viajante que não precisa esperar as férias para viajar; o viajante que fica entre 1 e 3 meses nas cidades, que movimenta a economia local por mais tempo; o viajante que tem um maior poder de compra. O viajante que, cedo ou tarde – e eu ainda não havia percebido isso quando escrevi “Nômade Digital” –, seria visto como vilão por diferentes grupos da sociedade; exceto pelos ricos (herdeiros ou não); esses continuam lucrando – em qualquer lugar do mundo.
12.
Um trecho de “As perfeições”:
“Deve ter havido um tempo no qual o que buscavam ainda existia, em que bastava pegar um trem ou uma balsa para que se desdobrasse outro mundo, autêntico e cheio de espaço, um mundo de vinho honesto servido em jarras e refúgios silenciosos na praia; mas perceberam que aquele tempo tinha passado, e por falta de intuição ou por atraso geracional, seriam obrigados a pagar caro. Não podiam se permitir.”
Houve.
Um outro trecho:
“Se gostassem de morar na cidade, ficariam em Lisboa, do contrário iriam para uma ilha grega ou italiana trabalhar como nômades digitais: essa expressão continuava a irritá-los, mas tinham também consciência da inveja escondida sob o desprezo.”
Mais um:
“Aquilo que estava acontecendo com a cidade – a substituição dos habitantes históricos por recém-chegados, mais jovens e ricos, e o aumento dos preços e da homogeneidade sociocultural – era chamado gentrificação. Um nome conhecido quase exclusivamente por quem era responsável por ela.”
No trecho acima, o narrador descreve Berlim; mas poderia ser Lisboa, poderia ser Amsterdam, poderia ser Paris, poderia ser até Koh Phangan, na Tailândia, ou Tulum, no México.

O que aconteceu com o nomadismo digital foi o capitalismo. O capitalismo em seu estado mais puro. O tal do mercado e sua mão supostamente invisível. Adam Smith. Oferta. Demanda.
E vou além: grande parte da culpa dos efeitos colaterais do nomadismo digital vem do capitalismo estadunidense, aquele capitalismo arte, aquele capitalismo moleque, aquele capitalismo onde o “ter” sempre foi mais importante que o “ser”; o poder de compra deles é muito maior que qualquer outro; com o trabalho remoto, os estadunidenses conseguem viajar por aí e inflacionar o mundo.
Meros mortais de outras nacionalidades ficam nesse limbo dos versos dos “Meus 26” de Tim Bernardes:
“Presos entre um fim e um recomeço
Ou entre o começo e o fim,”
13.
Do ponto de vista literário, a obra de Vincenzo Latronico traz um frescor interessante que abre algumas portas:
O romance que estou escrevendo não é especificamente sobre nômades digitais, mas eles aparecem – e propositalmente de forma estereotipada.
O personagem principal, o narrador, é um jornalista na casa dos 40 que na primeira parte do livro (pré-pandemia) trabalha como repórter num jornal de língua inglesa em Bangkok; na segunda parte do livro, já na pandemia e com as redações dos jornais indo de mal a pior, nosso protagonista muda-se para uma ilha onde conhece nômades digitais e, como muitos jornalistas por aí, acaba arrumando um frila como copywriter – para um nômade digital que vende cursos online; soa familiar?; uma sátira ao próprio mundo que, de certa forma, ajudei a popularizar no Brasil com o meu simpático livrinho anterior.
Como dizem os moderninhos, full circle4.
14.
Cada vez mais escrevo para provocar. Provocar qualquer coisa. Um sorriso. Uma cara fechada. Uma reflexão. Não escrevo para que você goste de mim; como escrevi em meu texto anterior, não sou (e não estou interessado em ser) o influencer que as agências querem que eu seja. Gostem. Desgostem. Mas leiam.
Como nesse post em que fui marcado dia desses:
Encerro esse fluxo de consciência com os versos dos argentinos buena onda CA7RIEL & Paco Amoroso em “#TETAS”; sem querer, eles explicam tantos mercados:
“Si quieres ser alguien, no puedes ser tú
Tienes que ser alguien, que no seas tú uh uh
Y si quieres tú, no vas a ser nadie.”
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Paulo Roberto Pires (1967) é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e editor da “serrote”. Foi professor convidado na terceira edição da Bolsa Gabriel García Márquez de Jornalismo Cultural, reunindo na Colômbia 15 jornalistas de 11 países em novembro de 2015.
Círculo completo.
Essa reflexão sobre culpados e perdedores cai sempre nesse sistema de opressão do capital. Quem tem grana esfola quem não tem, não é o fulaninho que tá curtindo a vida com seu laptop embaixo do braço que é o responsável por aumentos de aluguéis e padronização das cidades. Adorei o texto, obrigada.
Como a maioria, me interessei pela internet pela ideia de trabalhar de qualquer lugar.
Depois de mais de seis anos de mundo corporativo, idas e vindas de aeroportos e vivendo três semanas do mês em hotéis mundo afora, quando consegui viver de internet tudo o que mais queria era não sair de casa — sigo assim, até hoje.